Eu já havia escrito meia dúzia de livros quando me propus a falar sobre aqueles que escreveram a História do Brasil. Comecei naturalmente pelos cronistas da época do Descobrimento. Depois abordei os saborosos relatos da Colônia. No período da Independência e da República, surgiram nossos primeiros historiadores abrangentes ou extensivos.
Agora, nesses anos que me acompanham, reuni seis autores capazes de interpretar a evolução de nossa história e nossa identidade.
Gilberto Freyre é autor de uma obra única, que discute de forma criativa a nossa identidade social. Filho de uma antiga família do Recife, com longa ascendência, formou-se nos Estados Unidos, com mestrado na importante Universidade de Columbia. Foi político de atuação regional, filiado à UDN pernambucana, partido conservador.
Acreditava-se que a mistura do índio preguiçoso, negro inferior e português ignorante não poderia ser diferente do que a criação de um povo mole, lento (…) incapaz de construir uma nação vigorosa, como diz Roberta Fragoso.
Já na sua primeira obra Casa Grande & Senzala (1933), Freyre se debruça sobre as relações raciais, concluindo que no Brasil houve uma integração harmônica entre as raças, apesar de nunca ter acontecido uma efetiva democracia racial.
Ressalta a participação dos portugueses na criação da primeira civilização moderna nos trópicos. O negro e o índio são vistos como protagonistas – na música, na dança, na higiene, na culinária, no vocabulário. Nossa diversidade racial e social foi para ele motivo de orgulho e força.
Ou seja, Freyre trabalhou surpreendentemente a autoestima dos brasileiros. Hoje os tempos são outros, nossa percepção é mais sombria, sobre um país que não parece mais capaz de se renovar.
Ele usou uma linguagem coloquial e até vulgar que causou espanto e irritação. Valorizou nos seus textos prazerosos o cotidiano dos brasileiros, abordando a vestimenta, a culinária, a sexualidade, a habitação. E usou uma documentação nova, às vezes baseada na oralidade e na informalidade. Construiu o primeiro ensaio sobre nossa história social.
Apesar de ter uma origem na elite, Freyre transitava entre a alta cultura e os costumes populares. Era um homem talentoso, dotado de estilo literário, formado nas modernas ciências sociais da época mas também cordial, elegante e sedutor. Para usar uma expressão dele, em tudo que é expressão sincera da vida, Freyre praticou na sua existência a miscigenação que estudou na sua obra.
Sérgio Buarque de Holanda pode ser aproximado a Gilberto Freire, na medida em que ele procurou sobretudo entender a formação da identidade brasileira. Neste sentido, a sua foi novamente uma obra de pesquisa social, porém radicada na leitura e na história, mais do que na vivência e no costume.
Buarque de Holanda formou-se em Direito em São Paulo, lecionou na UFRJ e na USP, onde coordenou o projeto de história da civilização brasileira. Acabou se desligando da Universidade em protesto à aposentadoria de colegas imposta pelo regime militar.
Viveu em atividades ligadas ao ensino e à cultura em diversos países da Europa, nos Estados Unidos e na América Latina. Fundador do PT, foi pai do músico Chico Buarque.
Vivendo na Europa, ele percebeu o quanto o povo brasileiro era diversificado em comparação ao europeu, muito mais homogêneo. Para ele, isto decorreu da mistura racial, pois o colonizador português chegou aqui sozinho e teve de se relacionar com negras e índias. Isto gerou uma cultura derivada do aventureiro, não do trabalhador.
Porém o traço dominante da formação brasileira foi para ele a prioridade das relações privadas por oposição às públicas. Este traço veio do personalismo ou individualismo dos ibéricos e da cultura á obediência pessoal ao invés de funcional.
Ele descreve nossa monocultura de exportação, baseada no latifúndio e no trabalho escravo, no livro Raízes do Brasil (1936). Neste trabalho simples e curto, chega à sua maior criação, o chamado homem cordial. Este conceito, apesar de até hoje polêmico, foi muito influente.
O homem cordial pratica uma atitude polida que funciona como um disfarce, para lhe permitir privilegiar seus interesses em detrimento da esfera pública. Com esta máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social. A família, a intimidade e a propriedade prevalecem sobre a ordem, o Estado e o bem comum. O homem cordial não é o indivíduo bom, é o homem corrupto.
Caio Prado Júnior pertenceu a uma família ilustre em São Paulo desde o período do café. Formou-se em Direito e desenvolveu atividades de historiador, geógrafo, editor e político, neste caso principalmente nos anos 1930-40.
Como homem de esquerda, filiado ao Partido Comunista, sofreu perseguição do regime militar, tendo sido condenado, preso e exilado no Chile.
Caio Prado teve grande importância como historiador, ao aplicar o materialismo dialético do marxismo como interpretação da realidade brasileira. Ele considerou que a colonização brasileira foi baseada na exploração, e não na povoação do território. O Brasil contemporâneo foi explicado como um reflexo do país colonial. Você verá que Jorge Caldeira vai discordar desta posição.
Suas principais obras são próximas: Formação do Brasil Contemporâneo (1942) e História Econômica do Brasil (1945). Ele foi saudado como um pensador original, embora na minha opinião suas interpretações só fossem interessantes para o Brasil do passado, não do presente. Caio Prado teve forte influência na geração posterior de economistas.
Ele propunha o nacionalismo econômico, a ênfase no mercado interno e a revolução social baseada na consciência de classe – o que não surpreende para um pensador marxista. Combateu o Estado Novo de Vargas e a Ditadura Militar, com muito ônus pessoal.
Porém as análises de Caio Prado sobre o Brasil Colonial foram primorosas, as melhores que conheci, ao focar no mundo em que aconteceram e não nas ideologias do presente – descreveu com evidência racional e grande lucidez a nossa formação histórica.
Mas quando passou a enxergar o país evoluindo a partir da velha economia pré-capitalista para o capitalismo contemporâneo, seus argumentos tornaram-se repetitivos e padronizados, perdendo seu poder explicativo.
Nelson Werneck Sodré um dia escreveu: Já disse alguém, e disse bem: quem não tem posição política não tem alma. Começo a falar dele assim, para enfatizar que foi um historiador engajado, embora não ativista. E de uma orientação que até então pouco tinha havido na nossa História: Sodré era marxista.
Sua trajetória foi invulgar, pois pertenceu ao Exército durante toda sua vida profissional, até ser reformado como general de brigada. Sodré era de origem modesta do Rio de Janeiro. Nasceu no início e faleceu no fim do século passado.
Isto significa que teve uma vida longa e também difícil, pois sua segunda parte coincidiu com a ditadura militar – chegou a ser preso, teve os direitos políticos cassados e os livros confiscados.
Sodré ensinou no ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros, influente centro de reflexões sobre o desenvolvimento nacional, de grande prestígio durante os governo de Kubitschek e Goulart. Foi de seus cinco anos de aulas que resultou o livro Formação Histórica do Brasil, publicado em 1962.
É um livro primoroso, escrito com clareza e concisão, virtudes raras no país. Abrangente e sistemático, mostra evidentemente uma orientação marxista, com a crítica do capitalismo e a ênfase na luta de classes. Mas Sodré não é dominado pela ideologia, tem uma visão clara e objetiva do Brasil.
Era um homem discreto e disciplinado cuja obra não foi suficientemente reconhecida, por ser incômoda. Apesar de comunista, era também um sincero democrata. A emancipação do Brasil não é uma tarefa conspirativa, mas a empresa de todo o povo, são as últimas palavras de seu livro principal.
Florestan Fernandes é um impressionante exemplo de superação pessoal. Filho de mãe solteira sem ter jamais conhecido o pai, foi acolhido na casa em que sua mãe trabalhava como doméstica, e lá conheceu os livros da patroa Hermínia Bresser – e a disciplina de lê-los. Menino pobre, foi barbeiro, engraxate e garçom. Seu nome vem de um motorista alemão amigo de sua madrinha.
Os fregueses do Bar Bidu no Centro de São Paulo, onde trabalhava, o estimularam a completar o curso de madureza. Mais tarde, formou-se em Ciências Sociais na USP e completou o Mestrado em Sociologia.
Seus trabalhos iniciais foram sobre os índios e os negros, grupos excluídos da sociedade, dos quais fez parte em sua juventude.
Florestan nunca abandonou o estudo dos marginalizados. Ele conta que, ao procurar emprego, os proletários eram considerados ladrões ou imprestáveis. Pessoa de esquerda, lecionou na USP, foi aposentado pelos militares, filiou-se ao PT e foi mais tarde eleito deputado. Envolveu-se em questões relativas à educação, à ciência e à universidade.
No seu ensino, orientou teses sobre os processos de industrialização e mudança social. Dizia que um povo educado jamais aceitaria as condições de miséria que temos.
Um de seus livros mais importantes foi A Revolução Burguesa no Brasil (1975), que renovou a análise da burguesia e do desenvolvimento. Diz-se que Florestan ocupava um papel central na esquerda do país, pois não foi nem dogmático nem concessivo.
Mas, sobretudo, ele é considerado o fundador da Sociologia no Brasil. No início, desenvolveu estudos teóricos e práticos e, no fim, dedicou-se à orientação dos seus alunos e à escolha dos temas de pesquisa. Um de seus discípulos mais queridos tornou-se Presidente do país.
Jorge Caldeira (1955) é outro paulista formado na USP, onde estudou Ciência Política e Sociologia. Trabalhou como jornalista e editor, principalmente no âmbito da economia.
E apresentou em tempos recentes uma surpreendente revisão da interpretação histórica de nossa economia, especialmente no livro História da Riqueza no Brasil (2017).
Caldeira tem um estilo simples e fácil, talvez devido à sua prática jornalística – seus capítulo curtos são sempre agradáveis. Se depender da longa vida dos historiadores aqui retratados, Caldeira ainda poderá escrever muitos outros capítulos curtos.
Tradicionalmente, a crítica marxista (e até conservadora) tinha visto o Brasil como uma estrutura sem dinamismo, explorada primeiro pelo mercantilismo europeu e depois pelo capitalismo americano.
Uma economia exportadora submetida á logica da luta de classes, com as elites internas explorando o povo passivo e sendo explorada pela elites estrangeiras. Um país que repetia os vícios da Colônia.
Jorge Caldeira criou uma outra narrativa, apoiada nas estatísticas de dados nunca antes pesquisados e nas descobertas da recente antropologia brasileira. Suas conclusões são reveladoras: os indígenas detinham diferenciais tecnológicos na agricultura; as comunidades coloniais, nascidas da união do português com o índio, tinham tanto uma economia como um comércio dinâmicos; a economia do sertão não era um marasmo, mas uma troca ativa; a miscigenação era uma estratégia econômica; as câmaras no interior eram democráticas e renovadas sem interrupção; havia representação política, crédito à produção, liberdade comercial e inovação.
Caldeira descobriu que a vasta maioria de nossa economia, algo acima de 4/5, era devida ao mercado interno – ou seja, as exportações eram minoritárias. Vale dizer, o milho, algodão, arroz e charque eram mais valiosos do que a cana e o café.
A economia e população brasileiras eram semelhantes às norte-americanas, até que o diferencial de educação criou um fosso entre os países. Segundo ele, a Monarquia relegou o Brasil ao atraso, inclusive com uma política financeira ultrapassada, do qual República conseguiu resgatá-lo.
E o Brasil tinha um setor privado mais importante e dinâmico do que o estatal. Os governos militares inverteram esta situação e estatizaram o país. Sem a liberdade, a sociedade aberta e o crescimento do passado, bem como a educação que nunca houve, o Brasil não consegue hoje responder ás forças do progresso, da inovação e da globalização.