O mito moderno da natureza intocada

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O paradigma de Antonio Carlos Diegues trouxe a discussão para as ciências humanas dos efeitos da preservação forçada para as chamadas Populações Tradicionais, que são pessoas que não vivem nas cidades e para quem não faz sentido o conceito de impacto ambiental e muito menos a necessidade da preservação da natureza. São pessoas que não têm a cultura do consumismo e nem de acumulação, entretanto são eles os que mais sofrem com as conseqüências das intervenções preservacionista que, de certa forma, privilegiam quem está longe dos espaços naturais e que compram estas idéias por modismo e também por uma ideia simplista sobre preservação, onde o meio ambiente teria que estar livre da atuação humana, mesmo que tenha que ser artificialmente protegido de nós mesmos, apenas para gerar uma contemplação momentânea da população urbana que precisaria de um refúgio espiritual num ambiente maquiado de selvagem, dentre outras interpretações estéticas que não são reais. O que estas idéias têm a ver com os problemas do montanhismo?

Quadro “A Queimada” de Alfredo Andersen.

Quase todas as atividades de montanhismo se dão em lugares com uma natureza bastante preservada, e os motivos para isso não são por acaso. Geralmente estes locais têm um relevo acidentado e por isso representaram uma dificuldade física e econômica bastante grande para o estabelecimento da população.

Assim, as regiões de serras e outras quebras de relevo permaneceram até os dias de hoje, de uma certa, maneira “preservadas”, o que faz do escalador um ser com grande responsabilidade na manutenção destes espaços naturais, que ele frequenta e tira proveitos esportivos, espirituais, por não dizer culturais…

Entretanto, mesmo apresentando uma dificuldade na permanência de populações, estes locais não são desabitados e muito menos intocados. São espaços onde muitos povos ditos “tradicionais” vivem e desenvolvem suas economias e culturas.

Caçada a anta no Rio Ivaí de Franz Keller 1865

Durante séculos, estas populações tradicionais viveram de maneira quase isolada em muito locais que hoje são frequentados por escaladores e outros tipos de excursionistas. A permanência desta população sempre foi diretamente dependente da natureza, de onde eles tiravam seus alimentos e desenvolviam suas economias para subsistência. Estes povos sempre foram extrativistas por excelência, mas nem por isso causavam grandes estragos na natureza, pois sua concepção de trabalho não era acumulativa como é nossa concepção urbano-industrial-capitalista.

Por isso eles podiam caçar, coletar madeira, abrir clareiras e promover queimadas por que em sua pequena escala de atuação, dispersa em vastas áreas, tais impactos eram absorvidos rapidamente pela natureza. Entretanto já estamos no século XXI, vivemos um período de máxima urbanização e globalização da economia e de nossas maneiras de viver. O stress cotidiano da cidade e a publicidade recriam um modismo de consumo do tipo “fugere urbem” e acabam por incentivar nossa grande população urbana a refugiar-se em regiões tidas como “ilhas” de preservação ambiental, de grande beleza cênica, onde o homem da cidade pode testar suas habilidades primitivas, apreciar e reverenciar a natureza dita “selvagem” nos fins de semana e férias para depois voltarem para sua vida comum nas cidades.

Para melhor prover os habitantes urbanos de meios naturais, foram criadas inúmeras Unidades de Conservação que se consolidaram como ambientes naturais protegidas de nossas próprias ações devastadoras, criando áreas artificialmente preservadas para a manutenção de ecossistemas onde exclui-se a ação humana.

A implementação destas áreas de preservação, que são copiadas do modelo americano de parques e reservas nacionais, entrou em conflito em solo brasileiro com a realidade de nosso país, trazendo inúmeros impactos sociais para as populações tradicionais e inclusive para os amantes de atividades ao ar livre como somos nós escaladores, não importando se somos ou não dotados da concepção acumulativo-capitalista em nosso modo de vida urbano.

A afirmação de que a aplicação deste modelo de preservação é ruim para escaladores pode parecer um pouco contraditória, pois muitos escaladores são defensores da bandeira das ações preservacionistas tomadas a cabo por instituições públicas como o IBAMA, ICMbio, etc… O Preservacionismo é uma corrente de pensamento que pode ser descrita como a reverência a natureza no sentido da apreciação estética e espiritual da vida selvagem. Ela pretende proteger a natureza contra o desenvolvimento moderno, industrial e urbano.

Este modelo presa áreas naturais sem moradores para a preservação da vida selvagem, obedecendo a uma visão antropocêntrica, uma vez que é uma visão construída pelo homem sobre a natureza e valoriza principalmente as motivações estéticas, religiosas e culturais dos humanos, o que nos mostra o fato de que a natureza selvagem não foi considerada um valor em si, digno de ser protegido.

Floresta da encosta de William Michaud 1890

Através desta mentalidade têm sido criados parques nacionais que são “ilhas” de preservação onde a atividade humana é estritamente contemplativa, como se o homem fosse alheio à natureza. Isso, como vimos, é uma relação artificial, pois faz parte de uma concepção de um mundo “selvagem” criada pelo homem urbano que é muito diferente da concepção de natureza dos habitantes originais desses meio naturais, já adaptados há centenas de anos ao modo de vida local daquele espaço, os quais, sem poderes políticos são os primeiros a serem prejudicados.

A partir deste ponto de vista e criticando as ações de preservação dos ambientes naturais no Brasil pelas instituições tecnocratas como o IBAMA, órgãos ambientais estaduais e ICMBIO e suas concepções urbanas de natureza, notamos que o preservacionismo é uma corrente que vê com maus olhos os anseios dos montanhistas, que tem outra relação com a paisagem natural. Para nós, a paisagem tem um significado diferente do homem urbano simples, pois estamos no meio natural para interagir com ele e não apenas para contemplar, como é com as populações tradicionais. Sendo assim, somos igualmente prejudicados pelas medidas proibitivas que são tomadas unilateralmente pelos órgãos públicos responsáveis.

Mesmo assim, muitos escaladores ingenuamente, por acreditarem que estão conservando seu ambiente de ações impactantes,  apóiam as medidas proibitivas e preservacionistas, prejudicando a si próprios pois são impedidos de escalar nas chamadas Unidades de Conservação, como se estes fossem a causa dos problemas ambientais que afetam as regiões artificialmente preservadas. Conseqüentemente, isto também prejudica as comunidades tradicionais, que são muitas vezes bem vistas aos olhos dos ecologistas, muitas vezes dotados de sentimentos românticos nos moldes da visão do “bom selvagem”.

Família de índios botocudos, retratada por Debret (1834).

Disto podemos fazer um questionamento. Serão os montanhistas simples visitantes de parques, ou eles teriam alguns direitos como têm as populações tradicionais? O montanhista não é uma população tradicional, no sentido conceitual da palavra, mas merecem, como eles, uma diferenciação, veja por que:

Várias  medidas têm sido tomadas por clubes e federações de montanhismo para minimizar os impactos ambientais das escaladas, para que a atividade se “encaixe” na proposta Conservacionista. Esta sim muito mais coerente, entretanto difícil de ser aplicada em um país que não valoriza sua natureza, sucateando Parques e outras Unidades de Conservação que não têm investimentos e carecem de braços e cérebros para uma gestão mais democrática e que de fato preserve a natureza e permita que as pessoas conheçam nossos patrimônios paisagísticos.

Os montanhistas, muito tempo antes do ecologismo ser moda, são pessoas que trabalham em prol da conservação da natureza. Diversas ações nossas, tanto no Brasil, quanto no resto do mundo, resultaram na criação de Unidades de Conservação, mas o contrário não acontece, depois de criadas estas Unidades Conservação, passamos a não ter mais a liberdade de antes e com isso a cultura do montanhismo vai morrendo aos poucos. Para tanto não precisa nem de proibir, como muitos parques fazem de costume, basta apenas botar regras rígidas de segurança acabando com a aventura e risco, dois princípios fundamentais ao montanhismo.

Contudo vamos deixando de ser montanhistas e aos poucos vamos virando “turistas” de montanha. Não que o segundo seja ruim, mas o primeiro veio antes e é muito melhor.  Substitui-se o montanhismo, que é praticado há mais de 500 anos e é consolidado como uma cultura há mais de 200, sendo reconhecido como tal no Brasil há exatos 130 anos, por uma mera atividade de contemplação da natureza, sem significado, sem graça e ainda superficial.

Diferente do que os técnicos e normatistas acham, o ramo da administração de Unidades de Conservação não se encaixa dentro da área das Ciências Biológicas e nem Geociências, muito menos nas Exatas, mas sim na das Ciências Humanas. Como esperam preservar a natureza impedindo que a gente a conheça? Para piorar ainda acabam com uma cultura que, de certa forma, ajudou a criar a Filosofia Preservacionista.

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Sobre o autor

Pedro Hauck natural de Itatiba-SP, desde 2007 vive em Curitiba-PR onde se tornou um ilustre conhecido. É formado em Geografia pela Unesp Rio Claro, possui mestrado em Geografia Física pela UFPR. Atualmente é sócio da Loja AltaMontanha, uma das mais conhecidas lojas especializadas em montanhismo no Brasil. É sócio da Soul Outdoor, agência especializada em ascensão em montanhas, trekking e cursos na área de montanhismo. Ele também é guia de montanha profissional e instrutor de escalada pela AGUIPERJ, única associação de guias de escalada profissional do Brasil. Ao longo de mais de 25 anos dedicados ao montanhismo, já escalou mais 140 montanhas com mais de 4 mil metros, destas, mais da metade com 6 mil metros e um 8 mil do Himalaia. Siga ele no Instagram @pehauck

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