Esta é a segunda coluna sobre o impacto ambiental e social da mineração em Minas Gerais. Aviso desde já que acho a mineração uma estúpida agressão à integridade do ambiente, ao usurpar o seu interior ancestral.
O Fantasma de um Pico
O Quadrilátero Ferrífero de Minas é uma região relativamente compacta, não havendo mais de 100 km em linha reta entre seus extremos. Na época em que os sertanistas penetravam neste território, algumas montanhas lhes serviram de referência.
Uma das mais importantes foi o Pico do Itacolomi (1.770 metros) com seu impressionante pontão. Foi em sua direção que Antonio Dias pôde encontrar o ouro de Vila Rica (atual Ouro Preto), nos últimos anos do século XVII. Hoje existe um bonito parque estadual no seu entorno, que valoriza tanto esta arrojada montanha como a preciosa vila colonial na sua base.
É no amplo espaço do Quadrilátero que se lança a cordilheira do Espinhaço. Sua maior expressão fica quase ao centro da região, na Serra do Caraça. Esta formação, contendo o dominante Pico do Sol (2.070 metros), era certamente uma importante orientação para o percurso dos indigenas, bandeirantes e tropeiros.
Embora fosse no início uma sesmaria, onde houve garimpo de ouro no pé da serra, o monastério construído por Frei Lourenço no século XVIII protegeu o local da mineração destrutiva. Hoje, o grande arco serrano do Caraça abraça uma reserva natural.

O Itabirito é um pico de pura hematita com 80 m de altura e 1.585 m de altitude.
Outra montanha famosa no período colonial foi o Pico de Itabirito (1.585 metros), desta vez cuja coloração vermelha servia de importante orientação. Mais ainda, seu desenho é extraordinário: um monolito sem igual no mundo, formado por um único bloco de hematita compacta. Embora com moderada altitude, era visível de longa distância, por seu formato e altura – há um notável desenho do naturalista Martius que mostra isso bem. O Pico situa-se na cidade de mesmo nome, hoje com 50 mil habitantes.
O Itabirito até certo ponto não sofreu o destino cruel do Cauê, do qual falei em outro texto, mas tampouco desfrutou da fortuna dos Picos do Sol e do Itacolomi, que permaneceram intactos.
O Brasil passou por uma grande modernização na década de 1930, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. Relatei num livro passado como apareceram então nossos primeiros ambientalistas, uma brilhante geração que conseguimos em seguida esquecer. Foi neste momento que surgiu o que hoje chamamos de IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Dizem que havia duas motivações principais para criá-lo em 1937. Uma era manter no país os objetos de valor artístico ou histórico, que corriam o risco de ser adquiridos por estrangeiros interessados na cultura brasileira.
A outra, evitar a destruição de nossos monumentos históricos, ameaçados pelo generalizado crescimento e urbanização das cidades. Um bem material poderia ser protegido através do tombamento, para impedir sua destruição, mutilação ou reforma, mantendo-o preservado para o futuro.

Rodrigo Andrade (1898-1969), advogado e jornalista, foi o primeiro presidente do IPHAN, que chefiou por 30 anos. A primeira edição do seu livro só vendeu 200 cópias, até que viesse a segunda.
Desde então, o IPHAN tombou centenas de conjuntos históricos urbanos, igrejas e capelas, conventos e fortalezas (todos esses principalmente no SE e NE), moradias notáveis ou de pessoas ilustres, pontes e ruínas, coleções e terreiros (estes naturalmente na BA).
Curiosamente, encontrei muitos tombamentos de bens naturais, como o Morro do Pai Inácio e as ruínas da cidade de Igatu na Chapada Diamantina, a Gruta do Lago Azul em Bonito e as Praias da Ilha de Paquetá no Rio – e até um parque inteiro, o da Serra da Capivara no PI, e toda uma área rural, a Fazenda do Pinhal em São Carlos, SP.
Muitas dessas ações resultaram controversas, como as demolições de construções antes tombadas – a exemplo do Solar neocolonial Monjope e da Igreja barroca de São Pedro dos Clérigos, ambos no Rio de Janeiro.
Entretanto, a meu ver o Solar tinha uma arquitetura discutível e a Igreja estava no caminho da Avenida Rio Branco, então sendo aberta no Centro. Acredite, você vai agora conhecer uma história sinistra: o tombamento e posterior destombamento do Pico de Itabirito.
Durante três séculos, a região de Itabirito assistiu à contínua transformação da sua paisagem, no começo através das catas e minas da exploração do ouro e, depois, das cavas e barragens da mineração do ferro.
Lá existiram as importantes minas Cata Branca e Morro das Almas e, já com o ferro, a Usina Esperança, entre o fim do século XIX e o início do XX. Com a implantação da CSN em meados do século passado, então a maior siderúrgica nacional, o Pico de Itabirito passou a fornecer o minério para a sua operação.

Mapa da obra de 1821 do Barão de Eschwege. Da E para D, aparecem a Serra da Moeda, o Itabirito, o Caraça e o Itacolomi. As principais cidades são Sabará, Vila Rica (Ouro Preto) e Mariana.
O triste destino do Pico do Cauê já era conhecido há duas décadas, quando o IPHAN (sob a gestão de seu histórico Presidente Rodrigo Mello Franco de Andrade) começou a estudar a preservação do Itabirito. Mas como isto aconteceu, numa época voltada para o desenvolvimento e pouco interessada na preservação?
Como afirma o brilhante texto da historiadora e ambientalista Thaís Junqueira, as muitas formas de representação do Pico de Itabirito, desde as jornadas do desbravamento de Minas, feitas por naturalistas e cientistas, cronistas e viajantes, pintores e poetas, ajudaram a inseri-lo no imaginário coletivo da população mineira, conformando mentalmente a paisagem com a qual esta passou a estabelecer relações de afetividade e identificação.

Desenho de F. J. Stephan de 1840.
O inglês Simon Schama diz que: A paisagem é obra da mente. Compõe-se tanto de camadas de lembranças quanto de estratos de rochas. Ou seja, é uma construção histórico-social, feita a partir de diferentes formas de percepção e leitura do espaço, o que a torna um objeto de conflito, envolvendo interesses econômicos e políticos.
A singularidade do Itabirito, em termos físicos, históricos e sociais, tornou-o equivalente a um monumento natural. O IPHAN decretou seu tombamento em 1962.
Porém os interesses econômicos da mineração e da indústria contestaram duramente esta decisão. E foi uma batalha enorme, que não arrefeceu quando em 1967 o Presidente Castello Branco despachou, no último dia de seu mandato, o surpreendente destombamento do Itabirito. Por mais vinte anos, a população local, a mídia, os políticos, empresários, técnicos e intelectuais continuaram debatendo o assunto.

Ilustração de Marianne North de 1873.
Até que, com a nova Constituição brasileira, a Assembleia de Minas determinou em 1989 o retombamento do Itabirito, encerrando duas décadas e meia de controvérsias. Diz assim o texto oficial: Ficam tombados para o fim de conservação e declarados monumentos naturais os Picos do Itabirito ou do Itabira, do Ibituruna e do Itambé e as Serras do Caraça, da Piedade, de Ibitipoca, do Cabral e, no planalto de Poços de Caldas, a de São Domingos.
A meu ver, uma escolha um tanto peculiar, quem sabe por gente principalmente urbana, que talvez não tivesse conhecimento pleno do território de Minas. Mas, desta forma, o sofrido Itabirito foi capaz com seu exemplo de proteger muito da natureza mineira.
Gostaria de acrescentar algumas observações. Diz Thaís Junqueira que o Pico, destombado, foi sendo ´moído e exportado´ por muitos anos, como previu Drummond de Andrade, sem trazer, contudo, a prosperidade e o desenvolvimento previstos por aqueles que lutaram por seu destombamento sob essa justificativa.
As populações do Quadrilátero Ferrífero, confinadas pela exploração poluente e barulhenta dos seus minérios, parecem sujeitas à dependência econômica, aos conflitos sociais e á desigualdade de renda – e, até mesmo, à perda de sua história e memória social.

O Itabirito e a Mina do Pico, parecendo uma imagem inventada.
Ao fim de sua obra, Thaís Junqueira apresenta uma visão crítica da mineração: Por isso, compreender o processo do Pico de Itabirito, que ocorreu há mais de 50 anos, é um importante estímulo para nos questionarmos sobre o tipo de desenvolvimento que estamos perseguindo. Nossa economia ainda é baseada na exportação de matérias primas e os ganhos na balança comercial não se mostraram capazes de extirpar a pobreza ou gerar justiça social. (…) Pelo contrário, este processo de desenvolvimento tem gerado problemas ambientais, conflitos sociais e diferentes formas de violência real e simbólica, dentre as quais se destaca o “silenciamento das formas alternativas de ver, ser, fazer e dizer” (Valencio Zhouri).
Na época do destombamento, a mineração no Itabirito pertencia à empresa MBR. Seu presidente, o conhecido empresário Augusto de Azevedo Antunes, nunca permitiu – nos 20 anos em que assim pôde – que a montanha fosse destruída.
As operações passaram para a Vale, que se comprometeu a recuperar a paisagem desfigurada do maciço, sem entretanto jamais fazê-lo. É interessante comparar as posturas de um capitalista privado (na época acusado de entreguista) com as de uma empresa pública (que se diz voltada ao desenvolvimento).

Vista do limite de tombamenro do Pico do Itabirito (Fonte – Carlos Alberto Rosière).
A derrota do IPHAN estimulou sua administração na década seguinte a realizar inúmeros tombamentos de bens naturais, não somente históricos. O tombamento desses bens, que tradicionalmente era feito com base no critério estético e paisagístico, passou a considerar, também, os valores afetivo e social, diz nossa historiadora. Então, a história do Itabirito não se refletiu apenas na quantidade, mas também na qualidade das ações de preservação de nosso patrimônio natural.