O Mistério do Balança – Parte 2

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O ambiente no QG instalado na Pousada do Sr. Ibrahim andava pesado em função dos confrontos com o grupo de socorro e este infortúnio imediato provocou risadas hilariantes entre os bombeiros e demais voluntários que naquela noite dormiram sentindo-se vingados pelos desígnios do destino.

Leia a primeira parte do texto

Desenvolvendo uma estratégia de cerco, na manhã seguinte o Anderson acompanhou o grupo liderado pelo Sargento Armstrong pela trilha que sobe ao Salto dos Macacos até a cumeada na tentativa de interceptar a rota natural que conduz ao Farinha Seca sem encontrar vestígio algum. Por tratar-se do Black isto era um mal pressagio. Dentro da mesma estratégia, outro grupo composto pelo Elcio, um socorrista e um soldado do Corpo de Bombeiros partiram juntos da Casa Garber com destino ao Morro Sete no final da planejada travessia. Mas depois da segunda longa parada para esperar os retardatários, trataram de encontrar-se somente mais tarde no cume. Horas depois, quando o Elcio escrevia um recado no caderninho para o Black, ouviu gritos vindos do Mãe Catira onde os dois finalmente chegaram tropeçando na gravata e acenavam para ele. Sua ansiedade o fez querer entender, “encontraram,…volte,…volte,…encontraram!”

Em 20 minutos estava no cume do Mãe Catira e o ruído do helicóptero ressoava por entre os cânions para outro resgate desnecessário. Esclarecido o engano, o Elcio comunicou que seguiria a pé para o Farinha Seca passando pelo Poaguaçu-Mirim, mas o socorrista o convenceu a embarcar argumentando que a aeronave os deixariam no cume desejado, poupando-os de uma dura caminhada. O aparelho flutuou um metro acima de um campo de macega e o socorrista correu pela quiçaça para alcançá-lo, mas tropeçou e caiu, ficando entalado numa depressão com as pernas balançando no ar até os outros chegarem para libertá-lo. A cena inesperada provocou um ataque de risos até no piloto que penava para estabilizar a aeronave.

Dentro do helicóptero flutuando sobre os precipícios até o Elcio entendeu o gosto desta turma em pedir este tipo de resgate a cada mínimo contratempo. Não fosse o desespero da situação teria curtido melhor aquele vôo panorâmico que erroneamente circulava o Tapapuí julgando ser o Farinha Seca. O piloto manobrava com dificuldade em função do vento forte que ameaçava desestabilizar aquela coisa, mas num dos poucos momentos de tranqüilidade conseguiu aproximar-se suavemente do solo e quando finalmente se preparavam para saltar, o socorrista no comando da operação, comunicou que recebeu pelo rádio uma nova ordem do QG para abortar a operação e retornar a base.

A aeronave tomou impulso e voltou a ganhar altura enquanto o Elcio perdia até as palavras de protesto em meio ao ruído do motor. Pousaram no abandonado posto de Polícia Florestal do Rio do Corvo na Estrada da Graciosa e chorando em silencio o triste destino do amigo, compreendeu que nada lhe seria permitido fazer para tentar resgatá-lo. No fim daquela mesma tarde conseguiu uma carona e voltou para casa pressentindo pelo pior.

Dar impulso ao corpo num salto lateral, girar em pleno ar e cair de costas usando a mochila e a própria vegetação para amortecer o impacto é uma técnica de caminhada que ainda utilizamos para transpor a intricada macega em terrenos pouco inclinados, mas o Black levou este método ao limite. Descendo a face norte do Caratuva em direção da aresta que conduz ao Taipabuçu, numa época em que o trânsito das pouquíssimas pessoas não deixava rastros, pediu a liderança da coluna e descambou morro abaixo aprimorando o desempenho a cada novo salto. Utilizando-se do desnível acentuado, girava o corpo ao atingir o solo e numa pirueta feliz aterrissava em pé, pronto para o próximo.

Divertia-se com o arregaço que provocava na vegetação e muito mais quando algo dava errado, ficando preso numa fresta ou desequilibrado a ponto de involuntariamente emendar dois ou três saltos seguidos. O grupo também conseguia verdadeiros prodígios de velocidade em descidas radicais, correndo, pulando nos desníveis mais acentuados e dependurando-se pelos galhos no melhor do estilo Tarzan. Agindo desta maneira não precisavam mais de 14 minutos para descer do cume ao riacho pela rota normal do Caratuva.

Em outra ocasião, depois de desembarcar em Bairro Alto, cruzar os cumes do Ferraria, Taipabuçu e Caratuva, percorria a noite o trecho entre o A1 e o Itapiroca quando o Taylor e o Elcio pediram para diminuir a velocidade que não conseguiam enxergar a trilha. Silenciosamente lhes passou a única lanterna do grupo e desapareceu na escuridão sem que os companheiros conseguissem alcançá-lo antes do cume. Assim era o Black, intuitivo, alegre e arrojado.

2011 – Na véspera de nossa quarta investida recebi um telefonema inesperado do Mikael que há tempos andava desaparecido.
– Vão fazer alguma coisa neste fim de semana?
– Vamos explorar uma linha no Balança.
– Tô fora de forma – perguntou ansioso – será que agüento?
– É sossegado, menor que o Anhangava – respondi sem mentir, mas também encobrindo as dificuldades – e o avanço será muito lento.

O dia amanhecia quando juntamente com o Moises, Mikael e o Elcio paguei Dna. Izabel pelo uso do estacionamento e seu filho apareceu para o tradicional “dedo de prosa”. Ficou curioso com o computador, mas não tínhamos tempo para explicar e nem imagino se entenderia sua finalidade. Este projeto já nasceu sob o domínio da tecnologia. Com orientação do Professor Raul M. P. Friedmann na área de cartografia e navegação terrestre o Elcio desenvolveu todo o projeto com o uso de cartas planialtimétricas digitalizadas do ITCG (projeto Mata Atlântica) aplicadas sobre um modelo tridimensional. Em campo portávamos todas as informações armazenadas num Netbook Asus 1002HA equipado com o TrackMaker 13,8 acoplado a um Garmin GPSmap 60Csx carregado com mapas do projeto Tracksource V11,4 que nos fornece o percurso planejado juntamente com o nosso progresso em tempo real sobre a carta topográfica. A tecnologia do século 21 aplicada ao montanhismo puro e selvagem.

Cruzamos o Rio São João abaixo da usina com os pés descalços e o Rio Ipiranga quase seco para rapidamente chegar ao lugar onde o Pedro teve o último piripaque, pouco acima do Mocó. Saímos da trilha e nos divertimos muito com o cagaço do Mikael para desescalar uma pequena parede podre e insegura na borda de uma grande cachoeira, agora totalmente seca.

Entramos em terreno virgem por entre grandes pedras afiadas e parcialmente encobertas por raízes, musgo e barro numa encosta muito inclinada seguindo uma diagonal ascendente a esquerda até um grande paredão de pedra nua em cuja base descansavam imensas árvores mortas com suas raízes expostas e cascas rasgadas na vertiginosa queda, era uma cachoeira de árvores. Invertemos o rumo da marcha levemente à direita e continuamos escalando a encosta até o bosque clarear cedendo lugar para a odiada taquara-de-fogo que ocupa toda a cumeada da crista. Esta taquara se gruda ao corpo como velkron e ao sair leva nacos de pele que ardem como queimaduras de fogo em contato com o suor.

Após leve depressão o terreno volta a subir pesado até bater de frente com a muralha que contorna a montanha. Tateando pela base encontramos uma passagem escalonada com grandes degraus expostos que nos ofereceram uma vibrante visão da Garganta do Diabo e do cânion do Rio Ipiranga com os Saltos Feitiço e Rosário aos nossos pés. Víamos a luz quente e vibrante do sol iluminando a mata e o trem sumindo e reaparecendo entre túneis acima do rio nervoso, mas no horizonte ao leste já se aproximava uma massa pesada de nuvens escuras e ameaçadoras.  ,

Seguimos pela crista lutando contra as taquaras enquanto o chão despencava abrupto, para os três lados e as nuvens carregadas nos envolviam num abraço úmido no final da tarde. Caíram os primeiros pingos d´água encharcando a vegetação na encosta inclinada e tornou-se urgente a procura de um abrigo. Continuamos subindo até a inclinação aliviar e iniciamos a preparação do improvisado bivaque na chuva.

Estávamos no centro da nuvem e a neblina adentrava a densa macega atingindo o chão enquanto as gotas de chuva despencavam suavemente vazando a cobertura de folhas. Sem espaço para as barracas tratamos de escolher pequenas áreas onde se pudesse esticar o esqueleto e improvisamos alguma proteção com os pedaços das barracas amarrados aos troncos dos arbustos. O Mikael se embrulhou em lona plástica, eu e o Moises conseguimos um espaço contínuo onde montamos a cozinha e o ar se encheu com o cheiro doce da gordura do salame calabrês derretendo na frigideira.

Com a barriga cheia voltou o bom humor e o Elcio sacou do Netbook para conferir o avanço do dia e como aqui ninguém é de ferro, também aproveitamos para assistir a uma sessãozinha de cinema. Em cartaz “Mamãe fiz Pornô” estrelado pelas irmãzinhas Jéssica e Gisele Correa. Entre uma goteira e muitas outras, o cansaço foi pegando e fomos nos acomodando dentro dos úmidos sacos de dormir para a longa noite de sono só atrapalhada pelos berros do Elcio as 4:30 da madrugada, convocando para desmanchar acampamento e seguir para o cume. A chuva havia cessado e só levantei a cabeça para mandá-lo tomar no…, lugar merecido. Na manhã seguinte o Mikael confessou que por pouco não houve uma tragédia naquela madrugada e já estava com a mão num porrete para arrebentar com o primeiro que se levantasse.

O dia amanheceu esplêndido e as lembranças da noite úmida se desfizeram nos goles de cappuccino com chocolate quente. Retornamos a rotina do dia anterior rasgando taquara até o cimo da crista onde o terreno nivelou a frente e reencontramos as odiadas taquaras de fogo cobrindo cada centímetro do espaço. Com os braços e pernas já devidamente retalhados optamos por nova técnica de avanço. Apanhei uma vara com pouco mais de três metros que estendia na frente para depois subi-la com os pés deitando o taquaral até o chão para o próximo da fila pisotear as laterais. A coluna avançou até uma suave depressão que desce para ambos os lados da crista. Do lado oposto viceja um bosque úmido recheado por bromélias e caraguatás e o terreno volta a subir pesado em direção dos paredões da pirâmide final.

Com o avanço facilitado pela vegetação logo encontramos nova muralha de rocha na linha exata em que descia um filete d´água por uma fissura na pedra. Certamente o Black seguiu por ali para encontrar a morte mais a frente. O relevo acima invariavelmente conduz aos paredões da face sul já perceptível por entre a vegetação. Paramos para reavaliar a rota, comer e beber da água fresca. O desenvolvimento de uma zona de cisalhamento nos permitiu avançar pela direita percorrendo agachados por estreita e úmida canaleta que penetra no maciço de pedra como um túnel. Do alto despenca uma chuveirada de água gelada nas costas e seguimos para cima explorando cada falha da muralha.

O Moises escalou uma fresta direta para cima enquanto eu explorava uma variante à esquerda e o Elcio seguiu em frente. Nada no mundo faria o Mikael escolher qualquer uma destas alternativas e ficou quieto esperando os resultados. Encontrei uma pequena saliência por debaixo de espessa camada de limo que cruzava o paredão numa diagonal ascendente, mas esta terminou bruscamente a uma distância de cinco metros antes de atingir uma área arborizada. Como o Moisés já avisava que sua tentativa fora infrutífera o chamei para apreciar a paisagem e por ali fomos nos distraindo com a estupenda vista daquele mirante. Vinte minutos depois reaparece o Elcio P. da vida porque havia encontrado uma passagem “fazível” e estava se desguëlando há meio século sem que ninguém aparecesse. Calma lá velhinho, os ponteiros do relógio se aproximavam das 14:00 e está mais do que na hora de descer. Então rolou o conhecido estresse e o sujeito queria nos convencer que em quarenta minutos estaríamos chupando mixirica no cume.

Depois de dois dias varando quiçaça já estávamos esgotados e ansiosos por um sorvetão no Banana da Terra. Descemos ao local do bivaque recolher os bagulhos que ficaram secando ao sol e deitamos o cabelo para Porto de Cima. O Mikael cansado fica muito injuriado e na última terça parte já vinha trançando as pernas, mas a cada solicitação de parada alguém indicava um bom lugar à frente que nunca chegava até que na transposição da cachoeira jogou a mochila sobre as lajes.
– Porra! Será que ninguém entende que estou cansado.

1997 – Ao termino da primeira semana de buscas, depois de esgotadas todas as teorias, o comando da operação finalmente rendeu-se ao óbvio e retornou ao Morro do Balança onde estavam registradas as únicas pistas de sua passagem. O Bombeiro Sidney acompanhando dois socorristas, agora com seriedade e equipamento completo, seguiram até a primeira cumeada onde pernoitaram. Na manhã seguinte escalaram a pirâmide final confiando apenas em frágeis apoios para não perder de vista as tênues marcas deixadas pelo Black. No caminho encontraram indícios que os conduziram ao abismo na face sul, mas perplexos diante das desconcertantes evidencias voltaram a indagar ao QG sobre o inédito achado que a princípio imaginaram pertencer à equipe antecessora, antes de optarem por abandonar o equipamento excedente e fixar o primeiro rapel.

Cinco rapéis consecutivos acompanharam por 250 metros o temerário percurso de descida utilizado pelo Black que vencia os abruptos desníveis deslizando pelas rampas e saltando parede abaixo onde encontrava apoio em minúsculas saliências na pedra ou nas precárias touceiras de vegetação até precipitar-se no vazio de um abismo em negativo por outros 60 metros verticais. No caminho resgataram o boné, depois uma luva e próximo ao ponto de impacto, a mochila com as alças rompidas para em seguida encontrarem o corpo descansando sobre um veio de água cristalina no fundo de um estreito vale arborizado.  ,

Com o corpo localizado e as cordas fixadas acima, necessitaram receber por via aérea um novo suprimento para descer os 140 metros contínuos da próxima parede e outro tanto segmentado em 4 etapas até saírem pelo Salto Rosário. No dia seguinte, duas semanas após o desaparecimento, o corpo do Black foi resgatado com o uso da maca inçada verticalmente pelo helicóptero numa manobra de precisão absoluta.

Continua: O Mistério do Balança Parte 3

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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