O Rio dos Lírios Vermelhos – Parte 2

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Relato sobre a travessia Ciririca-Graciosa de 29/30 de Abril e exploração de parte das encostas deste trecho da serra em 14 de Junho de 2001, segunda parte.
Texto de Julio Cesar Fiori.

A vegetação é muito peculiar, composta de arbustos retorcidos com os troncos cobertos por um musgo ressequido e copadas muito duras, niveladas pelo vento na altura das bordas. O fundo destas grotas é recoberto por folhas secas e perigosas bromélias com altura de 1,20 metro e folhas em forma de espadas com dois gumes afiadíssimos e cortantes feito navalhas e um esporão venenoso na ponta. São grandes ouriços com centenas de espinhos prontos para cutucar o corpo, ferir as mãos e furar os olhos dos incautos.

A trilha segue ora pelo fundo deste labirinto de valas, ora pelos campos de altitude  e fora delas até uma bifurcação bem próxima ao Agudo da Cotia onde paramos para terminar a discussão. Convencer o Paulo mostrou-se impossível e mesmo depois de perder na votação continuava gralhando suas razões. Voto dado, fomos armar o acampamento em uma elevação à direita, já no caminho para o rio Forquilha. Enquanto eu e o Elcio montamos as barracas, o Paulo e o Pioli voltam pelo caminho para apanhar água. Assistimos um magnífico por do sol com o horizonte tingido de vermelho e ouro, mas já começaram a aparecer nuvens indesejáveis que fizemos questão de não considerar e até mesmo não ver.

No jantar fiz duas embalagens de tutu de feijão combinadas com duas de arroz primavera engrossada com rodelas fritas de salame italiano e para completar o Pioli fritou três ovos.  Para nossa sorte o Elcio é vegetariano deixando todos os cadáveres para nosso consumo. De barriga cheia combinamos levantar às cinco para subir o Cotia e de lá presenciar o nascer do sol, depois ir para o Lontra e voltar ao acampamento para o almoço. Tudo correu muito bem durante o dia todo, sem nenhum imprevisto e todos dormiram o sono dos justos.

Antes do amanhecer o Elcio avisou que o céu estava limpo e o capim seco. Durante a noite não havia ventado e tudo estava perfeito demais. Menos de dez minutos depois começou a soprar uma brisa vinda da direção do mar e em segundos o tempo fechou. Imediatamente começou a chover e a temperatura foi caindo rapidamente. Foi um desânimo geral e a subida ao Cotia ficou cancelada. Discutia-se os riscos de seguir adiante. O Elcio alertava para a dificuldade de atingir a garganta entre o Tangará e o Cotoxós sem visibilidade, mas também destacava que bateria o arrependimento se voltássemos. O Paulo, muito sensato, advogava a idéia de escalar-mos o Ciririca, voltando em segurança por caminho conhecido.

Sensatez nunca foi uma qualidade muito desenvolvida entre montanhistas. A chuva não deu mostras de ceder e às oito horas já havíamos desmontado acampamento e ensacado a viola. O Elcio traçou o rumo pela bússola no azimute 235º que também marquei na minha “Silva”, colocando-a nas costas da mão, sob a luva. Encharcados e com frio começamos a caminhar na direção apontada através dos campos de altitude e sem visibilidade nenhuma.

O corpo estava frio e meu tornozelo doía demais. Não tardou e encontramos a primeira vala. Conferimos o azimute e pulamos no buraco procurando pegadas e marcas de mãos no limo dos arbustos. Desviando galhos, esporões de bromélias e buracos seguimos até aparecerem pedras e areia, depois poças de água e por fim aquilo havia transformado-se num córrego. Muitas pedras cobertas de limo e chegamos a um riacho com bom volume de água.

As pedras cresceram de tamanho exigindo maior atenção e por vezes toda a água sumia entre elas para retornar a algumas dezenas de metros abaixo. Horas se passaram quando finalmente atingimos o Rio Forquilha no fundo do vale. Quanto maior o volume de água pior para caminhar, mas já estávamos experientes neste mister e desenvolvíamos um bom ritmo com o corpo encharcado mas bem aquecido. Meu tornozelo se acomodou mas o Elcio queixava-se do joelho e o Pioli reclamava muito da falta de aderência das botas.

Seguíamos envoltos cada um em seus pensamentos quando por instantes a chuva diminuiu e a garganta ficou parcialmente visível no alto das montanhas em frente. A alegria foi intensa mas de curta duração e paramos para um lanche sobre uma comprida laje inclinada e repleta de piscinas com água cristalina. Ao sentar senti que meu calção já era, gastando-se na atrito com as pedras. Peguei na mochila um outro e o substitui antes de prosseguir.

Retornei a caminhar um pouco antes dos outros ganhando assim uma pequena dianteira e ao passar por uma enorme pedra arredondada na margem esquerda do rio fui surpreendido pelo grito de alerta de uma grande ave assentada numa árvore acima desta pedra que imediatamente bateu asas e desapareceu. Tomei aquilo como um sinal, conferi o azimute e parei para esperar os demais que não tardaram a chegar.

O Elcio nos mandou procurar um pequeno afluente na margem esquerda enquanto ele descia o rio para tirar uma fita que conduzia a uma grande roubada. Mesmo sem ver nenhum sinal contornamos a pedra pela direita e seguindo a direção do azimute avançando por um terreno perigoso e repleto de pedras com grandes fendas encobertas por folhas e galhos que constituíam uma armadilha mortal. Mais adiante encontramos um riacho descendo da direção correta, mas que fazia uma curva estranha e acabava seguindo paralelo ao Rio Forquilha.

O Pioli havia ficado esperando no Forquilha com as mochilas, eu estava com a minha nas costas, portanto não tinha razão para voltar e o Paulo com o Elcio retornaram para explorar o córrego e pegar as mochilas no rio. É terrível ficar esperando sozinho dentro do mato sem saber o que esta acontecendo com os outros. Os minutos ficam muito compridos e a ansiedade os esticam ainda mais. Várias vezes pensei em voltar, mas aí poderia gerar um desencontro e a coisa ficaria feia de vez. Após um longo tempo todos apareceram e pudemos seguir adiante.

O córrego acompanha o Forquilha por uma boa distância e na sua foz havia uma fita branca a qual foi adicionada uma azul e outra lilás. Subir é sempre mais complicado, mas estávamos animados porque o Elcio ia reconhecendo indícios e lugares até que confirmou-se o acerto da escolha quando encontramos uma simpática cachoeirinha de não mais que 1,80 metros descendo a pedra pela direita. Subimos no pau até o córrego dividir-se em dois e em seguida sumir no mato fechado. Optamos pelo da esquerda e subimos uma pilha quase vertical de pedras encimada por um bambuzal trançado de espinhos e folhas mortas na altura dos joelhos.

Daqui para frente é offroad como salientou o Elcio, bússola na mão e mato no peito, cara e coragem seus ninjas!!! Quanto mais subíamos mais bambu e espinho aparece. A coisa ficava cada vez mais feia quando a vegetação começou a mudar. Começavam a aparecer por cima das taquaras as grandes árvores espaçadas e cobertas de limo que caracterizam os colos de montanha na mata atlântica e finalmente começamos a enxergar buracos brancos por entre a folhagem das árvores.

Muito rapidamente o terreno mostrou-se subindo à direita e à esquerda e descendo à frente. Gritamos de euforia, estávamos na garganta, o pequeno colo entre o Cotoxós e o Tangará que dá passagem para o lado da Graciosa. Soprava um vento gelado vindo do mar e sentamos no barro para comer e descansar, curtindo aquele lugar quase místico.

Passava das treze horas e estávamos congelando ali parados na chuva. Infelizmente não podíamos ficar mais tempo, mas estávamos muito tranqüilos porque as incertezas haviam acabado ali naquela garganta abençoada. Agora era só seguir em frente e começamos a descer a vertente quase vertical, forrada de pedras, bambu e espinhos. Aos poucos apareceram poçinhas de água entre as pedras, depois a água começou a correr e assim, gota a gota vimos nascer o Rio Mãe Catira que deveríamos acompanhar pelas próximas cinco horas de caminhada.

O rio cresce a todo instante com o acréscimo de pequenos tributários e desaparece por entre as pedras por grandes trechos, reaparecendo mais forte em seguida. Devagar se alarga e diminui a marcha. O passo é lento e cauteloso procurando as melhores pedras para pisar. Qualquer tropeço ou torção seria um problema imenso neste lugar. O Pioli continua com grande dificuldade para caminhar devido à insegurança das botas. As horas se emendam e a paisagem pouco se altera causando uma certa angústia.

Impaciente, comecei a me adiantar um pouco, quando percebi que o rio estava novamente se tornando mais rápido. Dividiu-se em dois despencando-se a esquerda. Contornei com algum esforço pela direita e percebi a entrada de uma sinuosa garganta cortada na encosta da montanha. O rio espremeu-se e entrou agitado neste corredor de pedra. As paredes verticais, negativas até, elevavam-se dezenas de metros acima da água, cobertas de limo escuro, transmitindo ao lugar um clima sombrio e misterioso debaixo daquela chuva intermitente. O ruído vai aumentando e todo o rio se lança para a luz num vazio de mais de cinqüenta metros. Sentei-me próximo à cabeceira da queda contemplando aquele espetáculo enquanto esperava os companheiros.
 
Continua em “O Rio dos Lírios Vermelhos” – Parte 3

Juntos, cruzamos para o lado esquerdo e passamos sobre uma pedra na beira do vazio, entrando na floresta e iniciando o contorno da cachoeira. Descrevemos uma grande semi-círculo pela encosta barrenta à esquerda da queda, povoada de bambu e xaxim, até atingirmos o fundo da grota a poucos metros da piscina na base. A luz estava péssima para fotografar e pouco nos demoramos. 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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