Não era de hoje que ficava namorando as serrinhas sitiadas a oeste de Pirapora do Bom Jesus. Depois de andarilhar de todas formas possíveis ao Serra do Voturuna e do Capuava, meu olhar voltou-se pras elevações daquele quadrante. A facilidade de transporte e proximidade de Sampa eram motivos mais de sobra pra fuxicar aqueles morrinhos simpáticos, bastando apenas o trabalho de bolar uma logística apropriada de apenas um dia. Foi assim que acabou vingando o Morro da Viúva e o Alto do Tuaçu, ano passado. Pronto, era hora do Morro da Aparecidinha. Vamos lá então.
Embora seja uma elevação pertencente á pacata Araçariguama, me pareceu mais viável acessar o morro por Pirapora do Bom Jesus e uma vez lá decidir, conforme disponibilidade, voltar pro mesmo lugar ou pra cidade vizinha. Sendo assim, eu e o Celestino saltamos do latão na cidade romeira por volta das 10hr da manhã daquele domingo ensolarado. Na verdade desembarcamos no segundo ponto depois de cruzar o Rio Tietê, na minúscula pracinha que dá acesso á continuidade da “Estrada dos Romeiros” (SP-312), pra ver o busão se pirulitar pro ponto final perto dali, no Jd Bom Jesus.
Tomamos então o asfalto da SP-312 e lá fomos nós, acompanhando o asfalto na direção noroeste, dando as costas a cidade. A decisão de ir a pé ao inicio da trilha se deu pela pouca frequência de transporte público até Cabreúva. Mas isso não era problema pra gente, bem disposto afim de andarilhar os quase 10km de chão que tínhamos pela frente, ao inicio da trilha de fato. Pois bem, o fato é que a gente se ajeitou na margem da via e foi conversando animadamente, nem vendo o tempo passar. No trajeto, além dos trocentos bikers no sentido contrário, do espelho dágua da Represa do Rasgão e da imponente silhueta da Serra do Japi, despertou-nos a atenção nosso primeiro contato visual com Morro da Aparecidinha, erguendo-se altivamente ainda distante numa curva, a nossa esquerda.
A pernada pelo asfalto é longa e aos poucos perde altitude, deixando os campos altos, até chegar no nível do Rio Tietê. Somente após o limite entre Pirapora e Cabreúva que somos cercados de muita mata verdejante, pontuada raramente por um ou outro sitio. E assim, após mais de 10km de chinelada abandonamos o asfalto pela via de chão que nasce á esquerda marcada por uma casinha bem rústica que dá acesso ao estreito pontilhão que cruza o espumoso Rio Tietê. Mas por ser quase 13hrs, antes de passar pro outro lado fizemos um breve pit-stop pra descansar e mastigar alguma coisa.
Cruzamos a ponte ao mesmo tempo em que Celestino me diz estarmos saindo da cota dos 600m de altitude. Do outro lado há uma casinha onde alguma bicharada circula em volta e de onde uma estrada se pirulita sentido sudoeste. Pois esta é a tradicional via que interliga a Estrada dos Romeiros ao Bairro de Aparecidinha, basicamente bordejando a serra pelo seu contraforte oeste, utilizada por veículos e bikers. Ao invés disso, retrocedemos por uma porteira de arame, tomando outra picada que faz o mesmo trajeto, quase que paralelo á via supracitada, mas através dum trajeto muito mais rústico e interessante.
O inicio do caminho bordeja um alto e frondoso arvoredo composto de figueiras e jequitibás, pra logo depois a íngreme ascensão se dar por descampados de capim, baixos arbustos e muitos cupinzeiros. Um decrépito cocho surge á direita, engolido pelo mato, deixando claro que aquela vereda já fora uma ativa estrada, fato reforçado pelo eventual corte vertical na encosta. Trechos de chão compacto se reverzam com outros tremendamente erodidos, formando micro desfiladeiros no meio da trilha. É preciso atenção, principalmente pelo fato do caminho todo estar “minado” por sujeirinha fresca de vacas e bois.
O caminho dá uma breve ziguezagueada pra sudeste, adentrando num bem-vindo trecho sombreado e bastante florido, pra logo depois desembocar noutro patamar mais elevado, novamente em descampados de capim e baixos arbustos, porém de declividade mais amena. Neste trecho temos o primeiro vislumbre do nosso objetivo, erguendo-se de forma respeitável a nossa direita, onde o cume do Morro da Aparecidinha parece coroado por poucas arvores do lado do que parece ser um enorme rochedo aflorando na encosta do seu contraforte norte. A pernada se mantem um bom tempo nesse ritmo no aberto, sob um sol inclemente de rachar, onde nem as araucárias solitárias parecem amenizar o calor daquele dia.
Indo claramente de encontro ao colo do espigão principal, sentido sudoeste, agora penetrando num vasto e espesso reflorestamento de eucaliptos que abranda o calor inclemente daquele inicio de tarde. Aqui as trilhas se ramificam em várias outras que parecem dar de encontro com o caminho dos veículos, mas orientado pela
bússola consigo manter a rota planejada que prossegue sinuosa pelo antigo carreiro. O caminho bordeja um fundo vale e atravessa outro trecho mais fechado, mas nada que mãos afastando arbustos não resolvam. Logo a pernada suaviza e se mantem quase em nível, subindo de forma imperceptível até o selado principal. No caminho desperta atenção um enorme cupinzeiro de quase dois metros, que deve ser residência pra peçonhentas ou qualquer outro bicho local. Sim, apesar da proximidade da urbe e de fazendas, encontramos ali fezes de pequenos felinos, provavelmente gatos-do-mato.
Ganhamos a crista principal, tomada por uma clareira onde repousava uma grande linha de transmissão, coisa de uma hora após cruzar a ponte e o GPS do Celestino acusava exatos 880m de altitude. Dali em diante o sentido é mais que óbvio, bastando acompanhar a cumieira que se espichava ondulada na direção nordeste. A presença de capim alto no começo não dificulta em nada pois logo depois o trajeto limpa ou avista-se providencialmente um carreiro de boi, ora entre pedregulhos soltos ora em meio ao pasto baixo. Não tem erro algum.
E lá vamos nós, percorrendo aquela abaulada crista que ora rasga trechos florestados ora descampados, com mato caindo pra ambos lados. A caminhada é tranquila e desimpedida, mesmo nos trechos onde a vereda se perde, mas onde basta apenas avançar através dos arbustos no caminho. Após dois cocorutos finalmente emergimos em definitivo no aberto, onde a vista realmente se expande pra todas as direções, mas nosso olhar se fixa unicamente no último cocoruto, o cume principal, ao lado do enorme e protuberante rochedo avistado horas antes. O caminhar é vagaroso pois apesar do firmamento estar tomado por uma clara opacidade, o calor é palpável e desgastante.
Atingimos o largo e espaçoso cume por volta das 15hr. Tomado por clareiras e algum arvoredo, fizemos dos quase mil metros de altitude mais um pit-stop pra descanso e beliscada de lanche, no capim a sombra do eucaliptal. O calor daquela tarde estava reduzindo significativamente o precioso liquido em nossos cantis, motivo pelo qual tivemos que racionar pra passar sede nas horas seguintes. Entretanto, a vista que tínhamos dali era mais que regozijo ás nossas necessidades: a leste esparramava-se a o Morro da Viúva e sua continuidade, na Serra da Sapoca; ao noroeste o sinuoso e estreito espelho dágua do Tietê tangenciava o espigão da Serra do Piraí, que por sinal oculta Cabreúva mas deixa a vista o minúsculo vilarejo do Bananal, a margem da SP-312; ao norte se tem em primeiro plano a exuberante Serra do Guaxinduva e, logo atrás, a imponente Serra do Japi recorta o verde do azul do céu em todo horizonte; por sua vez o quadrante sul surge bem mais expandido, exibindo de leste a oeste, respectivamente, a minúscula Pirapora do Bom Jesus, o Morro do Capuava, a imponente Serra do Voturuna, a pequenina Araçariguama, o Morro do Mombaça e, ao fundo, elevando-se da horizontalidade, o Morro do Saboó.
Revigorados, na sequencia prosseguimos a jornada apenas nos mantendo pela crista, agora começando a descer pelo contraforte leste da serrinha. Aqui o trajeto é intuitivo, mas eventualmente encontrávamos algum carreiro de boi que seguia naquela direção que nos poupava caminhar pelo alto capinzal que as vezes surgia. Mas no geral a rota é descampada e fácil de navegar, sempre tangenciando as florestas de mata mais espessas. Apenas no trecho final, quase no pé da serra, é que se cruza um capão de mata repleto de trilhos, mas onde todos convergem na direção desejada. Cavalinhos pastando aos montes imediatamente nos lembraram dos enormes carrapatos agarrados á nossas pernas. Paciência, em trips desta natureza esses “souvenires” são algo normal e corriqueiro…
Dito e feito, caímos nos fundos duma fazendinha e dali simplesmente tomamos a precária vereda que nasce (ou finda) nela. Esta vereda basicamente acompanha o rio Tietê, ora a distância ora próximo, em meio a uma íngreme encosta florestada. Dali em diante o caminho se afasta do rio, penetra por seguidas baixadas, banhados de afluentes, mas sempre perdendo altitude. No final da vereda desembocamos noutra fazendinha abandonada, onde tomamos um estradão de chão onde a
bússola foi bastante útil nas bifurcações que se seguiram, uma vez que não vimos ninguém pra pedir infos se fosse o caso. O lance é que fomos sempre tocando pro sul sem desviar e nenhum instante dessa rota.
Dessa forma, pouco depois das 17hrs chegamos no minúsculo bairro rural da Aparecidinha, onde há uma panorâmica de todo espigão palmilhado horas antes, sob outra perspectiva. O bairro é todo disperso e sem um centro propriamente dito, mas seu destaque é a simpática Igreja que lhe empresta o nome, cuja capela de arquitetura neogótica data do início do século XIX. Ali nos informamos não somente de condução como enchemos nossos cantis, que até ali estavam totalmente secos. Nosso plano original era voltar a pé a Pirapora, mas como isso certamente nos tomaria cerca de 3hrs decidimos embarcar num latão que passou poucos minutos depois, sentido Araçariguama.
Viagem esta de 8kms tão sacolejantes quanto empoeirados de terra vermelha, que num piscar de olhos nos largou no centro da cidade. De Araçariguama pra Sampa opções não faltam, desde o Cometão básico, transporte pra São Roque ou até mesmo direto pra Itapevi, que foi a nossa opção mais viável pelo horário. Em Itapevi, fizemos mais um pit-stop, mas esta vez pra encher a cara num boteco a frente da estação. Já passava das 19hr mas e dai? Entre salgados e brejas comemoramos a pernada, onde tudo pareceu dar certo, a nosso favor.
Apenas pra concluir este relato, reitero que o Morro da Aparecidinha é uma caminhada bastante tranquila, rústica e cênica, porém exigente dependendo da logística adotada. Mas se não ta disposto a perder mais de duas horas de asfalto, como descrito aqui, minha sugestão é pegar o busão pra Cabreúva e saltar no ponto desejado, no asfalto. Ou fazer otrajeto inverso, começar a andar a partir do bairro de Aparecidinha e retornar pela estrada de ligação com mesmo bairro, num circuito que cruza e retorna pelo contraforte oeste. Mas é preciso ficar atento aos horários do latão rural, cujos horários são bem irregulares aos finais de semana. Ou quiçá esta mesma incerteza seja mais um tempero pra aventura neste simpático morrinho, cujas largas vistas são atualmente frequentadas unicamente por cavalinhos errantes, mas que espera ansiosamente a sua visita.