2011 – Na manhã da derradeira investida, as lombrigas de Dna. Izabel se alvoroçaram ao sentir o cheiro das mexiricas e foi logo pedindo uma. De imediato o Moisés entregou três à agradecida senhora que lhe fez uma promessa:
– Na volta lhe dou um pão feito em casa.
Negócio fechado, seguimos para o posto do IAP as 9:00 horas e o atendente nos recepcionou com o questionário de praxe:
– Nome? Telefone? Lanterna? Para onde vão? O Itupava está interditado!
Os braços gulosos do Estado só não são mais compridos que o autoritarismo dos ignorantes. O Salto dos Macacos, o Morro do Balança e o Salto Rosário entre muitos outros não pertencem a jurisdição do parque, mas sabemos de antemão que é inútil qualquer argumentação.
– Vamos orar ao Senhor na beira do Rio Ipiranga.
– É proibido acampar. – foi logo avisando.
– Não vamos acampar, Irmão – afirmei – faremos uma vigília noturna em louvor ao Altíssimo.
Por fim resolveu encurtar a conversa e nos forneceu passe livre ainda que meio ressabiado, mas que ninguém me acuse de faltar com a verdade, afinal em que lugar do mundo estaríamos mais próximos de Deus do que no alto de um cume em meio a natureza selvagem?
O Elcio e o Sexta (Ivon Cesar Sales) abriram pequena dianteira em relação a mim e ao Moisés que ficamos encarregados de marcar com fitas o caminho. Larga fita adesiva amarela para enxergar no escuro. Começamos pelo palanque de cerca que demarca a entrada no mato depois de cruzar o Rio São João, uma de cada lado ao cruzar os córregos e duas no mesmo tronco para destacar as bifurcações. Depois do Rio Ipiranga cada marca avista a seguinte até chegar ao cume, usamos ao todo 60 metros de fita adesiva Vonder.
Seguimos entretidos com nossa missão até as proximidades da primeira cumeada quando ouvimos passos pesados se aproximando mais abaixo. Grata surpresa ver o rosto amigo do Jurandir Constantino despontando no matagal com sua imensa cargueira nas costas. O ônibus ficou preso num congestionamento na BR277 e atrasou a pernada, mas nada o impediu de seguir nossas pegadas serra adentro. Outro braço forte é sempre bem-vindo na conquista e pelo rádio comunicamos que tínhamos companhia.
Paramos para descansar e comer uma fruta no local do bivaque e mais a frente na descida d´água que encontramos praticamente seca, mas com paciência o Jurandir conseguiu extrair alguns litros de líquido meio amarelado. Pouco a frente, na grutinha, sequei outra poça d´água para completar nossas necessidades futuras.
Rapidamente alcançamos a passagem “fazível” do Elcio, um despenhadeiro podre que se perdia no meio da vegetação. Escalada precária sobre uma maçaroca de raízes trepidantes, limo barbudo, troncos apodrecidos e rochas soltas entrecortadas por árvores suicidas presas ao barranco como carrapatos equilibristas. Acima a mata se tornou sombria e a chuva desabou pesada sobre nossas cabeças. Em minutos estava tudo encharcado e a água já escorria gelada pelo rego da bunda para desespero do Elcio que havia emprestado seu melhor equipamento para uma amiga acampar com a turma do colégio. Indignado com o mal tempo, propôs retornar a noite depois de atingir o cume, mas ninguém levou a sério tal proposta e prosseguimos nossa marcha para o alto até que na boca da noite encontramos uma profunda vala cruzando nosso caminho. Uma falha geológica diria o Mikael ou o Pedro se a vissem, um mocó, pensamos todos ao mesmo tempo.
Dentro do buraco a noite se tornaria suportável, o vento soprava de uma só direção e a chuva caia apenas na vertical. Quase o paraíso se não fossem as pedras afiadas, as raízes salientes, os galhos retorcidos e o chão úmido. Para sorte da moçada trouxe na mochila três pedaços de nylon e alguns cordoletes com os quais improvisamos precárias coberturas sobre os sacos de dormir. O Sexta armou sua barraca do jeito que deu e o Jurandir se enfiou desajeitadamente numa fresta na pedra completando o abrigo com um saco de açúcar “Alto Alegre”. Mais precário só forrando a cama com o jornal de domingo.
A chuva cessou lá pelas 20:00 horas e a macega gotejou pelo resto da noite, mas depois da sessão de piadas e causos, com o bucho forrado de comida quente, adormecemos feito anjo no cafofo e só despertei no meio da madrugada com umas cotucadas insistentes no saco de dormir. Confesso que levei um baita susto e saí tateado na escuridão a cata da lanterna, mas ficou sossegado quando descobri o causador de todo o rebuliço. O Jurandir se contorcendo dentro do saco de dormir vergava com as costas uma haste de capoeira que na outra ponta esfregava as folhas na minha cara. Aproveitei a oportunidade para regar as moitas, mas depois de sair do saco de dormir concluí atrasado que deveria ter ficado quieto no meu canto. Fazia um frio dos diabos e aqueles poucos segundos de exposição me congelaram até os ossos.
O dia amanheceu com o céu encoberto pela neblina úmida e gelada, da barraca do Sexta se ouvia AC/DC e Black Sabbath e não havia alternativa além de abandonar o conforto, vestir a roupa suja e sacudir o esqueleto em direção ao cume. Saímos da vala e depois de uma hora feroz varando mato não havia mais o que subir e foi só posar para a foto. O cume é encardido com macega alta e retorcida, sobre uma pedra a direita fizemos a limpeza de um mirante, mas a neblina a tudo encobria. Havia sinais de melhora, lenta, mas promissora e por bem resolvemos gastar o tempo a caminho do cume seguinte.
Azimutamos eletronicamente para o colo entre as duas montanhas e seguimos o riscado na mesma balada. No selado navegamos por um mar de caraguatás e no início da encosta oposta cruzamos um brejo de águas escuras que seguia para o abismo. Mais acima deve existir uma nascente e a meio caminho do cume escalamos uma grande rocha que se destaca da encosta por sobre a floresta. A planície toda estava visível, até os contrafortes da Serra da Prata e uma larga faixa ensolarada subia o Marumbi iluminando a Esfinge. O Balança, ao lado, estava limpo e rolou um debate para decidir nosso destino e por fim resolvemos voltar e documentar a conquista de nosso objetivo principal naquela empreitada.
Novamente no cume do Balança a panorâmica se abriu de norte a sul e o Marumbi se encheu de luz, grossos fiapos de nuvens se desprendiam do Abrolhos e um par de urubus planou pelas termais cruzando o cânion do Ipiranga. Quando criança nós os chamávamos erroneamente de corvo, mas já sabíamos que se alimentavam da tragédia alheia, não necessariamente esperando pela morte da vítima. Para encobrir a verdade, iniciavam o banquete pelos olhos que extraiam a bicadas e depois brigando entre eles pelos despojos. Também se dizia que “corvo não come corvo”.
Descendo, o Jurandir, lembrou ter informado no cadastro que seguiria para a Marumbi e ficou preocupado com as conseqüências no retorno. Sossega peão, se perguntado diga apenas que se perdeu pelo caminho e encontrou os Irmãos orando na beira do rio. Por precaução caiu de joelhos e se juntou ao grupo, Aleluia!
1997 – De relevante pouco mais se sabe sobre o que realmente ocorreu com o Black naquele fatídico 28 de junho de 1997 e sobram especulações das mais variadas. Uma frente fria mudara o tempo durante a noite e o sábado amanheceu chuvoso e gelado. Na rodoviária de Curitiba, o Black aguardava com a passagem no bolso a chegada do Correa e do Elcio, que inteligentemente voltaram para a cama depois de olhar para fora da janela. No sistema de som ouviu a última chamada para o embarque e por teimosia, sovinice ou excesso de otimismo resolveu encarar sozinho aquele perrengue.
Em São João da Graciosa o ônibus quebrou e rolou um atrito com o motorista, irritado continuou a pé. O vento gelado e a chuva fina lhe fustigaram o rosto ao cruzar a ponte de ferro sobre o Rio Nhundiaquara em Porto de Cima e no pátio da Usina de Marumbi já estava encharcado até os ossos. A mata lhe proporcionou alívio e proteção até cruzar o Rio Ipiranga, no Salto Rosário, e o movimento aquecia seu corpo. Vestiu as luvas e tirou da bainha o facão, daqui em diante esta seria sua rotina. Subiu pelo barro agarrando-se nas árvores, cortou muita unha-de-gato e escalou pequenas paredes dentro da mata escura até atingir o cume de um morro lateral tomado pela macega onde o vento e a chuva o castigaram sem dó.
O mal tempo tornou miserável aquela longa noite dentro de um saco-de-dormir molhado numa rede de selva precariamente esticada em meio da macega gotejante. O dia amanheceu pior que o anterior e para não congelar tomou a esquerda pela crista até encontrar as paredes da invisível pirâmide do Balança encobertas pela espessa neblina. A visão limitada a poucos metros tornava impossível qualquer planejamento de ataque e os obstáculos seriam enfrentados na mesma ordem em que se apresentassem. Imensos paredões foram desviados na sorte e no tato, outros mais foram superados na unha com precários apoios em arbustos, caraguatás, fissuras e canaletas.
De fato, a natureza do terreno e o adiantado da hora lhe diziam que a travessia estava perdida naquela investida, mas o cume estava próximo o suficiente para dar razão a todo o sacrifício e não voltaria para casa sem esta conquista. Pisou no cume pelo meio da tarde com a luz já enfraquecendo num ambiente encharcado, frio e opaco. O raio de visão não ultrapassava aos dois metros e as vertentes ao leste, por onde subiu, já estavam nas sombras enquanto as do sul ainda recebiam a fraca luz difusa refletida pela cortina de neblina.
Descendo rápido estaria em Morretes a tempo de embarcar no último coletivo para Curitiba e pela manhã reassumir o posto na Aeronáutica. Na macega alta e espessa, impossibilitado de reencontrar a exata rota de subida, adotou o procedimento padrão de resolver os problemas por ordem de chegada. Numa fração de hora levou a verdade consigo e só restou o silêncio das pedras no Morro da Balança como mudas testemunhas de um segredo jamais revelado.
Fim.