Há muito tempo eu tinha curiosidade em conhecer o Morro do Diabo, que dá nome a um Parque Estadual no limite oeste de São Paulo, numa região plana de lavoura e pecuária. Como montanha, ele é bastante trivial, embora bem íngreme. Mas é uma formação muito interessante, com uma natureza e uma história que valem a pena relatar.
O Morro do Diabo
É um longo exercício chegar até lá, pois o município que abriga o Parque Estadual do Morro do Diabo fica longe de São Paulo, você terá de trafegar pelas Rodovias Castelo Branco e Raposo Tavares.
O município foi chamado de Teodoro Sampaio, em justa homenagem ao engenheiro que chefiou, no início do século XX, o mapeamento daquelas terras então desconhecidas do Estado, para fins de sua colonização.
Já naquela época a mata estava sendo substituída pela agricultura, o que motivou este comentário seu: Enfim pode-se dizer que aqui se derruba uma gigantesca peroba para em seu lugar plantar 4 a 5 grãos de milho. Se a isso se dá o nome de lavoura, eu não sei o que seja destruição.
O grande acidente geográfico desta região é o Rio Paranapanema, talvez o mais limpo dentre os grandes cursos d´água do Estado. No seu começo, ele desce a Serra de Paranapiacaba, correndo depois no sentido oeste, como é comum nesta região do Brasil, que apresenta um declive naquela direção. Percorre quase mil km até a sua foz no Rio Paraná.
O Parque Estadual resultou da criação de uma reserva para preservar a vegetação nativa do Pontal do Paranapanema, que é o triângulo oeste do Estado de São Paulo, onde confluem os cursos do Paranapanema e do Paraná. Toda esta região, com amplos 300 mil hectares, havia sido demarcada como uma unidade de conservação, mas não resistiu ao desmatamento causado pela invasão da pecuária.
A reserva foi transformada em parque, quando ainda havia pastoreio às margens do Paranapanema, do gado então pertencente ao poderoso Coronel Tolosa. Acredite, não foi nada fácil retirá-lo. Ela possui um desenho triangular, com sua base ao sul por onde corre o Paranapanema.
Ele é infelizmente atravessado por uma rodovia asfaltada, apelidada ridiculamente de estrada parque. Ela vai para Rosana, onde está uma importante hidrelétrica e uma das sete pontes que atravessam o Paraná. Assim como na reserva gaúcha do Taim, a estrada causa atropelamentos de animais nativos, que enfrentam incautos a velocidade irresponsável dos motoristas.
Os cerca de 35 mil hectares do Parque abrigam exemplares de mata atlântica, em especial da peroba rosa de que nos falava Teodoro Sampaio, além de ipês, cedros e paus marfim. Este tipo de vegetação formava uma imensa e frondosa floresta cobrindo todo o sudoeste do Estado de São Paulo.
Procura-se hoje conectá-la a outras matas próximas preservadas, através de corredores florestais plantados. Quem sabe assim essas espécies se regenerem e recriem o antigo ambiente natural. Você sabe, uma floresta é mais do que um conjunto de árvores – é uma coleção de vida, com flora e fauna associadas.
O território bem conservado do Parque permite a ocorrência de antas, bugios, onças, jaguatiricas e suçuaranas. Foi emocionante encontrar a foto de dois destes felinos no topo do Morro do Diabo, calmamente mirando o fotógrafo, parecendo até animais domésticos. Uma delas chegou até a cidade, tendo sido capturada e retornada ao Parque. Provavelmente, você encontrará belas borboletas, das quais o Parque é muito rico, bem como de aves e répteis.
Em especial, o biólogo Ademar Coimbra descobriu o primeiro exemplar do mico leão preto (ou mono carvoeiro), que era então tido como extinto – uma espécie é assim considerada quando não é avistada por mais de 40 anos. Felizmente, hoje o local é refúgio da maior população destes animais no Brasil – acredita-se que mais de mil deles (o assunto é controverso, pois existe outro Parque no Estado que alega deter a primazia).
E, bem no centro deste triângulo, fica o Morro do Diabo, debruçado sobre a rodovia. Na realidade, ao chegar a Teodoro Sampaio vindo do leste, você pôde avistar um grande tabuleiro à sua direita, uma formação vertical que contrasta com a uniformidade plana da região.
É este o Morro do Diabo, estranho nome dado em função da morte de bandeirantes trucidados pelos índios caingangues, cujos pertences depois achados deram a impressão de ser obra do diabo. Mas os antigos dizem que as extremidades do morro eram mais acentuadas e verticais, deixando a impressão de haver dois chifres de cada lado do topo – naturalmente, pertencentes ao diabo. A tempo: não sei se o diabo existe, mas caingangues, não mais.
Essa curiosa formação é chamada de testemunho, pois resultou da extrusão de uma rocha endurecida, que sobreviveu à erosão do arenito mais brando à sua volta. Com o tempo, o relevo foi sendo rebaixado e aplainado, deixando exposto o material mais resistente. Existem muitas dessas formações nos relevos do mundo.
Alcançar o topo do Morro do Diabo é trivial, pois a trilha é curta, sombreada e sinalizada, apesar de íngreme. Nela você poderá observar os arenitos das conhecidas formações Bauru e Caiuá, cujas pedras servem de calçamento para a trilha.
O Morro apresenta dois cumes, que ocupam cada lado da extensão do platô elevado. Suas vistas estão voltadas para o norte, quando é possível vislumbrar a floresta que o recobre, bem como os assentamentos e as lavouras mais distantes. No sentido inverso, você terá o panorama das águas reluzentes do Paranapanema. São vistas muito verdes, plácidas e bonitas.
Quando visitei esta região, a mim pareceu conveniente pesquisar outros locais próximos. Com alguma dificuldade, busquei informações sobre o surpreendente Parque Nacional da Ilha Grande. Noto que nada tem a ver com a conhecida ilha no litoral do Rio de Janeiro.
Esta outra Ilha Grande fica no Rio Paraná, num trecho em que ele corre de norte para sul, entre os Estados do Paraná e do Mato Grosso. De fato, é bem maior do que a ilha marítima. Esta região é muito atraente para os moradores das grandes cidades do Paraná, que lá constroem impressionantes condomínios.
O Rio Paraná é grande como um mar e próximo a ricas cidades paranaenses – seus habitantes o preferem ao verdadeiro mar mais distante. Mais tarde, conheci os condomínios e fiquei impressionado como ficaram maiores do que as vilas que os hospedaram. Num caso específico, calculei que, se todos os condomínios fossem construídos e habitados, conteriam sete vezes a população original da cidadezinha.
Além da sua ilha principal, a reserva inclui três outras, numa área de 80 mil hectares. Na realidade, é um arquipélago composto por centenas de ilhotas que se associam a praias, lagoas e várzeas, num ambiente plano e lento que às vezes lembra a beleza quente e sossegada do Pantanal.
A principal atração é naturalmente a pesca, já que a caça é proibida. Hoje em dia, é praticada a pesca esportiva, nome fantasioso que significa o direito de detonar o peixe, mas não de matá-lo. Ele viverá o resto de sua vida como um doente ou um aleijado, em nome desse esporte nefasto.
Curiosamente, ela já havia sido um Parque Nacional, então chamado de Sete Quedas (as quedas que Itaipu fez submergir), que acabou extinto para possibilitar o enchimento do lago da barragem. Entretanto, felizmente os ambientalistas paranaenses conseguiram restabelecê-lo – e ele continua até hoje sem qualquer estrutura e carente de qualquer informação.
É uma região enorme, de talvez 80 km de extensão, que só pode ser conhecida por barco – abordei para tal o Rio Paraná em três localidades em dias sucessivos, mas não pude dar a volta na ilha. Ela é plana, com vegetações de várzea, cerrado e mata atlântica que a fizeram no passado abrigar grandes quantidades de gado e uma razoável população humana, que aos poucos foram sendo ambas desalojadas.
Sua fauna terrestre é bem interessante, incluindo o cervo do pantanal, o jacaré de papo amarelo, a onça pintada e o tamanduá bandeira. As ilhas abrigam aves grandes, como jaburus, mutuns e colhereiros. Você ouvirá muitas histórias dos animais nesses grandes espaços tranquilos e silenciosos, onde eles podem espreitá-lo à sombra da mata ou onde você pode surpreendê-los cruzando os rios com suas crias.
O enchimento dos lagos de Porto Primavera e de Itaipu alterou o regime do Rio Paraná, assoreando-o e interferindo no criatório lagunar dos peixes. Pintados e jaus têm hoje dificuldade em se procriar, ao contrário de dourados e corvinas – ou seja, o equilíbrio foi rompido. Como disse o barqueiro Toninho sobre um peixe quase extinto no local: Hoje não tem jurupoca nem pra remédio.