O Morro do Quartel

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Aquele dia já estava programado pra prestigiar amigos na “Adventure Fair” pela tarde, mas igualmente estava disposto a pernar no comecinho pela manhã, nem que fosse rolê urbano e breve. “Mas com tempo apertado de menos de meio período onde diabos eu iria?”, me perguntei. A resposta veio ao lembrar a dica dum amigo corredor de aventura, o Rafa, que dizia treinar num morrote vizinho do Pico do Jaraguá. “É a vista da face leste mais próxima e bonita do Pico, mas como faz muito tempo que não vou lá não sei como anda o acesso…”, disse ele. E não era pra menos, o dito cujo é uma simpática colina de propriedade federal, onde está instalado um batalhão da Policia Militar. Este é o relato duma visita tão breve quanto travessa ao lugar.

Na maioria das minhas andanças urbanóides, sempre que possível me desloco mediante o transporte público disponível, seja busão ou trem. Não apenas pelas facilidade de acesso ou custo, mas porque ele promove um contato maior com o povão. No caso dos trens, sempre me divirto com a criatividade dos ambulantes em vender suas bugigangas. Existem os produtos fixos, como amendoins, chicletes, pen-drive, fone-de-ouvido, etc. Mas tb existem os hits de “modinha” , que no caso são as balas Fini e o relógio digital do Neymar, a um e cinco reais, respectivamente. Os bordões merecem estudo diferenciado pelo improviso, como o de um vendedor de goma de mascar: “Não tenho barriga tanquinho…mas tenho gostoso gominho…”

Deixando essas considerações que não passam incólumes á minha formação em comunicação e voltando á pernada, saltei na Estação Vila Clarice por volta das 8:30hr. Estação da linha Rubi, era segunda vez que pisava aqui mas só desta vez reparei que ela ta quase enfiada num buraco, além de ser incrivelmente pequena. Cruzei a passarela de modo a sair do lado direito da estação e me dirigir ao morro da vez, cuja encosta forrada de capim já tava bem visivel. Iria conferir “in loco” a questão da acessibilidade, que desde que conversara com meu colega ficara um sinal de interrogação pairando sob minha cabeça. Já logo ao sair da estação fui na direção duma cancela com guarita da PM que tava no caminho, e logo dois jovens policiais saíram da mesma e se prostaram na minha frente, barrando avanço. “Aqui é propriedade da corporação e a entrada é proibida!”, disse um deles, fazendo cara de mau. Pronto, tinha ai minha resposta.

“E agora, José?”, pensei. Dei meia volta, cruzei novamente a passarela da estação e emergi do outro lado, numa ruazinha que corria paralela a via férrea, em meio a uma região estritamente residencial. Tomei então esse rumo, pro norte, como que contornando a tal propriedade (e o sopé do morro) buscando algum acesso viável á mesma. Noutras, um  flanco desprotegido. Andei um tanto até tropeçar com uma via maior que cruzava pro outro lado da linha do trem, por baixo dum pequeno túnel. Esta via, a Av. Dr. Felipe Pinel, logo no inicio ladeia o morro pelo contraforte norte onde já se avista um decrépito portão enferrujado, cercado de mato mas com um vão do lado, com os dizeres: “Área sob jurisdição federal – Acesso proibido”. Pronto, encontrara meu acesso. Bem, pelo menos não havia quem me barrasse a entrada.

Adentrei pelo vão e me pirulitei por uma trilha em meio a vegetação arbustiva pra sair no aberto, quase do lado da via férrea. Ali tinha cara de ser uma antiga entrada da corporação, mas a muito esquecida pois o mato já invadia o que fora outrora uma estrada de chão. E dali bastou só seguir o rabicho de picada, que tornava a ladear o pé do morro na direção sudoeste. Foi ali que o morro exibiu uma enorme cratera no contraforte norte, com cara de antiga pedreira. Uma visitinha na beirada da mesma pra algumas pics e prossegui minha andança.

Dali a vereda sumiu, mas o sentido era meio óbvio pois era só ganhar a pedreira acima. Cruzei um pequeno foco de mata mais fechada até começar de fato altitude, me afastando agora da linha do trem. Na verdade ia de encontro a continuação da trilha que tencionava subir no inicio do relato e me fora reticentemente vedada pelos guardas. Assim, subindo por pedras e chão de terra parcialmente chamuscado ganhei um bonito descampado onde algumas flores dançavam ao vento. Já podia avistar relativamente a picada oficial do morro e até chegar nela foi necessário uma vara matinho simples através de baixas touceiras de samambáias, desviando de improváveis dejetos de capivara(!?) no caminho.

Uma vez interceptada a trilha foi só alegria, bastou subir de forma íngreme os degraus de terra e pedra que se apresentaram ao largo do trajeto. A brisa fresca soprava o rosto enquanto o horizonte se expandia a minha frente. Claro, eu ficava sempre de olho nos extremos da trilha pra ver se não havia mais ninguém ali, pois aquele caminho levava jeito de ser a pista da corporação, na verdade, um centro de formação de novos soldados. Mas acredito que pelo horário já avançado os recrutas já tivessem feito sua saudável corridinha matinal. Ainda bem…

Mais baixo que o Morro do Saboó (São Roque), não deu nem 5 minutos de cair na picada principal que já tava na larga corcova que figura como crista daquela espichada colina. A vereda dividia o morro em dois, deixando o setor norte descampado e coberto de capim baixo, enquanto o setor sul era recoberto com exuberante mata ciliar e salpicado de enormes rochedos. A meio caminho dei uma esticada prum enorme buraco do trecho sul, onde inúmeros matacões de todos os tamanhos formavam uma paisagem peculiar, que não deve em nada aos serrotes de Biritiba-Mirim ou Atibaia.

Mas o trecho norte, descampado, realmente valia a pena de parar e apreciar. Andando pelo capim ralo até o alto da enorme pedreira se tem uma larga panorâmica de todo aquele quadrante. A vista contempla todo o Pico do Jaraguá, elevando-se elegantemente no centro, enquanto nas extremidades temos a geometria da urbe da Vila Clarice e Jd Jaraguá. E a oeste, a Torre da Band coroando o cume oeste do serrote que agrega a Pedra da Baleia, visitado meses atrás. Sem livro de cume ou totem, o máximo que aqui tem é uma madeira com fitas de plástico marcando o “cume”. Em tempo, é preciso andar atento por estas bandas pois o chão esta repleto de enormes buracos (escondidos) de mais de dois metros de profundidade.

Mas como tudo que sobe na sequencia desce, a trilha ladeia uns eucaliptos e passa a perder altitude da mesma forma que sua ascensão, ou seja, de forma forte. Felizmente o caminho exibe rochas e aderências que ajudam na descida, que depois se torna de pura terra mas em dias secos fica escorregadia pelos grãos soltos. Até que num piscar de olhos a picada tangencia, um nível acima, a mesma via pela qual entrar, a Av. Dr. Felipe Pinel. Daqui a trilha dá uma volta e retorna á entrada do quartel, passando pelo estande de tiro, os alojamentos e o setor administrativo. Mas como queria me manter fora da vista dos soldados busco algum acesso pra logo cair no asfalto o quanto antes, acesso este que consigo me esgueirando no meio do capinzal e terminando um último trecho mais elevado na base do esqui-bunda, me firmando na vegetação ao redor. Prontinho.

Retrocedi pelo asfalto e refiz o mesmo caminho da ida, até a estação da Vila Clarice. Horas? Menos das 11hrs. Dali fui ao encontro previamente marcado com o veterano montanhista Alberto Ortenblad, no Butantã, e juntos fomos na “Adventure Fair”. Sim, a badalada “maior feira de esportes de aventura da America latina” a tempo já perdeu seu foco. Tornou-se um shopping center pra levar criança escalar parede. Opinião partilhada também pelo Alberto, diga-se de passagem. E pra mim só vale mesmo pra rever conhecidos e prestigiar palestras interessantes, no caso, a de montanhismo de altitude e arqueologia andina, respectivamente ministradas pelos amigos Máximo Kaush e Pedro Hauck. Creio que fui embora pouco antes das 15:30hrs, satisfeito por matar dois coelhos duma cajadada só naquele dia. E sim, depois não pude deixar de avisar praquele meu amigo corredor de aventura pra remover o “Morro do Quartel” de seu local de treinos. A menos que quisesse depois alongar os músculos vendo o “sol nascer quadrado”.

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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