Augusto Ruschi e José Lutzenberger coexistiram por sessenta anos, o primeiro residindo no Espírito Santo e o segundo, no Rio Grande do Sul. Seus trabalhos atravessaram a maior parte do século XX. Foram quase que isoladamente os dois gigantes na defesa e na divulgação do meio ambiente brasileiro. Eu os chamo de nossa segunda geração de ambientalistas.
Embora enormemente vitoriosos, desconfio que ambos morreram desiludidos – Ruschi dizia que continuaria brigando mesmo sem esperança; Lutz comentava sobre o modelo predatório, consumista e desperdiçador da civilização e previa a iminência de um colapso global.
Os Gigantes (I)
Talvez o melhor resumo sobre Augusto Ruschi tenha sido escrito por seu filho André (levemente editado): Ainda na primeira metade do século XX, Augusto Ruschi realizava excursões pelo Brasil e polemizava com personalidades acadêmicas, políticas e empresariais muitas questões relevantes sobre a importância de se pensar o homem e a natureza numa relação respeitosa. Foi o pioneiro no manejo sustentável das florestas, da agroecologia, do controle biológico das doenças tropicais, das denúncias sobre o perigo dos agrotóxicos.
Santa Teresa, onde Ruschi nasceu, é uma região bem no centro do Espírito Santo, colonizada desde fins do século XIX por imigrantes italianos. Dizia-se que sua família tinha séculos de trabalho, desde a Renascença, com ciência e botânica.
Não surpreende sua vocação ainda na infância para o estudo das plantas, flores e insetos. Isto o colocou em contato com o Professor Mello Leitão, que o contratou como coletor de espécies para o Museu Nacional e o Jardim Botânico no Rio.

Santa Teresa foi fundada por oito colonos italianos. Recebeu depois imigrantes suiços, alemães e poloneses. Tem hoje população de 25 mil pessoas, semelhante à da época de Ruschi. Situa-se na serra capixaba.
Formou-se em Botânica no Rio, mas sua paixão era a natureza e, nela, as bromélias e depois os colibris, dos quais se tornou a maior autoridade mundial. Retornou a seu Estado natal, onde fundou em 1949 na Chácara Anita, propriedade de família, o Museu Mello Leitão.
Abriga um enorme acervo zoobotânico e atualmente pertence ao Ministério da Ciência e Tecnologia. O boletim do Museu divulgou suas incansáveis pesquisas na natureza brasileira.

Em 1970 fundou a EBMAR, Estação de Biologia Marinha no litoral de Aracruz, ES. Ele a adquiriu com seus próprios recursos, para a educação e a pesquisa ambiental.
Ela é banhada por uma corrente de água fria rica em nutrientes, que forma um ecossistema exuberante de crustáceos, peixes, aves e flora. Seus 30 hectares são hoje geridos por Gabriel Ruschi, que sucedeu a seu pai André, morto prematuramente.

O Museu de Biologia Mello Leitão opera duas Reservas Biológicas em Santa Teresa e possui 40 mil itens zoobotânicos.
Ruschi foi um viajante incansável, percorrendo todas as regiões do Brasil e algumas do mundo, ao longo de mais de 250 expedições. Além de quase meio milhar de artigos, publicou vinte livros, incluindo Aves do Brasil.
À semelhança dos naturalistas antigos, produziu belos desenhos e ilustrações. Descreveu 4/5 dos beija-flores brasileiros e foi o primeiro a domesticá-los e reproduzí-los. Descobriu dezenas de novas espécies de bromélias e pesquisou morcegos, aranhas, macacos e répteis. Deixou ainda estudos de arqueologia e antropologia indígena.
Entretanto, seus trabalhos são hoje alvo de críticas, pela omissão de fontes, inconsistências e até mesmo plágios. Dele disse Edwin Willis sobre seus estudos das aves que relatou dezenas de registros falsos para completar seus trabalhos ou atrair atenção. Vale lembrar que, como pessoa, Ruschi foi polêmico, com um temperamento difícil e atitudes extravagantes.

Ruschi previu numa conferência em 1951 que as reservas ecológicas se transformariam nos bancos genéticos do futuro, uma visão hoje amplamente aceita. Incentivou a criação de reservas naturais, como o PN do Caparaó de 1961, e contribuiu para a demarcação de muitas outras em seu Estado natal.
Defendeu o desenvolvimento sustentável como uma necessidade para a preservação das florestas tropicais. Foi um dos criadores da educação ambiental no país. E sempre foi capaz de exprimir os temores difusos das comunidades tradicionais, inclusive indígenas, diante dos riscos do progresso.
Loefgren, Hoehne e Sampaio talvez sejam hoje nomes quase esquecidos, mas foram cientistas notáveis, de acesso internacional e grande influência doméstica. Eu os chamei num livro anterior de a primeira geração de ambientalistas. É nesta época, no Estado Novo de Vargas de 1930, que surgem nossos códigos de proteção da natureza.
E o fato se repete trinta anos depois: em meados dos anos 1960 são editados os Estatutos da Terra e da Proteção à Fauna, o Código Florestal e a Lei da Caça e da Pesca.
É na década seguinte que surge em todo o mundo o movimento ambientalista. No início dela, o WWF abraça no Rio de Janeiro o bem-sucedido programa de conservação do mico leão dourado.

Augusto Ruschi (1915-1986) foi naturalista, botânico, topógrafo e advogado. Sua maior paixão foram os beija-flores. Foi um dos maiores ativistas ambientais.
Na década de 1980, começa o Projeto Tamar de proteção às tartarugas marinhas e é fundado o Partido Verde. O Greenpeace, a mais conhecida organização ativista, chega ao Brasil na década seguinte, abordando temas como o lixo tóxico, a exploração ilegal de madeira e os transgênicos.
A SEMA – Secretaria do Meio Ambiente dos anos 1970 é o embrião do qual nascerá o IBAMA no fim da década seguinte. Dele é desmembrado vinte anos depois o ICM Bio, para a gestão de nossas reservas naturais.
A Agapan gaúcha de 1971 é uma das primeiras associações em defesa do ambiente. Aparecem as primeiras ONG, das quais a SOS Mata Atlântica de 1986 e o ISA – Instituto Sócio Ambiental de 1994 são até hoje influentes.
Com a Conferência sobre o Meio Ambiente Rio 92, espalha-se pelo país uma rede de organizações não governamentais. Elas se estruturam por bioma, na proteção da Mata Atlântica, do Pantanal, da Floresta Amazônica e do Cerrado.
O Brasil quase não dispunha de parques naturais, quando são criados nos anos 1960-70 as primeiras unidades no Centro-Oeste e na Amazônia. A partir da década de 1990, surgem unidades em todo o país, incluindo agora as terras indígenas, especialmente na região Norte.

A Conferência da ONU Rio 92, seguiu-se à de Estocolmo de 1972 e resultou no Protocolo de Kioto de 1997. Seu tema foi o desenvolvimento sustentável da Terra.
O atual século a meu ver mostra-se desastroso para o meio ambiente. A corrupção, o populismo, a ignorância e a desordem arruínam nossa frágil estrutura de conservação.
A destruição da natureza é acelerada pela ocupação danosa do solo e da água, pelo uso de agrotóxicos e pela geração urbana e fabril de poluentes. O estúpido desperdício da queima da natureza anula em dias o patrimônio que a vida levou séculos para construir.
E a sociedade não mais reage indignada. A atual terceira geração de ambientalistas – instalada em cargos públicos, em organizações civis bem remuneradas e nos confortáveis centros de ensino e pesquisa – aceita silenciosa e conformada que nos seja subtraído o tesouro que ainda torna esse país especial. Não há mais as vozes de Augusto Ruschi e de José Lutzenberger para defendê-lo.
Ruschi a meu ver foi uma figura histórica num momento histórico. Sua vida profissional ocorreu durante as três décadas de 1950-80, ocupadas pelo desenvolvimentismo dos governos civil e depois militar.
Você se lembra do lema de uma terra sem homens para homens sem terra, que iniciou meio século de devastação, ainda em andamento. Mas o país tinha nesta época quem alertasse sobre o perigo e não apenas constatasse o seu dano.
Ruschi foi um dos primeiros a denunciar o início da derrubada da floresta amazônica e a enfrentar a ditadura militar em nome da ecologia; a falar em favor dos indígenas; a prever a escassez de água no mundo, o aquecimento global, a poluição do ar na Grande Vitória causada pelas indústrias siderúrgicas; a criticar os efeitos danosos da agricultura em larga escala, com fertilizantes e agrotóxicos, e o efeito desertificante da monocultura de eucalipto, os chamados “desertos verdes” expulsando toda a biodiversidade nativa.

Ruschi conseguiu o apoio da Marinha para a manutenção em 1975 da Estação Biológica de Comboios.
Ele encampou lutas históricas. Denunciou a destruição da mata virgem (cortam as matas ignorando tudo que está dentro, dizia) e o desalojamento dos índios tupiniquim pelo projeto de monocultura de eucalipto da Aracruz Celulose.
Combateu a mineradora Vale na sua tentativa de adquirir as terras do Parque Estadual (hoje Reserva Biológica) Sooretama, para transformar a madeira em dormentes. Denunciou essas duas empresas quando tentaram desapropriar a Reserva Ecológica de Comboios, local de desova de tartarugas.
Mas sua luta mais emblemática ocorreu em 1977, quando o governo do Espírito Santo determinou que na Reserva Santa Lúcia (onde havia uma área do Museu Nacional) fosse implantada uma fábrica de palmitos enlatados.
Ruschi recebeu os fiscais armado de espingarda, dizendo: em defesa da natureza sou capaz de matar ou morrer. Mandou-os de volta, com o seguinte recado: Avisem o governador de que ou ele muda de ideia, ou amanhã cedo eu vou lá matar ele pessoalmente. Diante de enorme comoção, o governador mudou de ideia.
No fim da vida, enfermo pela malária da floresta e contaminado pelo veneno de sapo amazônico, Ruschi aceitou em 1986 a ideia de ser tratado por uma pajelança (ritual de cura). O escritor Affonso Romano de Sant´Anna havia criado uma grande expectativa para a sua recuperação.

A pajelança de Ruschi no ano de sua morte, com Raoni e Sapaim na extremidade direita da foto.
O ritual seria comandado pelo cacique caiapó Raoni, já famoso na época. Como ele não era pajé, teve de se valer dos serviços do xamã camaiurá Sapaim. Antes, ao ver a foto de Ruschi, Raoni comentou: está com cara de sapo.
À base de fumaças e unguentos, Ruschi passou três dias num sono terapêutico induzido, numa cerimônia sensacionalista no Parque Lage no Rio de Janeiro, de onde acordou curado.
Terminado o evento, os índios foram comprar fantasias no centro do Rio. Raoni ouviu então de uma senhora: Esse aí tem que ser ministro da saúde. Hoje Raoni é celebrado como o mais veterano ícone da cultura ancestral. Sapaim, então desconhecido, estabeleceu-se como curandeiro de artistas célebres.
Uma antropóloga comentou que o caso foi um marco para se pensar a tensa relação entre magia, religião e ciência. E Ruschi se recuperou mas não se curou, vindo a falecer quatro meses depois.
Logo após sua morte, o Espírito Santo passou por uma onda de desmatamentos, que alcançou sua terra natal.
Seu amigo jornalista Rogério Medeiros escreveu: O mundo respeita Ruschi, mas o Estado inteiro do Espírito Santo, da academia aos políticos, o odeia. Porque tudo que ele falou que ia acontecer no Estado já está acontecendo. Os estragos das mineradoras, a natureza se vingando, a situação do Rio Doce … Ele previu tudo isso.















