Viagem breve porém cansativa, desembarcamos na pacata Águas da Prata pouco depois do meio dia, sob um sol escaldante de inicio de primavera seca. Viagem breve por conta dos meros 240km que separam a bela cidade, que faz parte de Circuito das Águas e antecede Poços de Caldas, mas cansativa pois o busão da Cometa lembra qualquer latão interiorano fazendo inúmeras paradas ao largo da Rod. dos Bandeirantes (SP-348), dilatando desnecessariamente o tempo de viagem. No caso, as demoradas paradas em Campinas, Mogi Guaçu, Mogi Mirim e São João da Boa Vista praticamente duplicam o tempo duma simplória viagem que deveria ser de apenas duas horas.
Pois bem, uma vez na simpática cidade (800m de altitude) ajeitamos as tralhas, enchemos nossos cantis (e outros mais) numa padoca e pusemos-nos a andar. “Vocês vão fazer a peregrinação?”, perguntou o senhor do estabelecimento. Respondi que não, atentando pra segunda vocação da cidade fora a notória fama de estância hidromineral que a apelidou de “Rainha das Águas”. Sim, ali em Águas da Prata é que literalmente começa o “Caminho da Fé”, rota peregrinatória nos moldes de Santiago de Compostela que nasce ali e vai até Aparecida em tortuosos 900kms.
Após algumas fotos pela simpática estação ferroviária, tomamos o asfalto da SP-342 e nos pirulitamos pro norte, sentido Poços de Caldas. E assim, tangenciando rapidamente a pracinha central e o Bosque Municipal, deixamos o borburinho da minúscula Águas de Prata lá atrás pra então ganhar a sinuosa rodovia, que se esgueira pela refrescante sombra do arvoredo em ambas margens da via. Pela direita, nossa pernada é acompanhada pelo marulhar agradável do Córrego do Quartel, um dos grandes cursos dágua locais, juntamente com o Rio da Prata, que corre a sudoeste da cidade.
A caminhada transcorre tranquila e desimpedida entre muita conversa com a Lau, e apenas 2kms após iniciada é que deixamos o frescor da mata da baixa morraria que espreme a rodovia, pra então abraçar os largos horizontes (e sol inclemente) que se descortinam a nordeste. Uma verdejante serrinha se ergue na paisagem daquele quadrante, onde destoam dois cocorutos maiores quase idênticos, que por sua vez tem o sugestivo nome de “Morro das Tetas”. No entanto, a silhueta escarpada destes picos iniciais se sobrepõe ao nosso verdadeiro destino, que se esconde bem atrás.
Abandonamos então o asfalto na primeira rotatória que surge no caminho, bem antes do pedágio, tomando a empoeirada estrada de chão que nasce pela direita e toca na direção das várias fazendas que existem por ali. E num piscar de olhos ganhamos os trilhos da Mogiana, antiga linha ferroviária muito utilizada no escoamento da produção de café do interior paulista, no século passado. Sim, poderiamos ter comecado a caminhar a partir da estação de Águas da Prata até ali, mas por conta do horário avançado decidi cortar pelo asfalto (muito mais fácil de andar!) de modo a otimizar bons kms da chinelada programada praquele dia.
Pois bem, agora começava efetivamente o trecho de ferrotrekking programado do rolê, que diga-se foi bastante penoso pra Lau devido ao tremendo calor daquele inicio de tarde. Não bastasse o sol fritando diretamente nossos miolos, o fervor irradiado pelas britas e cascalho entre os dormentes fazia com que o sol também cozinhasse a gente de baixo pra cima. Agora entendi o motivo de muita gente recomendar a pernada pelos trilhos nas primeiras horas da manhã. Paciência, não era nosso caso. Mas devagar e forte, além de muitos goles de água e paradas nas touceiras de colonhão pelo caminho, avançamos os cerca de sinuosos 2kms totalmente expostos e sem nenhuma sombra. Como consolo deste desgastante trecho, temos as bonitas vistas proporcionadas na passagem sobre uma alta ponte sobre o Córrego da Platina e a base da serra vista de outra perspectiva. No entanto, bom mesmo era ver o quanto nos aproximávamos cada vez mais do sopé da serra, onde um minusculo vale verdejante nos aguardava espremido entre as dobras da montanha.
A pernada pelos trilhos transcorre sinuosa e sempre pro norte, mas não demora pra desviar abruptamente pra leste na altura duma plaquinha metálica com marcacão de “48”. Ali a via férrea vai de encontro com sopé verdejante da serra, quase na base do “Morro das Tetas”, pra depois dar continuidade á sua rota anterior, margeando o sopé florestado dos morros pro norte. Antes disso, porém, abandonamos os trilhos por uma picada de terra que nasce pela direita e se embrenha vale adentro, agora na direção leste. Pronto, uma vez aqui não tem mais segredo.
Dar adeus áqueles trilhos escaldantes era tudo que a Lau queria e não era pra menos. A paisagem então mudava radicalmente, uma vez que além do calor escaldante e das paisagens ressequidas dar lugar ao frescor da verdejante mata fechada, aquele bem-vindo vale nos brindava com aquele vigor intrínseco que a simplória presença de água proporciona. E no caso, era muita água. Automaticamente a Lau renovou-se, esboçando um enorme sorriso de orelha a orelha. Sim, aquele era um estreito vale formado por algum afluente do Córrego do Quartel, e seria através dele que ganhariamos boa parte da altitude ao alto da serra.
Então teve inicio uma legítima subida de rio através duma estreita vereda que costurava ambas margens do borbulhante regato, neste inicio de subida que pareceu não ter desnivel algum dada a horizontalidade predominante do terreno. No entanto, os inúmeros pocinhos e pequenas cascatinhas do trajeto eram mais que animadores diante do que viria pela frente, algo recorrente de qualquer descida (ou subida) pela Serra do Mar. Clareiras constantes em ambas margens denunciam que a galera das redondezas não deixa por menos quando se trata de curtir um tchibum num riachinho e, por incrivel que pareca, a inexistência de lixo despertou bastante minha atenção.
Somente mais a frente é que a subida começou de fato a apertar, mas sem grande dificuldade de transposição. Apesar da estiagem brava desta época as quedas do trajeto estavam com volume razoável, e só depois soube que o trajeto da vereda é chamado de “Sete Cachoeiras”, embora eu visse bem mais do que sete ao largo de toda ascensão. Bem, eles devem de chamar de cachu as maiores e por isso vou adotar esta denominação. A primeira e segunda quedas são grandes e tinham um poço (raso) razoável pra banho, porém a laje por onde escorria a água era bem inclinada e o setor que as abrigava era cercado de mato e sombra, além de pouco convidativo. Por esta razão passamos batido por elas á espera de coisa melhor.
E esta espera valeu a pena. Após ganhar altitude pela ingreme encosta direita e chegar na cota dos 950m, a trilha desembocou nas lajotas que cercavam a base da bonita terceira queda, onde as águas despencavam duma altura considerável num enorme piscinão que brilhava á luz das 15hrs. O local era perfeito pra descansar e foi ali mesmo que fizemos nosso primeiro pit-stop prum tchibum refrescante e pra mastigar um delicioso lanche. Água gelada porém altamente revigorante, era o que precisávamos pra dar continuidade á pernada, cuja tendência dali em diante era ficar cada vez mais ingreme e cansativa. Mas como nada é totalmente perfeito, foi lagarteando ao sol que terminei sendo picado nas costas por um atrevido marimbondo que não deve ter gostado da minha presença, dorzinha esta que me acompanhou até o final da trip. Foi aí que lembrei duma estatística que diz que as serras mineiras são as que tem maior indice de ataques de abelhas e marimbondos.
Devidamente revigorados, retomamos a caminhada subindo forte em meio a um espesso túnel de bambuzinhos que nos jogou outra vez no interior florestado daquele bonito vale. Cachus e piscinas se sucediam continuamente que até parei de contabilizar, me limitando apenas a clicar sua beleza toda natureba, da qual éramos donos absolutos daquele dia. E assim, nos segurando forte em troncos e raízes, e desviando da mata tombada ganhamos um patamar mais elevado, onde o terreno pareceu nivelar. Na verdade, estávamos no alto de mais uma bonita queda e perto dali havia uma boa clareira com sinais de acampamento, do lado duma pedrona de aspecto retangular. Pausa pra fotos e retomada de fôlego.
Na sequência veio um trecho que adentrou mais no bosque interno do vale pela margem esquerda, sem nenhum desnivel, sempre acompanhados pelo onipresente marulhar do rio ao nosso lado e dos sons tipicos da natureza. Mas depois de um tempo de pernada sussa e tranquila é que o terreno novamente embicou, e bem forte desta vez. A encosta ingreme daqui só foi vencida com muito suor, busca de agarras, degraus e qualquer apoio que impulsionasse o corpo pra cima. A dificuldade só foi maior porque o chão seco se esfarelava ao menor contato. Teve um momento onde tive dúvidas e me adiantei na trilha (aproveitando pra deixar a Lau descansando pois sentiu as pirambas) pra ver se realmente aquele era o caminho certo. Mas felizmente estava na rota certa, minha intuição ainda não me deixou na mão.
Depois de subir e descer outro tanto com ajuda do inestimável “quinto apoio”, passamos pro outro lado do rio em meio a umas trocentas pedronas roladas vale abaixo, onde pequenas cascatas davam vida áquele emontoado de rocha e mato. Na outra margem a subida não suavizou conforme o previsto, pelo contrário. A escalaminhada teve continuidade em meio enormes monolitos que se erguiam na encosta, eventualmente tangenciando rochedos, pocinhos e estreitas (convidativas) prainhas fluviais onde eu já estudava encostar o corpo em definitivo. O suor corria farto pelo rosto mesmo naquele vale agraciado de muita sombra, e foi empolados num rochedo do alto de outra cascatinha que fizemos mais um pit-stop de descanso e pra abstecer todos nossos cantis. Isto porque estimava sair em breve do vale e a presença de água fora dele era incerta.
O trecho final da subida do vale foi bastante cansativo pra ambos: pra mim, que ia na frente estudando a continuidade da trilha; e pra Lau, que sentia o peso do descondicionamento naquela árdua subida com uma cargueira nas costas. Eu já estava preocupado com o horário, pois eram quase 17 e meia, até que desembocamos na suposta sexta queda. O enorme e largo paredão quase vertical por onde escorria água quase nem teve a contemplação que merecia, em detrimento da escalada do alto emaranhado de raizes que garantia sua ascensão pela lateral, de onde ja podia avistar o céu azul findando naquele dia. E pra quem sobe montanhas ou rios sabe que avistar o céu é sinônimo de que já não há mais o que subir.
Dito e feito, após as raízes abandonamos a mata fechada pra ganhar então a encosta coberta por capim dourado, que ganhava tons avermelhados pelo sol se pondo no horizonte. Passamos batido pela “Pedra do Mirante”, um bonito cocoruto rochoso com linda vista de todo vale percorrido, e finalmente caímos nos descampados que marcam a margem da continuidade do rio pelo amplo selado da serra. O Astro-Rei pousava rapidamente á oeste, trazendo aos poucos a escuridão pro alto da serra, enquanto eu armava nossa barraca numa clareira perto da água. Os pés voltavam a respirar sem as botas no mesmo tempo em que roupas suadas e sujas davam lugar a vestes limpas e quentes. O corpo ainda quente e adrenado nem sentiu a queda brusca de temperatura no momento em que mastigávamos nossa última refeição. Sim, optamos por jantar lanches previamente preparados a esquentar o que fosse num fogareiro, otimizando peso na
mochila e já prevendo o cansaço inerente praquela noite. E coloca cansaço nisso, uma vez que bastou o manto negro da noite se debruçar pelo vale que a gente se encasulou no aconchego dos sacos de dormir. E dali literalmente apagamos e não vimos mais nada. Minto, naquela fria madrugada saí nos 1180m de altitude pra regar a moita e pude ver o firmamento estupidamente estrelado, onde o bréu noturno recortado pela silhueta da serra só era maculado pela resplandescência das cidades próximas, principalmente Águas da Prata, são João da Boa Vista e São Roque da Fartura.
Levantamos assim que os primeiros raios do Sol tocaram as encostas daquele lindo vale e imediatamente colocamos as tralhas nas cargueiras, ao mesmo tempo em que mastigávamos avidamente nosso desjejum. Nada melhor que uma boa noite de sono pra recompôr o corpo cansado e dolorido, embora ainda sentisse a maledita picada do marimbondo nas costas. Apesar disso, a Lau queixava-se de bolhas nos pés mas consegui convencê-la que o pior já tinha sido vencido e que o restante até o alto do morro seria brincadeira de criança. E eu estava certo pois nos encontrávamos num selado de ligação ao espigão principal, que tem acesso facilitado pelo quadrante leste, região pré-planáltica repleta de fazendas por onde aventureiros acessam o morro em breves bate-voltas.
Pusemo-nos a andar por volta das 7:30, com o Sol lentamente aquecendo aquela manhã fresca e com promessas de tempo limpo e aberto. Antes de partir fomos clicar e encher nossos cantis na sétima queda, cujo rugido de água caindo era audível do nosso acampamento, e dali ganhamos uma precária estrada de chão que vem de Águas da Prata e é por onde a galera acessa o vale estando motorizada. Caminhamos menos de 2km sinuosos pro sul pela supracitada via, mas logo a abandonamos por uma óbvia vereda nascendo pela esquerda que ia na direção desejada.
Esta trilha cruzou um borbulhante regato e logo se pirulitou numa área aparentemente privada de reflorestamento. Uma placa proibindo o acesso a motoqueiros e praticantes de off-road reforça isso. Nossa rota seguiu tortuosa mas num caminho bem batido pra nordeste, onde caímos na beirada duma grande área de plantio. Ladeamos a mesma pro norte até reencontrar uma larga picada adentrando num bosque de pinnus, agora pra noroeste, ganhando altitude de forma imperceptível. Dali já avistávamos o pico bastante próximo e deduzimos que o ataque final se daria nos próximos minutos.
Como que previsto, logo caimos num descampado, cruzamos outro bosque e dali passei a procurar o contraforte menos ingreme pra galgar os finalmentes do nosso objetivo. Primeiro varamos uma mato baixo, composto de capim e pequenos arbustos, até que achei uma trilha que subia a montanha e procurei me manter nela. Na verdade era um trilho de boi mas servia aos nossos propósitos, e lá fomos nós subindo vagarosamente aquela ingreme encosta de capim dourado dançando ao vento, enquanto horizontes se ampliavam por sobre o ombro.
E após um tempinho pela árdua encosta ganhamos a crista principal do espigão que inclui o Morro da Bandeira. Dali bastou se esgueirar pelo capim ralo e da vegetação ressequida de cerrado e num piscar de olhos nos vimos nas lajotas esparssas que dominam os 1450m do alto do morro. Arbustos, rochas e capim dividem espaço com um marco metálico retorcido que se ergue no cume. O chão irregular forrado de pedras soltas desanimam qualquer tentativa de armar uma barraca, no entanto nada impede que um bivaque selvagem seja feito sobre as lajotas inclinadas que salpicam ao redor. Satisfeitos, eu e a Lau lagarteamos um bom tempo numa destas rampas de pedra, saboreamos um saboroso sanduba e bebericamos água de nossos cantis sem dó, uma vez que sabiamos que passariamos por um rio na volta. Lixo? Nenhum. Sombra? Nenhuma. Vista? Panorâmica e ela se estende de norte a sul, abrangendo as serras que antecipam Poços de Caldas como toda crista contornada, incluindo o Morro das Tetas. Ao longe, Águas da Prata e São João da Boa Vista surgiam pequeninas á sudoeste. Ao norte a crista serrana culminava num cocoruto onde, dizem por aí, existir vestígios de antigas trincheiras dos confrontos de 32 cobertas pela mata, mas isso não pudemos confirmar pois nos limitamos a visitar o ponto culminante daquele serrote.
Passava das 11hrs de muito relax quando decidimos que era hora de voltar. Retornamos sem pressa pelo mesmo caminho, até reencontrar o rabicho da estrada que vai de encontro ás cachus. Antes, porém, uma oportuna parada num refrescante regato a meio caminho onde a Lau tratou das bolhas e eu me esbaldei no enorme piscinão no forte calor do meio-dia. O resto da descida se deu em meio a um interminável reflorestamento de eucaliptos que logo deu lugar a uma crista descampada que caia do espigão principal na direção oeste, paralelo ao vale palmilhado o dia anterior. Apesar do sol que fritava nossos miolos, a paisagem dali era bem interessante pois contrastava os altos e ressequidos contrafortes dos morros visitados e o fundo verdejante dos vales no seu sopé.
Depois de descer inipterruptamente por uma poeirenta estrada cercada de pés-de-café, chegamos no pacato bairro rural onde começamos o ferrotrekking. Por incrivel que pareça e pra alegria da Lau, enquanto recobrávamos as forças pra encarar o resto de asfalto até a cidade, embarcamos sem pestanejar num latão que incrivelmente passou naquele mesmo horário. Ufaaaa… E em questão de poucos minutos saltamos na pacata Águas da Prata, onde nos mandamos pro primeiro restaurante á nossa frente. Lá bebemoramos e almoçamos um farto prato local (com direito a repetição), pra depois encarar a cansativa viagem de busão no retorno pra Sampa.
Pra finalizar este relato, gostaria de ressaltar que saindo bem cedinho de carro da capital paulistana é possivel realizar o rolê acima descrito num bate-volta puxado, uma vez que a navegação é relativamente fácil (toda visual) e o peso no lombo, reduzido. Águas da Prata foi a grande surpresa natureba pertinho de Sampa, pois a cidade tem outros atrativos bem interessantes como a pernada até a Serra da Cascata, o Morro da Candeia, o Serrote, a Pedra do Boi e a borda do vulcão de Poços de Caldas, sem contabilizar as outras tantas cachus e ruínas históricas espalhadas pelos arredores. Assim, não bastasse os titulos de Estância Hidromineral, de “nascimento” do Caminho da Fé e palco ativo da Revolução de 32, agora esta simpática cidade pode se gabar de também agradar também aos aventureiros, que podem encontrar grandes surpresas por suas incontáveis trilhas, rios e montanhas.
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Vocês estavam literalmente há uns 70 metros de uma trincheira de pedras enorme que praticamente divide metade da encosta do morro no sentido norte, rumo a um morrinho pontudo envolto a plantação de eucalipto…