O Picadão do cinco

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Foram muitos os caminhos pela Serra do Mar paulistana q se valeram dos contrafortes montanhosos pra escoar a produção de carvão, oriundo da queima da vegetação nativa durante a industrialização da Baixada Santista. Caminhos q hj estão fechados ou parcialmente tomados pelo mato, mas q hj servem pro trânsito de outro tipo de extrativistas: caçadores e palmiteiros. Através destes q tomamos conhecimento do “Picadão do Cinco”, belíssima vereda q rasga o sertão de Casa Grande (Biritiba-Mirim) em direção a borda serrana. E foi no primeiro reconhecimento desta picada q vislumbramos novos rios, mirantes, quedas e possibilidades de pernadas de vários dias. Um cafundó selvagem encravado entre a Serra do Juqueriquerê e do Guaratuba, onde ainda é possível dar nome aos atrativos naturebas locais.

Condução pra Casa Grande é algo bem irregular, qdo não inexistente, motivo pelo qual a oportuna carona da Elaine foi mais q bem-vinda pra realização desta empreitada. Do contrário, fazer o trajeto a pé acrescentaria facilmente mais um dia a nossa jornada, programada apenas pra dois dias enxutos. Assim, dentro do trepidante veículo rasgando a “Estrada do Carapicó” (SP-92) eu, Nando e o Ricardo ainda conversávamos sobre detalhes da rota em questão e acertávamos pequenos detalhes, qdo finalmente chegamos a Estação Rio Claro da Sabesp.
 
Ignorando a via rumo Salesópolis tomamos a “Estrada do Serengue”, bucólica estrada cercada de verde q bastou tocar indefinidamente, até q enfim chegamos ao nosso destino, ou seja, o início da vereda. Vereda esta q nos fora soprada já em duas ocasiões por mateiros, e cuja promessa de esbarrar com novos rios, mirantes e cachus era tentadora demais pra deixar passar batido. Havia q ir lá e conferir. Assim, Elaine encostou ao lado do sítio “Deus Seja Louvado” por volta das 11hrs, nos deixou gentilmente lá, despediu-se da trupe e imediatamente deu meia volta pra então refazer td trajeto até Mogi.
 
Cargueiras enxutas nas costas, iniciamos a pernada bem na frente da supracitada chácara e nos pirulitamos em meio a um bananal pra logo cair numa vereda maior, q tocava indefinidamente pro sul bordejando um bosque de eucaliptos. Picada bem batida – com sinais até de transito de motos! – q margeou um antigo forno tomado pelo mato e num piscar de olhos deixou os limites do reflorestamento pra esbarrar na fronteira com a verdejante mata primaria. Aqui há 4 toras de madeira entre cruzadas na vereda, sendo q uma foi visivelmente removida. Disto deduzimos q o nome de “Picadão do Cinco” resulte dos outrora “cinco troncos” existentes logo no início da trilha. Mas são apenas suposições da nossa parte, q fique claro.
 
Uma vez no frescor da mata fechada, a estreita vereda desce suavemente, de desnível imperceptível, cercada da mais farta e abundante vegetação típica da Serra do Mar. O chão se alterna a td momento entre pedra, terra, lama e brejo, mas o corte vertical da encosta se encarrega de deixar claro ali ter sido outrora uma larga estrada hj tomada pelo mato, do qual a picada hj é a única testemunha de seu antigo trajeto. Vestígios do antigo calçamento de pedras da via estão presentes vez ou outra, qdo não erodidos pela chuva. E nos trechos enlameados ou onde o chão é mais compacto, a presença de pesadas pegadas de anta são recorrente durante td nossa jornada. “Anta é sinônimo de carrapato!”, pensei comigo mesmo.
 
Não dá nem 10min de trilha e logo tropeçamos com um senhor no sentido contrário, única vivalma da nossa jornada. Carrancudo, roupa camuflada e possante escopeta na mão direita não deixa dúvidas. É um dos atuais usuários daquela vereda extrativista, um caçador. Com cara de poucas palavras nos limitamos apenas a cumprimentá-lo, dar licença pra ele e prosseguir nossa jornada, embora tivéssemos mtas perguntas a fazer-lhe. Na sequência, atento pro lado e não tardo em reparar nos trocentos tocos de palmito cortado a beira da trilha. Mata tombada no caminho? Bem pouca, mas as raras arvores caidas no trajeto estavam bem cortadas ou com desvios bem pisados.
 
Água no caminho é o q não falta! Só na ida contabilizamos uns 6 pequenos córregos q tivemos q cruzar, num curto espaço de tempo, ora através das pedras do leito, chapinhando na água e, nos mais fundos, através de rústicas pinguelas construídas com arvoredo ao redor. O primeiro córrego se caracteriza pela presença de restos de manilhas, o q leva a crer q fora importante pto de captação do precioso líquido. Mas após o terceiro curso d’água – onde há até um simpático poço, ideal pra banho em caso de sol forte – nos brindamos com um breve descanso ao lado duma bica ao lado da trilha, as 12:30hrs. Na verdade, um cano de pvc encravado na encosta por onde escorria agua cristalina fresquinha. Um copo improvisado com a base duma pet serrilhada completa o cenário, pendurado num galho ao lado da bica.
 
Após a bica nossa jornada prossegue no mesmo compasso anterior, isto é, serpenteando a encosta da morraria na direção sul e sem gde desnível. A lona azul dum antigo rancho palmiteiro desativado não tarda a surgir na margem esquerda do caminho, lembrando dos atuais usuários daquela bela e selvagem vereda. E após cruzar o quarto correguinho a paisagem muda completamente. A até então farta e alta mata reduz seu tamanho de modo a q fica propriamente arbustiva. Estamos perambulando um largo chapadão plano entre vales, tomado por arbustos retorcidos, turfa , liquens e muito brejo. Aqui a vista se amplia nos descampados e permite vislumbrar o caminho feito ate então, por entre os verdejantes morros.
 
Mas logo então nossa rota mergulha novamente na mata fechada ate desembocar as margens do quinto córrego do trajeto, as 13:15hrs, este um pouco maior. Pra transpô-lo sem ter necessidade de retirar as botas foi necessário cruzar um tronco apoiado em duas madeiras q serviram de cajado. E pela análise junto a carta local, chegamos a conclusão q este belo e largo córrego dourado corresponde a uma das nascentes do Rio Guacá. A partir daqui a picada já perde as características anteriores (ser antiga estrada) tornando-se mais estreita e não tão óbvia qto antes. É verdade q no caminho ignoramos algumas bifurcações, mas buscamos sempre nos manter na via principal, mais batida e q fosse sempre pro sul.
 
Prosseguindo pela vereda não tardou pra ela ficar cada vez mais confusa e menos evidente, mas foi após cruzar o sexto córrego q a rota desandou e se perdeu de vez, nos obrigando a farejá-la a td momento. Depois de contornar um morro e descer num vale bem úmido, retornamos ao último pto de trilha onde decidimos tocar por uma q vimos subindo o mesmo morro. E tome sobe e desce continuo, onde não demorou pra vereda se perder novamente. Era claro q estávamos numa picada qq de palmiteiro, mas como já havíamos avançado um tanto, resolvemos simplesmente azimutar pro sul e tocar pra frente.
 
Na sequência, nos demos o luxo dum breve pit-stop na encosta duma grota por volta das 15hrs, onde fizemos uma boquinha e recalculamos nossa direção a tomar. E assim tocamos na direção desejada, ora através de breves rastros de picadas q logo sumiam, mas principalmente rasgando mto mato no peito. Passamos por dois pequenos vales úmidos e bordejamos uma encosta, até q o som de água em abundância próxima nos sugeriu q avançar pelo riacho fosse mais rápido q em meio a vegetação. E foi o q fizemos, ainda mais qdo nos demos conta q subindo aquele curso dágua íamos na direção desejada.
 
De fato, costurando o simpático e cristalino riachinho o avanço progrediu bem, fosse saltando as pedras de seu leito raso, fosse pela encosta próxima do mesmo qdo havia q desviar de trechos mais fundos. Depois chegamos a conclusão q aquele rio de planalto (pois corria na direção oposta a beirada serrana) devia ser alguma gde nascente do Guacá ou Guaçu. Foi nesse avanço q passamos por belos e bucólicos remansos, como um pitoresco rochedo q apelidamos de “Pedra do Queijo”, pelo formato com q havia sido meticulosamente lapidado.
 
Mas o melhor mesmo foi qdo, logo após esse inusitado rochedo, nos deparamos com uma belíssima queda do lado dum poço arredondado e esverdeado. Logicamente q tds paramos a caminhada pra apreciar (e clicar a exaustão) aquela maravilha natureba. Na verdade a cachu não era nem alta, mas era o conjunto como um td q lhe dava um charme especial. “Meu, este maravilhoso lugar decerto deve ter trilha de acesso!”, pensei ingenuamente. Buscamos a suposta vereda nos arredores e nada. Aquela queda era legitimamente selvagem e desconhecida. Sendo assim, o Nando apelidou a queda de “Cachu da Moeda” ,pois deixara cair uma moeda de R$ 1 ao saltar as pedras da mesma.
Escalaminhando as raízes e rochedos da parede esquerda da cachu alcançamos o topo da mesma, de onde prosseguimos o avanço pelo rio, repleto de corredeiras, quedas e poços menores. Foi qdo o rio fez uma curva fechada pra esquerda (fugindo da rota) q fomos forçados a prosseguir pela íngreme encosta do mesmo. Na verdade estávamos ainda subindo o rio, só que não havia necessidade de dar todas as voltas desnecessárias q ele dava, de onde resolvemos cortar caminho pelos morros sgtes mesmo. Uma vez do outro lado, o mato infelizmente começou a ficar mais e mais denso, o q nos obrigou a retornar ao rio.
 
Por ser já o horário avançado das 17hrs e o cansaço já tomar conta da gente, uma vez q pisamos nos rochedos do rio decidimos estacionar ali mesmo. A decisão não poderia ter sido mais acertada, pois nos vimos no alto duma cachu de porte médio, cujos largos e gdes lajedos do topo forneciam o espaço necessário pra passar a noite. De fato, ali era bem melhor q na acidentada encosta repleta de mato agreste pela qual perambulávamos. O Ricardo então montou sua rede no arvoredo rente o rio, o Nando armou sua barraca no rochedo do alto da queda e eu bivakei ao relento mesmo, jogando o isolante e saco-de-dormir numa laje situada entre meus colegas. Logicamente q esta decisão foi tomada pois tínhamos certeza q não choveria, uma vez q a previsão meteorológica era bem otimista. Foi dali q apelidamos aquele belo recanto de “Cachu da Barraca”.
 
Acampamento montado e dia já dando seu último suspiro de luz natural, mandamos ver nossa janta goela abaixo. O cheiro de calabresa frita e macarrão sendo cozinhado pelos meus amigos inundou as narinas, embora eu já mastigasse de antemão minha marmita previamente preparada em casa. Qdo a noite caiu sobre o vale nos ainda confabulávamos sobre q rota tomar na manhã sgte, mas não deu nem 20hrs q tds se recolheram a seus respectivos refúgios. Desfalecemos num piscar de olhos, embalados pelo som do arvoredo remexendo ao vento mas principalmente pelo barulho hipnótico da queda dágua q nos acolhera em seus braços de pura rocha. Como previsto, não caiu um pingo dágua durante a madrugada, e o manto negro do firmamento cintilou de zilhoes de estrelas sob nossas cacholas, num espetáculo impar naquele cafundó serrano. Não chovera, mas em contrapartida a temperatura caiu bem naquele vale úmido encravado no sertão de Casa Grande.
 
A manhã sgte irrompeu limpa e isenta de qq interferência atmosférica nos céus. Levantamos acampamento rapidamente enqto mastigávamos nosso desjejum na base de café, pães e bolachas. Em comum acordo decidimos q ali era o pto mais distante q nossa exploração alcancara e q por bom senso era bom retornar. Mas não pelo mesmo agreste caminho rente o rio e sim pela cumieira da morraria ao redor, até atingir o ultimo vestigio decente e inconfundível do “Picadao do Cinco”. 
 
E assim começamos a jornada daquele dia as 7:15hrs, subindo e descendo a cumieira dos morros na direção nordeste, tendo como navegadores oficiais o Nando e Ricardo, q não tiravam o olho de suas parafernalhas eletrônicas. O caminho pra variar alternou-se entre vara-mato e algum vestigio de trilha, no geral, picadas de animais ou de palmiteiros, denunciado pelas constantes marcas de facão avistadas. “Se o cara vem aqui neste fim-do-mundo pra cortar palmito, deve ter algum caminho pra escoar a produção..”, pensei. Mas esta assertiva nem sempre é verdadeira, ainda mais qdo eles juntam td estoque do produto em seus ranchos escondidos, pra ai sim depois vazar a produção. E olha q vimos muito palmito intacto no caminho. Palmito, pau-brasil, flores belíssimas, tipos exóticos de bromélias e td sorte de vegetação rara e exuberante.
 
Pois bem, assim nosso avanço até progrediu bastante pela crista, mas chegáramos num trecho onde havia q descer pra vales pra dar continuidade a pernada. Isso td analisando as curvas de nível do lugar e azimutando a rota de modo a perder o mínimo de altitude. E tome descidão com vara-mato nervoso, alternando voçorocas de taquarinhas, croquejantes bambuzais e espinhentas bromélias. Mas na árdua subida dos 940m do morro sgte, o mais alto do trajeto, a recompensa veio entre frestas na mata sob a forma da linda vista da faixa dourada da Praia de Guaratuba, ao sul, e o azul inconfundível do mar! 
 
Mas nossa rota ia no sentido oposto ao mar, e no alto do morro tb pudemos avistar a vastidão daquele sertão selvagem tomado pelo mais puro verde! Pra descer td isso nos demos conta q estávamos no alto dum penhasco, e tivemos q nos esgueirar pelo meio dum grotão repleto de matacões, q pelo visto parecia ser bem fequentado por antas dado a gde qtidade de fezes das bichinhas. Após o grotão o desnível da encosta suavizou, mas deu lugar a taquara, bambus e td sorte de mato espesso, q tivemos q vencer na raça. As 10:20hrs enfim caímos numa picada conhecida q nos levou ao sexto riacho do caminho, onde chegamos as 11hrs. Lá, descansamos e mandamos ver um lanche delicioso q complementou nosso minguado desjejum.
 
Na sequência e com tempo relativamente de sobra, exploramos uma picada q derivava da principal, pouco antes do quinto rio, o Guacá. A princípio ela pareceu promissora, indo sempre pro sul sem gde perda de altitude, mais precisamente em direção do vale do Guaratuba. Mas ao se aproximar da borda serrana ela não só desviou pra oeste como tb começou a ficar confusa, repleta de mato alto.  Isso bastou pra encerrrar em definitivo nossas explorações e dar início ao retorno propriamente dito.
 
A volta, naturalmente, transcorreu no mais absoluto silêncio. Os riachos foram sendo cruzados na mesma medida em q nossas cargueiras iam ficando mais leves (menos comida). As 13:30hrs fizemos uma breve parada na bica de PVC, onde o Nando reencontrou um maço de cigarros q havia esquecido ali. “Tá vendo? Ninguém circula nesta porra de caminho!”, falei pra ele. O resto da jornada transcorreu sem maiores intercedências, a exceção dum trecho onde avistamos um enorme primata no arvoredo próximo da trilha. Bugio q não era pois tinha uma penugem alva na cabeça, mas era tão agil qto um pois não deu nem tempo pra clicá-lo q ele sumiu na floresta.
 
Chegamos a “Estrada do Serengue” por volta das 15hrs, relativametne cansados. Sem sinal nenhum de celular pra chamar a Elaine pra vir nos pegar, o jeito foi andar uns 5km até a Estação Rio Claro da Sabesp e lá tentar a sorte com alguma carona. Afinal, lá ao menos circulavam (poucos, mas circulavam) veículos vindos de Salesópolis e arredores. E tome mais uma hora de caminhada q parecia não terminar nunca. Mas as 16hrs, na Estacao Rio Claro, a sorte nos sorriu sob a forma da trepidante kombi da Elizangela, q gentilmente nos levou até Biririba-Mirim. Uma vez lá, numa padoca, mandamos ver salgados, refris e salgados antes do retorno definitivo pra cidade. Ralados, repletos de carrapatos e imundos de mato, mas contentes por ter estado num rincão selvagem conhecido apenas por meia dúzia. E só por isso a jornada já vale a pena.
 
Finalizando, esta primeira incursão ao “Picadão do Cinco” serviu apenas de aperitivo pq mal arranhamos as possibilidades q a vereda e suas ramificações oferecem. Da mesma forma q o “Barraco da Santa” –  onde a distancia, ausência de transporte e dificuldade de acesso demandam logística precisa  – qq exploração maior necessita, de preferência, tempo de sobra. Só assim pra otimizar qq jornada vindoura naquele sertão selvagem. Travessias pro litoral, pro vale do Guaratuba e do Perequê-Mirim já podem começar a ser estudadas, claro! Pois uma vez tendo o “Picadão” como espinha dorsal de acesso áquele cafundó serrano, as aventuras pela Serra do Mar estarão sempre garantidas.
 
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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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