Os dias de esperança

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O granito é negro, com erupções de cristal a polvilhar a superfície rochosa. A inclinação da parede raramente atinge o angulo recto. Juntas, estas características intimidam bastante.



Placas de granito tombadas, impossíveis de
proteger, cuja única forma de progredir consiste em confiar em
minúsculas pedrinhas salientes. Movimentos que obrigam a um bom
equilíbrio bio-mecânico e mental… sobretudo mental.

A queda está fora de questão. Dependendo do
espaçamento entre protecções, uma queda muito dificilmente terá um
desfecho terminal mas, a certeza de um esfoliante de pele gratuito e
involuntário é suficiente para demover os espíritos mais afoitos, com
atracção pelo “movimento limite”. A tão famosa atitude de escalada do
“ir à morte!” tem aqui uma expressão muito mais humilde.

Texturas de
cristal.

No entanto, cada ascensão é uma realização. Cada
escalada significa o culminar de mais uma aventura bem sucedida,
antecipada por sentimentos inquietantes e ansiosos.&nbsp,

É assim a escalada na Peneda.

Assim funcionam as coisas na parede da
Meadinha.

Pelo menos para
mim.

&nbsp, O novo “catrapázio” localizado antes do
caminho “dos deuses”.

Chegados de uma curta viagem de
escalada por Espanha onde as ideias concretizadas ficaram aquém das
actividades almejadas, confiámos as nossas almas cansadas ao conforto de
um prado orlado pelo tupido da vegetação luxuriante, característica das
terras húmidas do Gerês.

Minutos
depois de desligar o motor do carro, estafado pelos muitos quilómetros
rodados, adormecemos, isolados do frio da noite pelo fino tecido da
pequena tenda.

O silêncio do
local garantia um descanso tranquilo e reparador.

Tranquilidade…

Escalámos a via “S”.

Esta linha, aberta no ano de 1979 por Santiago
Alonso, Bonifacio Lopez e Francisco Garcia, constitui uma obra prima
ultra-lógica e intuitiva. É talvez, uma das vias mais escaladas da
Meadinha mas, a sua repetição nunca cansa.

A Daniela a iniciar o
super-clássico primeiro lance da super-clássica
“S”.

No mesmo
largo.

Na saída do exigente
segundo lance da “S”.

O acrescento de algumas plaquetes
ao numero de spits originais, tornou a linha mais acessível, no entanto,
ultrapassar as belas lastras de granito do primeiro lance, lutar com os
passos exigentes do diedro horizontal do segundo largo e evitar a placa
“impossível” do terceiro lance, revelarão sempre sentimentos que
descrevem sem a necessidade das palavras, as emoções repetidas por
gerações de escaladores.

&nbsp,

O
fantástico terceiro lance da
“S”.

Passinhos precários ao
terminar o terceiro lance da
“S”.

&nbsp, Iniciando o quarto e ultimo lance da
“S”.

O reino do cristal… e da humidade!

Um queda brusca das temperaturas devolveu-nos
o Inverno. Uma chuva miudinha mas intensa arruinou-nos os planos de
escalada seguintes.

Era o dia do
aniversário da Daniela e o plano consistia em tentar inaugurar uma nova
via nesta emblemática parede.

Ainda
deu tempo para a Daniela escalar um primeiro largo antes da chuva nos
mandar para os circuitos turisticos da região.

Em lugar de nos rendermos à depressão psíquica que a
depressão atmosférica insistia impingir, obrigámos o bólide a cruzar a
fronteira e rendemo-nos antes a uma deliciosa tapa de “pimientos
padrón”, num simpático bar de estrada perdido na Galiza.

Depois, seguiram-se umas horas de turismo “à
séria” que nos conduziram a uma centenária quinta vinícola, onde
adquirimos uma garrafa de néctar verde alvarinho, após uma visita lúdica
ao palácio da Brejoeira, em Monção.

A chuva, ou melhor dizendo, chuvinha, não ofereceu
qualquer trégua mas, a jornada terminou com uma agradável sensação de
“dia diferente”.

O ultimo dia disponível seria o dia “D”. “D”
de Dúvida… “Escalamos simplesmente, ou tentamos abrir a tal via
nova?”

“Escalamos ou
abrimos?”

“Abrimos ou
escalamos?”

Resolvemos tentar a
sorte.

“Abrimos!”

Tratava-se de completar um projecto iniciado em
2010. Nessa altura, o dia terminou com a abertura de um primeiro lance e
pouco mais.

O primeiro largo da
“Esperança” emerge da floresta
amazónica.

O estético esporão de
saída do primeiro lance.

O alinhamento escolhido adivinhava a
obrigação de abandonar um numero elevado de expansivos. Por esse
motivo, a decisão de utilizar a “batota” não foi difícil de
tomar.

A tática de utilizar a
máquina elétrica, mesmo que seja para uma abertura integralmente
realizada desde baixo, entrará sempre em conflito com as formas e
estilos de escalar paredes. Trata-se de um conflito pessoal interno. Se a
escalada escolhida, possui placas grandes desprovidas de fissuras, a
colocação de expansivos à mão, consumirá muito tempo. No nosso caso em
particular, o muito tempo seria muito mais que um dia de escalada. Esta
era uma situação para a qual não dispúnhamos de dias, nem
paciência.

O segundo lance começa
com dois passos de artifo, passiveis de serem forçados em livre mas…
estavamos com pressa

O compromisso assumido consistiu
em utilizar a máquina da forma mais moderada possível, colocando um
mínimo de plaquetes.

Era o tudo ou
nada. Ou saía no dia ou não sairia de todo, pelo menos nesta
viagem.

Foi com este pensamento de
urgência latente que enfrentei a placa enorme do segundo lance, armado
com a artilharia pesada sob a forma de uma máquina suspensa à bandoleira
com um gancho fi-fi, que permitia trabalhar com apenas uma mão
disponível, enquanto a outra mão… e os dois pés… tentavam a todo o
custo manter o equilíbrio do resto do corpo. Equipar desde baixo em
equilibrios precários envolve um certo grau de aceitação ao risco de uma
queda aparatosa. As cordeletas evitam que o material se despenhe no
vazio mas, também aproximam de uma forma preocupante os tecidos moles do
nosso corpo a um objecto pesado, portador de uma broca aguçada. A
perspectiva de uma queda, arrastando utensílios desta natureza não
ilustram uma imagem agradável no nosso cérebro.

Afastando os pensamentos trágicos, a escalada foi
evoluindo de forma mais ou menos célere.

A
abrir a grande placa do segundo largo. Os estribos serviram para a
abertura. Não serão necessários para a repetição. Em livre? É possivel
mas, será duro!

Um
ponto vermelho no granito.

A Daniela aí vêm…

A grande placa foi ultrapassada e uma rápida
fissura em diedro permitiu um respiro.

Pouco depois, enfrentámos um exigente terceiro
lance de fissura… melhor dizendo, fissura-chaminé que,
surpreendentemente, apenas obrigou a utilizar a técnica clássica (e
incómoda) de escalada em oposição “rabo-costas-joelhos”, lá para o seu
final.&nbsp,

Uma plaquete
estrategicamente colocada protegeu o inicio do quarto largo, local onde
se situam as maiores dificuldades deste ultimo lance. Daí para cima,
restaram apenas metros de escalada amena, obviando convenientemente os
tapetes de musgo e culminando no topo de longas vistas do flanco direito
da Meadinha.

A foto da praxe
precedeu a busca da ultima reunião da via “Puerta sur de los dioses”,
por onde contávamos descer em rapel.

Foto-cume!

Um parêntesis para dizer que a
“Puerta sur de los dioses” representa uma fantástica linha natural que
bem merece um lugar de destaque no panteão das melhores vias da
Meadinha.

Foto-tonta. Na linha de
rapel.

Aberta em 2008 por Miguel Silva e Filipe Sequeira,
esta é sem duvida uma escalada inteligente que vai em busca da grande
fissura central mais que evidente.

Para mim, a surpresa desta via está no terceiro
largo, onde uma travessia de aparência duvidosa, por baixo de um tecto,
revela duas fissuras paralelas horizontais, uma para as mãos, a outra
para os pés, que permitem a protecção perfeita e a progressão rápida e
fácil. Por antagonismo, o lance seguinte é mais lento e difícil
(dependendo, claro está, do nível do escalador) mas, de uma lógica
espectacular.

Desta feita, a
Daniela e eu realizámos a “Puerta sur de los dioses”… em sentido
inverso. As reuniões perfeitamente equipadas conduziram-nos até ao solo,
onde empacotando o material nas mochilas saboreámos uma nova via
escalada na Meadinha.

Uma pequena consolação, para animar um pouco
os espíritos cansados das decepções do ultimo mês… mas isso é outra
historia!

Os Topos

&nbsp,

Croquis emprestado do site www.meadinha.com,
apenas utilizado para efeitos de referência da via
proposta.



Ficha
técnica:

A “Esperança” foi aberta desde baixo com a
utilização da máquina para colocar os parabolts M10 existentes.
Infelizmente, não possuíamos material em inox, por isso as únicas
protecções em inox existentes foram as colocadas no ano passado, aquando
da primeira tentativa de abertura em que foram inaugurados o primeiro e
o inicio do segundo lance.

A via
inicia uns 20 metros à direita do acesso para a via “Puerta sur de los
dioses”, por um esporão de rocha que nasce praticamente no final do
trilho de acesso. A visão do inicio está semi-coberto&nbsp, pela floresta e está constituída por uma
fissura inicial em meia lua para a esquerda, logo seguida de uma quilha
protegida por uma plaquete.

Apesar
de se encontrar perfeitamente “repetível” com o presente nível de
musgo, uma limpeza futura considerável irá permitir um maior desfrute
desta linha e, a possibilidade de se forçar a escalada livre na
totalidade do seu comprimento.

A
descida realiza-se em rapel através das reuniões da “Puerta sur de los
dioses”.

&nbsp,

&nbsp,
Paulo Roxo

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Sobre o autor

Daniela Teixeira e Paulo Roxo é uma dupla portuguesa que pratica escalada (rocha, gelo e mista) e alpinismo. O que mais gostam? Explorar, abrir vias! A Daniela tem cerca de 10 anos de experiência nestas andanças e o Paulo cerca de 25. A sua melhor aventura juntos foi em 2010, onde na cordilheira de Garhwal (India - Himalaias), abriram uma via nova em estilo alpino puro na face norte da montanha Ekdante (6100m) e escalaram uma montanha virgem que nomearam de Kartik (5115m), também em estilo alpino puro. Daniela foi a primeira e única portuguesa a escalar um 8000 (Cho Oyu). O Paulo é o português com mais vias abertas (mais de 600 vias abertas, entre rocha, gelo e mistas). Daniela é geóloga e Paulo faz trabalhos verticais. Eles compartilham suas experiências do velho mundo e dos Himalaias no AltaMontanha.com desde 2008. Ambos também editam o blog Rocha Podre, Pedra Dura (rppd.blogspot.com.br)

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