Quinquilharia incompreensível. O pequeno filme da internet que me tinha entusiasmado, era um video sobre uma ascensão moderna do mítico escalador norte-americano Peter Croft. Peter Croft, com 53 anos, continua a pautar elegantes ascensões em rocha que conclui, sobretudo nas montanhas californianas, em redor de Yosemite National Park. A realização que colocou Peter sob os holofotes da ribalta da tímida comunidade de escaladores foi, sem sombra de duvida, a ascensão em solo integral da famosa via Astroman, em Washington column, Yosemite. Corria o ano de 1987 e tinham passado onze anos desde a primeira ascensão em escalada livre da Astroman, uma via considerada anteriormente como linha de artificial. A Daniela a iniciar o primeiro lance em travessia da nova via. A escalada de Peter sem corda desta linha ícone impregnou-lhe um estatuto de lenda viva. No entanto, as realizações desportivas por si só, não bastariam para cativar a atenção para este escalador. Existia outro factor muito mais determinante, muito mais importante do que números insípidos de graus ou colecções. Um factor subjectivo e impalpável, partilhado também, por uns poucos, nos quais insiro Lynn Hill ou Alex Lowe, apenas para referir alguns. Eu, a iniciar o terceiro lance da nova via (o sétimo, se contarmos todos os lances da travessia desde o inicio). O apêndice no capacete serviu para sacar umas imagens animadas! Ainda no mesmo largo. Baptizamos este sitio com o nome: Reunião do coração. Adivinhem porquê. Lynn Hill, apesar da sua reduzida estatura sempre foi dotada para o desporto e foi na escalada em rocha que se excedeu.
Ainda muito jovem esta rapariga foi praticamente adoptada pelo grupo restrito de escaladores que, logo após o auge do movimento Hippie, se instalaram permanentemente no vale do Yosemite. Este grupo sobrevivia como podia, realizando puxadas ilegais aos postes locais para poderem ter electricidade e concretizando pequenos serviços temporários no parque, muitas vezes em troca de comida para poderem permanecer na meca da altura e assim alimentarem os seus sonhos insaciáveis de escalada. Lá embaixo, sobe a Daniela, depois de passar o crux do lance numero 9. A chegar à reunião que baptizamos de: Reunião das ratazanas mortas. Numa pequena plataforma, no canto superior direito da foto (não visivel) encontramos duas ratazanas em estado de decomposição. Decerto uma gentileza das rapinas locais. Uma presença feminina inserida numa tribo de machos, entre os quais cirandavam nomes, já na época sonantes, como Jim Bridwell ou John Long, constituía uma espécie de catalisador. No entanto, convêm pontualizar que Lynn Hill não funcionava de todo como a mascote de um bando atulhado em testosterona. A primeira ascensão absoluta em escalada livre da célebre via Nose, no colosso de 900 metros do El Capitan, depois de várias tentativas protagonizadas pelos mais fortes do vale, veio comprovar, caso ainda existisse um remanescente de dúvida, as capacidades desta escaladora dedicada. Na bonita entrada do 9º lance de escalada. A chegar à “Reunião das ratazanas mortas”. Alex Lowe, por seu turno, era frequentemente mencionado como Cavaleiro branco ou Pulmão com pernas, devido à sua fortaleza física e mental.
Ao contrário de Peter Croft ou Lynn Hill, escaladores de rocha convictos, Alex sobressaiu no terreno alpino, figurando no seu curriculum ascensões mistas e de gelo extremamente difíceis aos níveis técnico e psicológico. Uma das suas realizações indeléveis foi a abertura de uma via de Bigwall nas Torres do Trango, no Paquistão, Parallel worlds em 1999. Esta ascensão notável a juntar ás outras duras escaladas protagonizadas por Alex demonstraram a competência deste grande alpinista versátil. Alex Lowe morreu sepultado por uma avalanche, durante uma actividade de reconhecimento à face sul do Shisha Pangma. Com ele foi também a fotografia dos seus dois filhos, que transportava sempre em todas as suas expedições. A Daniela a terminar a via. Lá embaixo, a baleia sempre presente. Onde está a baleia? Alex era reconhecido na comunidade de escaladores pela sua coragem, graça, aptidões atléticas e sobretudo pela sua humildade, esta ultima qualidade, em minha opinião, vai de encontro directo com o seu mais importante legado, transcrito numa singela ideia. Ideia essa em tudo relacionada com o tal factor subjectivo e impalpável, comum a Peter Croft e Lynn Hill. Comum também a outros tantos, que desejava serem muitos mais. No dia seguinte, a Daniela e eu embrenhámo-nos numa nova aventura. No primeiro dia escalámos a primeira parte de uma nova via na bela falésia dos Pinheirinhos, na Arrábida. Consideramos esta parede como uma espécie de nosso quintal e a cada visita maravilhamo-nos mais com a beleza natural circundante. Íamos decididos a enfrentar as dificuldades com um estilo ligeiro e, para isso não transportámos a batota favorita: a máquina de furar. As plaquetes que parcamente abandonamos foram colocadas à mão o que constituiu um bom lembrete da dureza da tarefa. Embora a máquina nos tenha acompanhado nalgumas das nossas mais recentes aberturas, acredito que é muito salutar continuar a pensar que a colocação de bolts à martelada e à mão tem um fundamento de fair-play mais acentuado, no fundo, mais ético. Uma primeira grande travessia horizontal por baixo de um arco de extra-prumos góticos de calcário introduz-nos num mundo estranho e surreal. O movimento suave do mar azul e transparente mesmo por baixo dos pés vai deformando o leito, revelando imagens etéreas, sugerindo uma aura misteriosa neste lugar singular. O ambiente quase esotérico condiciona as acções. Escalar aqui requer algum esforço mental suplementar, uma inspiração particular. Mundo das sombras. A Daniela, na travessia inicial e o primeiro largo original da via. A chegar à primeira reunião da via, com o mar aos pés. “Deep water soloing”, carregados de material! O primeiro lance vertical da via, revela os seus segredos sob a forma de uma rocha sólida e confiável. Cruzamos território inexplorado e vertiginoso mas, nunca extremo em termos de dificuldades. De facto, as formas rochosas exageradas, durante milénios pertencentes ao reino da escuridão, depois colocadas a céu aberto pela eterna acção do Atlântico, foram esculpidas por processos geomorfológicos, que criaram a ergonomia suficiente para permitir uma escalada relativamente fluída, mesmo com muito ar debaixo dos pés. Uma fissura perfeita para desfrutar dos primeiros passos verticais da via. “Finalmente para cima!” Vistas vertiginosas desde a segunda reunião original da via. E a realizar o ultimo passito delicado de acesso à reunião. No segundo dia da abertura, uma nova surpresa surgiu no horizonte. Golfinhos. Não é a primeira vez que avistamos estes cetáceos a rumar em direcção ao oceano profundo, graciosamente emergindo e mergulhando de forma cadenciada. A aparição destas almas dos mares desperta-nos sempre sorrisos rasgados e exclamações de jubilo. Um momento de paz e maravilha num mundo cada vez mais confuso e de futuro incerto. O surgimento fugaz destes belos animais devolve-nos o sentimento de que o planeta vai subsistir, o azul do céu continuará a brilhar e o oceano seguirá insondável. Os Golfinhos vão à frente (dois pontinhos no extremo direito da foto)… perseguidos por um chato dentro de um pequeno yate que os queria acompanhar. O ultimo lance da nossa via revelou-se o mais exigente. Precariamente suspenso num friend marginal, acabo de arruinar os rins a colocar o ultimo expansivo. Desde este ponto ergue-se uma fissura/diedro estética e atractiva. Pensei: Assim que lhe colocar as mãos… lá vou eu! Coloquei-lhe as mãos e… cerca de uma hora depois depois de muito mais tempo a cruzar uma placa teimosa emergimos no topo da falésia. Resolvemos baptizar a nova via com o nome Golfinhos. Uma pequena homenagem à vida. Dois momentos no ultimo lance da nova via. O largo mais exigente e que deu mais trabalho a abrir. Dois dias antes, depois de ver o pequeno video de Peter Croft, organizei o material e fiquei para ali a olhar para a quinquilharia. De repente, surgiu-me na cabeça a ideia concreta do que me fascina na escalada e na montanha e o que verdadeiramente me motiva. No filme de Peter Croft, este termina com uma curta dissertação:
Eu gosto de ir a locais onde ainda existem uma série de desconhecidos, o que quero dizer é que busco a aventura e que isso me mantêm lá encima. Quando todos os elementos se unem, parece magia. Parece que… esse é o teu dia!
Por outro lado, Lynn Hill, após a sua ascensão em livre da via Nose, escreveu:
A realização final desta ascensão não foi apenas o culminar da minha carreira de 18 anos de escalada mas, representou também um simbolismo do tipo de valores que dão sentido e riqueza ás minhas experiências na escalada. (…) Estes sentimentos de paixão e convicção foram os que me permitiram atingir o fundo do meu ser e aceder ao poder imenso do espirito humano.
Alex Lowe, por seu turno, numa reportagem publicada na American Alpine Journal, escreveu uma frase muito simples mas com um significado imenso:
O melhor escalador do mundo é aquele que mais se diverte
Luzes sobre o dentinho do Gatinho. Estas palavras que poderiam ter sido ditas por outros que considero (e que jogam a um nível muito superior ao nosso), relembram-me o que realmente valorizo e que vai muito para além dos números, colecções, logros ou realizações. Vai para além até do terreno de jogo, desportiva, aventura, boulder, alpinismo, rocha boa, rocha podre, erva ou escombros. O que realmente relaciona os Pinheirinhos, as pessoas, o mar, os golfinhos, o céu, as nuvens, as montanhas, a aventura, pode traduzir-se numa única palavra, um poderoso concentrado de valores que se conhece pelo nome de… ESPÍRITO. Paulo Roxo Os topos