O coletivo nos projetos de montanha

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Eu havia comentado, em um artigo anterior aqui no Alta Montanha sobre a influência que a filosofia de Thoreau teve no meu pensamento como montanhista, basicamente a noção de que os indivíduos devem desenvolver a autonomia, livre arbítrio e auto crítica apurada.
Será que esta filosofia altamente individualista serviria para um projeto que envolvesse mais pessoas? As histórias de Gandhi e de Martin Luther King mostram que sim.

 
 
Estes personagens promoveram revoluções radicais, mas o próprio Brasil, em 1988, passou por uma mudança importante. Deixou de ser um estado ditatorial e passou a ser um estado democrático por conta de uma nova constituição. Uma nova entidade foi reconhecida. Além do público, espaço do estado e do privado, espaço do cidadão, surgiu com força, o coletivo, espaço da comunidade, da sociedade.
 
Por outro lado, embora meu sonho dourado como montanhista e de uma parcela da sociedade paranaense fosse ver a Serra do Mar no Paraná transformada em um grande parque, pela vocação conservacionista desta região, este sonho já havia afundado em 1983 por conta da falta de previsão e desinteresse do Estado, na época ainda ditatorial. Um grande parque Marumbi havia deixado de existir naquele ano. Sobrou a luta por áreas estratégicas, pontuais. Uma destas áreas, talvez a mais sensível de todas, era a Serra da Baitaca, onde fica o morro Anhangava, campo escola de montanhismo dos curitibanos. 
 
Nos anos 1990 toda esta serra estava comprometida com requerimentos para mineração. A prefeitura local promovia, uma vez por ano, uma missa no cume do Anhangava, mas que já havia perdido o controle e atraía centenas de pessoas, a ponto de causar um grande incêndio no morro. Com a vegetação fragilizada e excesso de visitação, as trilhas estavam destruídas. A região sofria ainda com projetos privados, como uma estrada para um grupo que queria pular de asa delta, mas que virou foco de danos ambientais como desmatamento, erosões e até mesmo deslizamentos. Ao mesmo tempo, contraditoriamente, a região passava à condição de manancial de Curitiba, ou seja, estava ganhando importância ambiental.
 
Em meio a este cenário confuso e um tanto desolador eu e vários parceiros compramos pequenas áreas ao pé do morro e de pronto, viramos para choques de todas estas situações conflitantes, pois a nossa premissa básica era a de que os danos tinham que cessar e o Anhangava tinha de ter um mínimo de recuperação.
 
Mas como recuperar algo com tudo acontecendo ao mesmo tempo?  O lugar não era um parque, a pressão pela extração do granito continuava, os funcionários do órgão ambiental estavam ausentes ou de mãos amarradas. A saída foi construir um projeto coletivo.
 
PROJETO ANHANGAVA, UMA SAÍDA COLETIVA PARA OS PROBLEMAS DE UMA MONTANHA
 
Eu já participei de várias atividades coletivas: levantar parede de casa, consertar estrada, plantio de árvores. Porém o que nós chamamos de Projeto Anhangava tinha ambições grandes: recuperar uma montanha degradada e transformá-la em parque. Mesmo assim ele começou do zero, com muita paixão pela montanha, sem recursos, mas com uma ou duas ideias bem simples que pudessem sensibilizar e ganhar o apoio coletivo. 
 
Uma destas ideias foi focar na recuperação da trilha principal do morro, usada pela grande maioria das pessoas, religiosos, turistas, montanhistas. Em 1995 esta trilha variava de um lamaçal (nos dias úmidos), a um caminho poeirento quando secava o tempo. A trilha, na verdade tinha virado um canal de escoamento de água, com erosões pavorosas. Tempos antes eu tinha coletado dados nesta trilha: largura da trilha, profundidade de erosões, então já tinha noção dos pontos críticos.
 
Conseguimos doação de algumas ferramentas e como a trilha passava por canchas abandonadas pela mineração, fizemos uma coleta de material (refugo de pedras cortadas), colocamos este material disponível na beira da trilha e fizemos “pedrágios”, ou seja, cada pessoa que passava levava uma pedra trilha adiante, até encontrar uma pessoa que estava usando estas pedras para calçar a trilha em um ponto crítico. Assim, o esforço de carregar uma pedra resultava em um benefício imediato, pois as pessoas viam a trilha sendo pavimentada. Rapidamente conseguimos apoio de clubes de montanha, escoteiros, escolares e outros para aumentar a capacidade operacional desta atividade, que logo ganhou um cunho coletivo. Nosso papel passou a ser, então, indicar onde eram os melhores lugares para desenvolver a atividade e orientar tecnicamente as ações, mas a decisão de apoiar os mutirões nas trilhas partia dos grupos, que adotaram a ideia.
 
Mais tarde, graças a habilidade do meu parceiro Tiaraju Fialho em conseguir e administrar recursos, conseguimos um apoio maior, inclusive governamental e atacamos várias questões problemáticas do Anhangava, além de nos adiantarmos a assuntos ainda não cogitados na época, como pesquisa científica de campo. Aí valeu meu trânsito pela universidade e parceria com pesquisadores.
 
O leque de atividades envolveu temas como prevenção e combate a incêndios em montanha, resgate a acidentados, pesquisa, limpeza da montanha, comunicação e um atendimento mínimo aos visitantes. Ideias criativas surgiam para suprir a limitação de recursos ou dificuldades operacionais. Subir com uma desajeitada bomba costal de 20 lts da base até o cume da montanha para combater um incêndio chega a ser algo cruel para um voluntário, mas e se houvesse um depósito de água no cume? Mutirões foram feitos para aproveitar muitas das garrafas PET abandonadas no morro para servirem como depósitos de água para os incêndios. 
 
RESOLUÇÃO DE CONFLITOS
 
Nem tudo foi possível resolver diretamente com mutirões. Conflitos com a prefeitura local sobre uma missa realizada anualmente no cume do Anhangava, ou com voadores de asa delta que insistiam em ter uma estrada para veículos para seus saltos só foram solucionados mediante a participação do Ministério Público, que atuou como mediador, justamente para defender os aspectos coletivos da montanha: solos, vegetação, rochas, mananciais, enfim o ambiente natural, naquele momento desprotegido pela legislação de um parque e ameaçado por estas atividades. Um fórum coletivo foi criado para discutir assuntos do Anhangava, envolvendo ONGs e órgãos estatais.
 
Depois de realizarmos algumas pesquisas com os visitantes da missa, descobrimos que a grande maioria visitava o local naquele dia não por motivos religiosos, mas para os fins mais diversos, inclusive acampar. A lista de danos ambientais geradas pelo evento era extensa: deposição de lixo, incêndios, poluição de nascentes, aumento de erosão em trilhas, além da ocorrência de acidentes. Os dados alimentaram uma discussão ampla e longa sobre o tema e a prefeitura acabou tendo de adequar-se a uma nova proposta de realizar a missa em um cume menor e com uma subida por uma trilha única e mais controlada. Os órgãos estatais fizeram sua parte monitorando o evento. A decisão surgiu do fórum coletivo, mediado pela Promotoria do Meio Ambiente.
 
O mesmo fórum coletivo deliberou sobre a estrada para asa deltas. A lista de danos ambientais geradas pela abertura desta estrada era igualmente crítica: poluição de nascentes, aumento de erosão de solos e até mesmo deslizamentos. A alternativa proposta, transformar a estrada degradada em uma trilha não foi aceita pelos voadores, que teriam de apresentar um projeto de engenharia para remediar os danos, mas isto nunca aconteceu. Os voadores juntaram alguns apoios políticos e apresentaram apenas documentos mediocremente escritos. Com isto, após muitas deliberações, a Promotoria do Meio Ambiente determinou que a estrada fosse fechada e recuperada, ação que acabou acontecendo por conta da mobilização de dezenas de montanhistas, que construíram barreiras para conter a erosão, organizaram as saídas d´água para evitar mais deslizamentos e plantaram árvores para recuperar a área.
 
Como montanhista posso dizer que o projeto Anhangava, do qual fui um dos organizadores, foi algo realmente apaixonante, mas acredito que o legado dele foi algo mais interessante ainda. Uma comunidade inteira de montanhistas demonstrou que a recuperação desta montanha era mais importante do que a extração de granito que aconteceu naquele lugar no passado. Isto fundamentou a ideia de um parque para a região, que aconteceu realmente em 2002.
 
Apesar de eu ter uma participação direta como cientista e como técnico na criação do parque, entendo que ele só se tornou viável por conta destas ações coletivas, que mostraram ao Estado a importância do lugar. Desta forma, as pessoas que algum dia participaram de algum mutirão no Anhangava, inclusive muitos de vocês leitores, são os verdadeiros responsáveis pelo parque existir.
 
Por outro lado, penso também que muitas das ações pontuais realizadas no projeto, como mutirões em trilhas, combates a incêndios, resgates de acidentados, podem ter servido de inspiração para projetos coletivos que seguem até hoje, como o Adote uma Montanha, o que representa um legado importante do Projeto Anhangava.
 
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Sobre o autor

Edson Struminski escala desde 1979 e é um dos maiores conquistadores de vias de escalada do Brasil. Ele é formado em Eng. Florestal UFPR - 1990 Mestre em Conservação da Natureza UFPR - 1996 Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento - 2006 Sua formação o ajudou a contribuir bastante com o debate e ações que visa a conservação do meio ambiente.

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