O Raso da Catarina

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O Raso da Catarina é, na extensão, na natureza e no imaginário, uma região quase mítica.

Abrigou a década final da vida do cangaceiro Lampião, que lá conheceu o amor de Maria Bonita; é recoberto por uma vegetação que parece sobreviver por sua própria vontade, ressurgindo milagrosamente a cada estação; é a mais seca região do sertão baiano e uma das mais quentes em todo o Nordeste; seu território sempre plano, amplo e igual parece transpor o horizonte, num tamanho quem sabe infinito.

Como surgiu essa região? Ela não é tão antiga assim, pois os geólogos contam que se formou quando da separação entre a América e a África, com a abertura do Oceano Atlântico, cerca de 150 milhões de anos atrás.

Essa ruptura causou uma fenda oblíqua ao litoral, com a formação na região de um vale alongado de fundo plano. Este não foi um evento isolado – a Serra da Mantiqueira e o Vale da Fenda (Rift Valley) africano tiveram a mesma origem.

Figura sobre a formação da fossa tectônica do Raso da Catarina.

Este espaço foi sendo compactado e, sob a pressão resultante, formaram-se as rochas areníticas. Não são conjuntos especialmente rígidos, sendo deformados pela ação do intemperismo.

Assim, costumam apresentar formas que o desgaste torna expressivas, com torres, ravinas e paredes  irregulares. O solo nessa região é arenoso e profundo, sugando a pouca água para seu interior, contribuindo para agravar sua aridez.

E por que é assim chamado e onde fica o Raso? Este nome representa um planalto baixo e arenoso, como ocorre na região, onde a altitude média pouco passa dos 500 metros. Já Catarina era uma poderosa fazendeira, mãe do Coronel Petronilo de Alcântara Reis. Localizado ao norte em Glória, operava nada menos do que vinte fazendas no Raso.

O outro chefe político era João Sá, o Barão de Jeremoabo ao sul. Não eram inimigos entre si, embora o primeiro fosse adversário e o segundo fosse aliado do cangaceiro Lampião.

Mapa do Raso da Catarina, abrangendo 25 mil km2.

O Raso está localizado entre os rios São Francisco ao norte e Vaza-Barris ao sul, este sendo o único curso semi-perene que o atravessa. A leste é limitado por Paulo Afonso e Jeremoabo e a oeste, por Canudos e Monte Santo. Sua superfície oficial é de 30 a 38 mil km², o que constatei ser um exagero.

Veja que a área total dos sete municípios que o contêm é de metade deste tamanho. De acordo com sua descrição oficial, suponho que o Raso na realidade ocupe de 15 a 20 mil km², um pouco maior do que o vizinho Boqueirão da Onça.

Apesar de ser predominantemente plano, o raso apresenta alguns cânions, principalmente a sul e oeste – são visíveis da rodovia entre Canudos e Jeremoabo. O mais conhecido dentre eles foi escavado pelo Riacho do Cachimbo e ocorre entre a Baixa do Chico e o Brejo do Burgo, com 12 km de extensão.

Atravessado por uma estrada precária, tive de percorrê-lo (parcialmente) a pé, pois não estava trafegável. Suas  paredes não são altas, com talvez 50 metros. E tampouco são próximas, afastadas de 150 metros no início e alargando-se para 750 metros no fim.

Início do cânion próximo à baixa do Chico. Note a aspereza das paredes e a variedade da vegetação.

Mas é um visual impressionante, pela severidade da natureza. Mesmo a caatinga estando verde, você se verá envolvido num mundo ocre, entre a areia do chão e o arenito da escarpa. As paredes são desgastadas, com formas ameaçadoras de pináculos, ruínas e penhascos. E o calor costuma ser insuportável: acredito que encontrei algo como 37⁰, mas já foram lá medidos 62⁰C.

Junto com o Boqueirão da Onça, que fica logo a oeste e do qual é separado pela cadeia do Espinhaço, o Raso da Catarina é uma das maiores extensões (se não a maior) de caatinga do país. Mas são coberturas diferentes, pois a do Raso tem um impressionante porte médio ou até mesmo alto.

Isto significa que é recoberto por arbustos e arboletas, não por vegetações herbáceas rasteiras, como o Boqueirão. Além dos usuais cactos e bromélias, são encontrados umbuzeiros, catingueiras, pereiros e umburanas. Mas há presenças de árvores de porte como jatobás, angicos e aroeiras.

Segundo Luciano de Moura, não tem havido alteração ecológica na região. As faveleiras, plantas associadas à desertificação, não têm se alastrado nos últimos anos.

Cactos facheiro ao amanhecer na Baixa do Chico (Fonte – Marcelo Brandt).

Como diz Jurandir Lima, a caatinga costuma apresentar um aspecto sombrio e agressivo. As folhas não são longas, os troncos das árvores são retorcidos, os galhos formam emaranhados lenhosos e muitas plantas são espinhentas. Em particular, a caatinga de areia é em geral mais entrelaçada, nem tente atravessá-la sem uma trilha definida.

Como pode o solo ser de tão baixa fertilidade, se suporta uma flora relativamente abundante? E isso ocorre na ausência de chuvas, que chegam a apenas 350 mm por ano e apresentam distribuição muito irregular, com mais de dez meses de seca.

Há regiões onde sequer chove por anos. A água é buscada nas bromélias e raízes do umbuzeiro, ou então nos miolos dos cactos mandacarus, xique-xique e facheiros.

Não são muitos os animais que lá sobrevivem – os de maior porte são a onça parda, o veado campeiro e o queixada. Avistei uma raposa e um gato do mato e, com sorte, teria encontrado algum quati ou texugo.

Há certa abundância de aves e também de cobras como a cascavel e a jararaca. Edmilson de Sá conta que, no brejo de altitude da pequena Rebio da Serra Negra ao norte, já em Pernambuco, existem relatos de onças pintadas. E, logo a seguir, você saberá sobre o mais notável animal endêmico do Raso.

Naturalmente, o Raso é escassamente habitado, com uma dezena de povoados perdidos pelo planalto. As duas entradas a partir de Paulo Afonso são pela Baixa do Chico e pelo Brejo do Burgo, a 40-50 km. Acredito que a população residente não ultrapasse dez mil pessoas, entre sertanejos e indígenas.

E quais são os índios do Raso? Trata-se dos pankararés, uma etnia associada à dos pankararus. Descendem da população que originalmente habitava a região do São Francisco entre a Cachoeira de Paulo Afonso e a embocadura do Rio Pajeú, cerca de 70 km rio acima, espalhando-se pelos campos e serras próximas.

Esquecidos pela sociedade, tiveram suas terras tomadas pelos posseiros da região – muitos deles tornaram-se vaqueiros, meeiros e roceiros, abandonando seus costumes tradicionais.

Ritual do Toré, praticado pelas tribos nordestinas. Ao som do toante, são invocados os Encantados, moradores no invisível e intermediários entre homens e espíritos.

Os conflitos pela posse da terra original aproximou as duas etnias – os pankararus haviam se deslocado para a margem direita do São Francisco em Pernambuco.

Com auxílio deles, os pankararés retomaram algumas de suas práticas religiosas, como o Toré, um ritual em que há comunicação com o espírito dos ancestrais. Entretanto, perderam sua língua nativa e só falam, e mal, o português, até mesmo por serem analfabetos.

Suas sete aldeias ocupam duas Terras Indígenas, com a apreciável área de 48 mil hectares. Pertencem principalmente aos municípios de Rodelas e Glória. São no total três mil indivíduos.

Já os pankararus habitam uma pequena reserva no sertão pernambucano, entre Jatobá e Tacaratu, duramente conquistada, onde somam oito mil pessoas. Como é comum no Nordeste, esses indígenas são despossuídos e aculturados.

Gostaria de comentar sobre três reservas naturais no Raso da Catarina. A maior delas é a ESEC (Estação Ecológica) localizada bem no centro da região, com 100 mil hectares. Ela é recoberta por uma vegetação mais densa.

Pertence ao IBAMA e é destinada principalmente à pesquisa, não sendo aberta à visitação. Seu formato é curiosamente um retângulo regular. Note que os territórios indígenas são adjacentes a ela.

Mapa da ESEC Raso da Catarina e da TI Pankararé (Fonte – FUNDAJ – Fundação Joaquim Nabuco).

Existe a uns 15 km da atual Canudos um surpreendente Parque Estadual. Está no caminho do povoado de Bendegó, onde ficava um meteorito de mesmo nome, agora no Museu Nacional. Este parque de pouco além de mil hectares preserva a história da Guerra de Canudos, que você vai conhecer no capítulo seguinte.

É um lugar dramático, nas colinas acima do vilarejo destruído pelo Exército nos fins do século XIX e meio século depois inundado pelas águas de um açude. Você subirá a locais imortalizados pelo relato de Euclides da Cunha e pela tragédia dos miseráveis e inocentes que lá sucumbiram.

Neste sítio, você conhecerá ao ar livre o Alto da Favela, o Vale da Morte, o Alto das Memórias e o Outeiro das Marias. Procure que Paulo Régis seja seu guia, ele reside lá e cultua o passado de sua avó Isabel. No fim, você avistará  as ruínas da segunda Igreja do Bom Jesus, erguida sobre os escombros da primeira, emergindo na imobilidade do silêncio das plácidas águas do açude.

No PE de Canudos, Conselheiro continua caminhando pela caatinga.

A Igreja do Bom Jesus continua existindo.

A terceira reserva é a Estação Biológica de Canudos, numa antiga fazenda a 20 km da vila. É uma operação particular, numa associação entre a ONG mineira Biodiversitas e um fazendeiro local, do qual você saberá mais a seguir.

A Estação de 1.500 hectares é mantida por um fundo criado por Judith Hart, uma médica norte-americana. Seu propósito é a preservação da arara azul de lear.

O que é esta arara? Ela foi descrita pela primeira vez em meados do século XIX, a partir de duas aves na França, uma empalhada e outra ainda viva. Seu desenho pelo ilustrador Edward Lear deu-lhe este nome tão diferente.

É um animal pequeno, que se distingue da ararinha azul por sua coloração azul cobalto. Dada como desaparecida, foi descoberta no Raso da Catarina em 1979 por Helmut Sick, talvez o mais notável ornitólogo brasileiro, na última expedição de sua vida.

As araras de lear foram resgatadas da extinção por trinta anos de preservação na Estação Biológica de Canudos.

Encontrava-se então a caminho da extinção, com apenas 50 indivíduos vivos. Hoje este risco foi superado, pois existem 1.500 delas. Fazem seus ninhos exclusivamente na Toca Velha e na Serra Branca, na região do Raso. Voam todos os dias para as áreas de alimentação a 50 km de distância, retornando aos fins das tardes.

Avistá-las na madrugada exige que você acorde ainda no escuro. Mas a experiência de vê-las voar pela vastidão dos incríveis paredões rochosos que são o seu lar e escutá-las comemorar a vida com seus gritos roucos é um momento único de paz e alegria, que o fará sentir como o mundo pode ser tão bonito.

Encerro este texto com o mais notável dos brasileiros que cruzaram as imensidões do Raso: Virgulino Ferreira da Silva ou Lampião, o Rei do Cangaço.

Outros dois nordestinos importantes lhe foram contemporâneos: Cícero Romão Batista, o Padre Cícero, e Antônio Vicente Maciel, o Antônio Conselheiro. Todos os três nasceram no século XIX e apenas os dois primeiros se conheceram.

Padre Cícero é a maior figura religiosa do Nordeste. Viveu na região de Juazeiro do Norte no Ceará e foi suspenso pela Igreja devido a um milagre suspeito. Foi provavelmente um grande manipulador das crenças populares. Tornou-se político de enorme influência, tendo sido prefeito e deputado.

Participou de revolta contra o governador, com a ajuda de jagunços recrutados entre cangaceiros e romeiros, que chegaram a saquear Fortaleza. Considerado santo e profeta, foi o maior fazendeiro do Cariri e o mais poderoso coronel da região.

Padre Cícero (1844-1934).

Antônio Conselheiro (1830-1897).

Lampião (1898-1938).

Antônio Conselheiro teve uma infância (na realidade, uma vida) difícil – órfão de mãe cedo, seu pai era alcoólatra e sua madrinha era perversa, logo se separou de sua esposa infiel e começou a vagar pelos sertões assolados pela seca. Começou a atrair seguidores para suas pregações, que eram conservadoras e messiânicas.

A Igreja, os fazendeiros e as autoridades suspeitavam tratar-se de um revoltoso monarquista e o arraial que fundou em Canudos foi atacado pelas tropas do Exército. A quarta expedição aniquilou-o por completo. O corpo de Conselheiro foi exumado e sua cabeça decepada foi levada para ser exibida em Salvador.

Lampião foi assim chamado pela facilidade em manejar o rifle que, de tanto atirar, mais parecia um candeeiro aceso nas escuras noites da caatinga, no dizer de Cicinato Ferreira.

Nasceu em Serra Talhada (PE), um lugar rude e seco, e ainda jovem envolveu-se numa disputa de terras que custou a vida de seu pai – isto o fez juntar-se ao bando cangaceiro de Sinhô Pereira. Mas três anos depois já chefiava seu grupo no maior assalto da época em Alagoas.

Levou uma vida errante durante vinte anos, acompanhado por uma até centena de homens, praticando assaltos, emboscadas, sequestros e vinganças. Lampião atacava famílias, fazendas e cidades, inclusive Mossoró (RN), a segunda maior do Estado.

Seu bando era acusado de praticar estupros, castrações e assassinatos. Percorreu todos os Estados do Nordeste, tendo chegado em 1930 na Bahia, onde conheceu e se apaixonou por Maria Bonita.

Na Bahia, Lampião escolheu o Raso da Catarina para se alojar – uma região enorme onde se embrenhava a salvo dos policiais volantes e onde desenvolveu uma rede de coiteiros e informantes.

O casal foi morto junto com um pequeno grupo em Poço Redondo (SE). Os restos mortais foram exibidos por três décadas em Salvador, até que em 1969 as cabeças de Lampião e Maria Bonita foram sepultadas.

Os cangaceiros de Lampião, em foto de Benjamim Abrahão Botto.

Para a população sertaneja, ele encarnou valores como a bravura, a liderança, o heroísmo, a astúcia e a honra. Suas façanhas o transformaram em um herói popular, com uma reputação parecida com a do malfeitor norte-americano Jesse James e do revolucionário mexicano Pancho Villa.

As atrocidades de que foi acusado teriam sido feitas por outros cangaceiros que não ele. Lampião seria um idealista, um justiceiro primitivo, um bandido ético e social.

Esta visão tem sido crescentemente contestada. Lampião é hoje visto como um criminoso, aliado do poder e praticante da injustiça.

Na opinião de Lira Neto, seu bando seria semelhante aos traficantes de drogas que hoje sequestram, matam e corrompem nas grandes metrópoles do país. Guardadas as proporções, o cangaço foi algo como o PCC dos anos 1930.

Diz o pesquisador Melquíades Paiva que são evidentes as correlações de procedimentos entre cangaceiros de ontem e traficantes de hoje. A rigor, são velhos professores e modernos discípulos.

No traje, na postura, na atitude e na imagem, cangaceiros e traficantes se equivaleriam, nas opiniões de Élise Grunspan-Jasmin e Luitgarde Barros.

Mas é possível que Lampião não fosse um demônio nem um herói, e sim apenas um cangaceiro. Na realidade, ele continuou e incrementou uma tradição de violência fomentada pelas péssimas condições sociais,  iniciada com Cabeleira no século XVIII e só encerrada com Corisco dois séculos depois.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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