O Cultivo da Terra (II)

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Esta é a continuação e a conclusão da coluna anterior, sobre a extensão e o perigo da nossa agropecuária, que sugiro ler antes desta. Ela também encerra uma série de seis artigos de alguma forma relacionados – eu os acho importantes e espero que você se interesse por eles.

Crítica à Visão Inocente

Gostaria de criticar brevemente essa visão inocente da nossa proteção ambiental. Começo pela opinião de que é a vegetação nativa que contém as atividades rurais, e não o contrário. Basta olhar para o mapa das áreas resguardadas para constatar que elas se concentram no norte do país, enquanto a agropecuária ocupa todo o sul e o centro. Nessas últimas regiões, obviamente não existe mais a abundante cobertura nativa. Portanto, nelas as fazendas envolvem as manchas nativas, como ocorre nos outros países. A afirmação da Embrapa me parece, portanto, uma fantasia otimista.

Mapa das áreas indicadas (Fonte: Divulgação)

Segundo, acho duvidosa a obediência dos fazendeiros às imposições da reserva legal. Se ela é visualmente perceptível no Sul e no Sudeste, me parece discutível nas demais regiões. À medida que se avança para o norte, na minha experiência nem é possível identificar a vegetação nativa – então onde foi parar a preservação atribuída à reserva legal?

Os Estados Unidos (e a Europa) de fato desconhecem esse conceito. Porém nos EUA os fazendeiros que preservam áreas nativas são remunerados. Não é um negócio pequeno, foram US$ 25 bilhões em dez anos. Talvez suficientes ter preservado 500 mil km², ou 5% da área nacional, que naturalmente não constaram no último quadro acima.

Além disso, a contagem integral das áreas de proteção das UCs e TIs brasileiras é até certo ponto uma ficção. E, precisamente, nas regiões ao norte, onde elas são maiores. Parques nacionais são corriqueiramente invadidos e territórios indígenas são depredados, numa rotina que nunca parece perturbar as autoridades. Poderia citar inúmeras ocorrências, que tornariam este capítulo grande demais. Além disso, não é incomum a sobreposição de TIs com UCs – quando isto ocorre, a contagem das áreas protegidas resulta em dobro, não?

Mapa das áreas protegidas (Fonte: Divulgação)

Quarto, a maior falácia me parece a gigantesca área de conservação das glebas devolutas da União. Atribuir a elas a plenitude da vegetação nativa é incoerente – se sequer são reconhecidas, como saber se não foram (ainda que parcialmente) devastadas? Se a grilagem ocorre nos parques naturais e nos territórios indígenas, por que não, e com mais forte razão, nas terras devolutas?

Cito apenas três exemplos. O Espírito Santo, onde todas as terras devolutas já foram ocupadas por terceiros. O levantamento feito anos atrás que descobriu 700 mil km² de terras (pasme, 8% do país) com registros fraudulentos. E o fato de que, quando se trata de meio ambiente, a lei está de acordo com o crime, como aconteceu com a medida que busca estabelecer o auto licenciamento ambiental.

Metade do Território

Então, os números que nos atribuem 66% do território resguardado podem ser bem enganosos. Lembro que os incêndios e invasões amazônicos certamente terão reduzido essa bela figura – ignoro qual seria na realidade, mas não me surpreenderia se atingisse algo como 45%. Ainda assim, um índice excepcional se comparado ao mundo. Mas eu radicaria este mérito menos à prudência dos homens e mais à exuberância da natureza.

Mas deixe-me inverter essa indagação e verificar qual é, afinal, a área sujeita no Brasil à produção rural. A Embrapa indica que pastagens, lavouras e reflorestamentos somam 30% de nossa extensão, se os pastos nativos forem considerados. Quando as fazendas chegarem ao seu limite legal, estaremos perto de 40%.

E, quando se descobrir a verdadeira ocupação das terras devolutas, atingiremos sem muito exagero algo como 50%. Não se engane, metade de nossa natureza já está sendo ou logo estará ocupada.

A Agropecuária Tradicional

Deixe-me agora considerar outro ângulo. Sejam os 22% da Embrapa cobertos por vegetações plantadas ou os meus 50% ocupados pela produção e extração humanas, seriam eles ou não focos de degradação do meio ambiente?

O Brasil é grande o suficiente para conter duas agropecuárias distintas: aquela tradicional, histórica e estabelecida no Sul e Sudeste e aquela de fronteira que avança pelo Norte e Oeste. Por mais útil que ela seja, não há a meu ver dúvida razoável sobre a agressão da agropecuária ao ambiente. Mas são agressões diferentes. A de fronteira contém os danos da primeira somados aos seus próprios.

Mapa do avanço (Fonte: Divulgação)

Vou tentar resumir a degradação trazida pela agropecuária estabelecida, caso contrário teríamos aqui de novo um texto enorme. A meu ver, a pior agressão é o uso da água, que atinge talvez 80% do total consumido, e que exaure os rios e empobrece os solos. A emissão de gases (em especial carbônico) é outro resultado grave, contribuindo para o efeito estufa. A contaminação do ambiente pelos fertilizantes e agrotóxicos é alarmante, bem como o ataque à biodiversidade pelos transgênicos e pelas monoculturas.

Mas é impressionante como existem antídotos para essas práticas, que deveriam ser impostas pelas políticas públicas. O plantio direto, com a colocação de sementes no solo não revolvido; a irrigação e fertilização por gotejamento; o sequestro do carbono pela rotação de culturas e tratamento de dejetos; o controle biológico das pragas; a fixação natural do nitrogênio; e a genética de alto rendimento são técnicas hoje bem conhecidas.

Podem evitar a erosão do solo, a infertilidade da natureza, a desertificação, a perda da biodiversidade e a necessidade de novas áreas de plantio. A agropecuária não está obrigatoriamente condenada à degradação do ambiente.

A Agropecuária de Fronteira

Mas, muito pior, é a forma como a agropecuária avança sobre as áreas nativas. Não apenas ela remove as vegetações originais, com sua riqueza e complexidade, como as destrói pela mais cruel maneira: o fogo. As grilagens ilegais, as queimadas grotescas, os desmatamentos criminosos, praticados por um país bárbaro que não tem até hoje vergonha em exportar toras de madeira seculares.

Mas esses homens ferozes não devastam apenas a natureza na qual são intrusos. Eles também exterminam pela peste e pela força aqueles outros homens que lá viviam secularmente – eliminam sua terra, sua cultura, sua história, sua vida. Assistimos inertes 25 milhões de brasileiros devastarem durante o último meio século algo como 1,5 milhões km² de nossos cerrados e florestas, uma plenitude que não mais retornará.

Enquanto isso, técnicos felizes e gulosos descobrem que o Brasil apresenta outros 1,0 milhão de km² ainda virgens para serem vitoriosamente agricultados. No que é ainda mais macabro, sentimos orgulho e não horror por exportamos nossa vida a pretexto de alimentarmos o mundo.

Gostaria de terminar esse texto com um testemunho. Talvez você se toque pelo relato do biólogo Izar Aximoff: É muito triste ver a floresta totalmente dizimada. Aquele cenário colorido, com flores, sons de animais, pássaros cantando, bichos se movimentando e cheiro de mata dá lugar ao silêncio, a animais carbonizados, a um cheiro de carne queimada, à desolação. Fica tudo preto e você fica sujo com aquele resíduo de carvão. (…) Eu vi filhote de jiboia queimado, bicho-preguiça carbonizado, bromélia torrada. Dá vontade de chorar.

E onde você acha que ele estava? Nem tão longe: na Mata Atlântica do Rio de Janeiro.

O Aquecimento Global

O sequestro dos gases estufa, motivado pela urbanização, pela indústria e pelo cultivo, tem causado um gradual aquecimento do planeta. Os mapas abaixo vieram do mais recente relatório do IPCC – Painel Internacional de Mudanças Climáticas:

Previsões para o aquecimento (Fonte: Divulgação)

Esse é um assunto enorme, que não vou abordar aqui a não ser superficialmente. O aquecimento global aumentará o nível dos oceanos devido ao degelo, intensificará as chuvas e furações pelo aquecimento da água, produzirá secas mais fortes e longas, afetando as principais áreas de cultivo.

Essas mudanças tendem a ser cumulativas, desorganizando a vida, perturbando as cadeias alimentares, alterando os locais de abrigo, influindo nos solos, nos mares, nos ventos, nos rios e nas cidades.

As regiões tropicais deverão ser menos afetadas, embora vastas áreas no Brasil e na África venham a se tornar mais quentes e secas. O Nordeste ficará mais árido e o Centro-Oeste sofrerá secas e queimadas. O Norte será mais quente e menos úmido. As cidades costeiras deverão ser inundadas. Os maiores efeitos beneficiarão o hemisfério norte, que dispõe de maiores extensões em altas latitudes em relação á metade sul do planeta.

O impacto poderá ser dramático nas regiões bem ao norte, contribuindo para climas mais amenos, maiores estações de plantio e aumento das áreas de cultivo, com maior biodiversidade. Na Antártida, por sua posição sul, o efeito será menor, mas na Sibéria, no Canadá e na Groenlândia deverá ser formidável.

Veja abaixo o gigantesco potencial de novas áreas cultiváveis, de 35 milhões de km². Se sujeitas ao atual percentual de cultivo do mundo, poderão agregar metade da superfície hoje cultivada.

1. Antártida

14.200

2. Sibéria

13.100

3. Canadá

4.200

4. Groenlândia

2.200

5. Escandinávia

800

6. Finlândia plus

500

Notas: (1) A Sibéria inclui a Rússia e o Uzbequistão. (2) A Finlândia inclui também os países ao sul. (3) Os dados acima são em mil km².

Isto significa que, a partir talvez de 30 anos, o Brasil deverá perder sua posição hegemônica na produção de alimentos. Se nós já não tivermos transformado a Floresta Amazônica num deserto, o aquecimento global fará dela uma savana.

A Sustentabilidade

Fui buscar uma definição de sustentabilidade na agricultura e encontrei algo como: é o manejo do ecossistema, de modo a manter sua diversidade biológica, produtividade e capacidade regenerativa, de maneira que possa preservar suas funções e não cause danos em outros ecossistemas. É o desenvolvimento que não esgota os recursos para o futuro.

Este conceito é hoje uma unanimidade. Todos o apoiam e acreditam, mesmo sem praticá-lo, que ele é a solução para a exploração continuada do planeta.

James Lovelock foi o autor da Hipótese de Gaia, segundo a qual o planeta funcionaria como um organismo vivo, capaz de manter a vida. Uma simbiose entre os seres vivos e o mundo mineral que favoreceria a vida. Numa de suas últimas obras, Lovelock chegou a uma surpreendente conclusão.

A sustentabilidade seria mais uma enorme arrogância humana, baseada na crença de que podemos de fato entender e manipular a natureza. E ele propôs muito simplesmente deixar a natureza em paz – não um desenvolvimento, mas uma retirada ou recuo sustentável.

Ao invés de explorar a Terra, apenas nos refugiarmos nela. E acreditar que, se ficarmos quietos, ela será capaz de regenerar as feridas com que a castigamos.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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