O Polo Sul (Parte II)

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Nós não cessaremos de explorar e o fim de toda a nossa exploração será chegarmos aonde partimos e conhecermos o lugar pela primeira vez. T.S.Eliot, poeta e dramaturgo.

 

O Polo Sul (Parte II)

E quem foi esse inglês tenaz que também chegou ao Polo Sul, um mero mês depois de Amundsen? Robert Scott (1868-1912) tinha tradições navais em sua família e iniciou sua carreira aos 13 anos na Marinha, sob proteção de Clemens Markam, da poderosa Real Sociedade Geográfica. Markham tinha motivos para protegê-lo: Scott era um rapaz educado, inteligente e articulado, além de um militar hábil e leal.

Seu pai morreu deixando a família falida, e Scott viu na possibilidade do comando da nova expedição inglesa à Antártida uma oportunidade para se reerguer. Veja que, de todos os exploradores, Scott foi o único que não teve o gelo como sua vocação, e sim sua vantagem.

A expedição de 1901-04 foi embarcada no navio Discovery e, embora não tenha atingido o Polo Sul, chegou a 82⁰ de latitude, um recorde para a época. Scott atravessou o planalto antártico com apenas dois homens, um deles tendo sido Ernest Shackleton. A expedição tinha também propósitos científicos, que foram cumpridos.

E, ao voltar, Scott virou um herói, foi promovido a capitão, passou a frequentar a aristocracia e casou-se com uma conhecida socialite. A nova tentativa de alcançar o Polo, chamada de Terra Nova devido ao nome do veleiro, teve Scott novamente no comando. Assim como a anterior, ela tinha objetivos científicos, não só geográficos, o que lhe complicou a missão.

O veleiro Terra Nova, que nomeou a expedição de Scott.

Você sabe que Scott teve de competir com Amundsen, escolheu partir de um local um pouco mais distante do objetivo e chegou ao norte da Antártida um mês depois. Mas considere que isto apenas interferiu nos trabalhos preparatórios, pois as duas expedições só partiram nove meses depois, na primavera antártica. Durante o inverno, o frio e a escuridão tornavam impossível qualquer avanço. Repare como as conquistas polares foram feitas até abril, o último  mês de luz.

A equipe inglesa tinha a vantagem de percorrer um caminho conhecido, trilhado antes por Shackleton, quando chegara à latitude 88⁰ (ver a seguir). Porém esta rota impôs a travessia de trechos íngremes no glaciar, onde o equipamento motorizado de Scott mostrou-se inútil. Além disso, Scott não apreciava o uso de cães, preferia trenós puxados por homens.

E também por cavalos, animais com os quais seu grupo não tinha familiaridade. Os pôneis siberianos escolhidos na Mongólia eram de baixa qualidade e logo ficou evidente que não aguentariam o esforço. Scott se negou a matá-los por comida – mas alguns morreram de frio e outros foram abatidos para não atrasar o grupo. Não sobrou nenhum. Pelo menos, Amundsen voltou com onze cães vivos.

Membros da expedição de Scott cavando no gelo para arnazenar mantimentos. A foto de 1916 é de Herbert Ponting.

É possível que as vestimentas dos ingleses fossem inferiores às dos noruegueses, bem como a sua logística: se o depósito de suprimentos estivesse no local planejado, e não 38 km distante, talvez a equipe de Scott tivesse sobrevivido. E quem sabe a organização do grupo tivesse se ressentido das formalidades da Marinha praticadas por Scott.

Mas Scott e seus quatro companheiros eram determinados e resistentes, alcançaram 78 dias depois de partir o encantado Polo Sul, apenas para descobrir que tinham sido antecedidos em cinco semanas por Amundsen.

Este foi o lamento de Scott: O pior aconteceu (…) todos os sonhos se foram (…) Que lugar horrível! É demasiado desanimador ter sofrido tanto para chegar e não ser recompensado com a glória da primazia. É curioso o desapontamento tanto de Amundsen como de Scott diante de feitos tão notáveis.

Chegada de Scott no Polo Sul, onde encontrou hasteada a bandeira norueguesa.

O retorno foi dramático, o grupo teria 1.300 km pela frente, dos quais calculo que percorreram apenas 700 km. Permaneceram acampados pelos últimos 9 dias, com provisões escasseando, tempestades frequentes, a escuridão avançando e os corpos enregelados.

Scott sabia que o fim estava próximo: Se tivéssemos vivido, eu teria uma história para contar sobre a dureza, resistência e coragem de meus companheiros, que teria emocionado o coração de todo inglês. Essas notas ásperas e nossos cadáveres devem contar a história.

As últimas anotações do diário de Scott foram: É uma pena, não acho que consigo mais escrever. Pelo amor de Deus, cuidem dos nossos. Entre o início de novembro de 2011 e o fim de março de 2012, foram 150 dias de tormentos. O bravo Scott foi o último a morrer.

Os corpos foram achados e enterrados lá, com a tenda e uma cruz. Mas um século de tempestades soterrou o local – como o gelo é móvel, calcula-se que talvez em três séculos mais, possam flutuar pelo mares do sul dentro de um iceberg.

Ernest Shackleton (1874-1922) nasceu na Irlanda, mas desde a infância residiu na Inglaterra. Na realidade, seu lar era o oceano, do qual jamais se ausentou por mais de 4 ou 5 anos, desde que ingressou na marinha mercante aos 16. A partir da expedição Discovery em 1901, nunca mais abandonou uma vida de aventuras, seja em terra ou no mar.

Ernest Shackleton (1874-1922) e o navio Endurance, que ficou preso e foi destruído pelo gelo antártico.

Shackleton tinha um temperamento carismático e impulsivo, uma mistura de sensibilidade e agressividade, com uma energia inquieta que o levou a inúmeros empreendimentos e atividades – e, também, a dívidas que o atormentaram e lhe sobreviveram.  Na época, as expedições eram principalmente financiadas por meios privados, os governos apenas complementando os fundos necessários.

Quatro foram as expedições de que participou. A primeira, chamada Discovery e chefiada por Robert Scott, já foi descrita – nela Shackleton acompanhou seu chefe até a latitude de 82⁰, a maior até então alcançada. Ele decidiu não participar da iniciativa seguinte de Scott, a Terra Nova, e em 1908 embarcou no navio Nimrod para sua segunda aventura.

Embora não tendo atingido o Polo Sul, chegou a 88⁰ de latitude, foi o primeiro humano a cruzar o Platô Polar Sul e subiu ao cume do Monte Érebo (3.800 metros) na Ilha de Ross, ao sul do continente. Disse um dia sua mulher: O único comentário que ele me fez sobre não ter alcançado o Polo foi que um burro vivo é melhor do que um leão morto.

A cabana que usou no gelo ainda está preservada no local.

Logo a seguir, o Polo Sul foi conquistado por Amundsen – e Shackleton, não querendo repetir o feito, propôs atravessar a pé o continente, desde o Mar de Weddell até o Estreito de McMurdo. A expedição, chamada esperançosamente de Transantártica Imperial, partiu no fim de 1914 com dois navios – Endurance, que deveria abordar a Antártida a partir do Mar de Weddell ao norte, e Aurora, que deveria esperar os expedicionários em McMurdo, no lado sul do continente.

Foi assim que Shackleton colocou o anúncio para recrutamento de sua tripulação: Procuram-se homens para uma viagem perigosa: Salários baixos, frio intenso, longos meses de escuridão total, perigo constante, retorno seguro duvidoso. Honra e reconhecimento em caso de sucesso. E foi um sucesso.

Mapas das travessias.

E então começou uma das maiores aventuras vividas pelo homem. O Endurance ficou preso no gelo e acabou sendo esmagado e afundado, depois de seguir à deriva rumo norte por meses, com a tripulação a bordo.

O navio finalmente naufragou e, após acampar no gelo, sem conseguir cruzá-lo, Shackleton resolveu partir embarcado num bote com alguns de seus homens. Chegou á deserta e inóspita Ilha do Elefante, a nada menos do que 550 km do local do naufrágio e quase 1½  ano depois de ter pisado pela última vez em solo firme.

A única esperança seria chegar às Ilhas de Geórgia do Sul, onde ele sabia que operavam estações baleeiras. Shackleton partiu num bote aberto de meros 6 metros com outros cinco companheiros, para vencer a inacreditável distância de 1.300 km numa das mais agitadas águas do mundo. Um furacão impediu que aportassem ao norte da ilha, de forma que contornaram para o lado oposto.

A seguir, tiveram de cruzar 50 km de cristas montanhosas a pé, numa incessante e inacreditável travessia por 36 horas, até chegar ao local onde foram finalmente acolhidos. Eram munidos de botas com parafusos na sola para imitar grampões, um enxó (semelhante acho eu a uma piqueta de cabo curto) e meros 15 metros de corda. E uma coragem sobrenatural. Pareciam feras, com roupas que não trocavam há sete meses.

Quase meio século depois, um outro explorador britânico repetiu o trajeto. E disse: Não sei como eles conseguiram, exceto que eles tinham de fazê-lo – três homens da idade heroica da exploração da Antártida, com 50 pés de corda entre eles. Hoje, a parte final da travessia é um local turístico.

Finalmente, com o apoio de um rebocador chileno, Shackleton conseguiu recuperar toda a sua tripulação, voltando às praias onde tinha deixado partes dela, nas Ilhas de  Georgia do Sul e do Elefante. Em seguida, resgatou a equipe do Aurora, navio que havia se desgarrado no mar e inacreditavelmente chegado à deriva até a Nova Zelândia.

O Endurance partira para o Mar de Weddell em dezembro de 1915; Shackleton só chegou á Inglaterra em maio de 1917. Ele dizia que havia alcançado a alma nua do homem.

Na sua derradeira expedição, Shackleton já estava debilitado pela bebida. Ao retornar à Ilha de Geórgia do Sul no navio Quest, passou mal e chamou o médico à sua cabine. Este aconselhou-o a levar uma vida mais regular. Ao que tenho então de renunciar?, perguntou. Principalmente ao álcool, chefe, respondeu o médico. Shackleton faleceu logo em seguida, naquela mesma madrugada.

Boerge Ousland foi o primeiro homem a atravessar toda a Antártida. Retornou em janeiro de 1997 após 64 dias e 2.700 km.

A travessia do Polo Sul pretendida por Shackleton só foi realizada 40 anos depois, quando Edmond Hillary, o homem que conquistou o Everest, estava presente como carregador. Esta expedição utilizou tratores de neve.

Pasme, foi só em 1997 que o norueguês Borge Ousland cruzou a pé aquelas extensões geladas, usando um ski movido a vela. Acredito que, se Shackleton tivesse podido estar lá, ele a teria feito a pé.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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