São poucos os países do mundo onde o palco da aventura nas montanhas ocorre abaixo, ou acima de um manto verde composto por florestas tropicais. A maioria dos locais de escalada ocorrem em paisagens áridas glaciais ou periglaciais de montanhas recentes, em ramadas de desertos ou em afloramentos quaisquer. Mesmo locais famosos como o grande vale de Yosemite, nos EUA, onde ocorrem florestas de coníferas, a diversidade de nossas matas não é superada.
Mesmo dentro de um geossistema já famoso e caracterizado pela umidade e da presença periódica de chuvas, o que faz valer a denominação de nossa mata atlântica em inglês como “rain forest”, um fato curioso atenta os escaladores mais observadores que freqüentam nossos points de escalada: Por quê, nos afloramentos e pães de açúcar rochosos que despontam do meio da floresta úmida apresentam em suas paredes como principal cobertura vegetal cactáceas e bromeliáceas, famílias típicas de ambientes secos?
A presença de cactos e bromélias na paisagem das paredes de rocha são tão comuns que muitas vezes este tipo de vegetação é assimilada sem discriminação à floresta atlântica. No entanto, a evolução destas famílias representam uma adaptabilidade ao meio em que se formaram. Estas famílias têm como característica o corpo carnoso que retém água para longos períodos de estiagem, os espinhos são folhas adaptadas que dificultam a perda de água por evapotranspiração e a maioria das espécies de cactos e bromélias apresentam um sistema radicular que os permitem sobreviver em solos rasos e pouco evoluídos, ou senão, diretamente sobre a rocha. Por todos estes motivos evolutivos, este tipo de vegetação, em hipótese alguma teria como área core de seu desenvolvimento genético, um ambiente úmido, o que nos faz pensar que suas origens são alóctones ao espaço das florestas tropicais do sudeste brasileiro.
Então, se esta vegetação não é original daqui, de onde ela veio? Como ela chegou aqui e por onde? Por muitos anos, estas perguntas não obtiveram uma resposta muito convincente, até que por meados da década de 50, o geógrafo paulista Aziz Nacib Ab´Saber começou a montar este quebra cabeça enigmático e formular assim a Teoria dos Refúgios Florestais que é hoje a melhor explicação para a biodiversidade de fauna e flora no ambiente tropical do Brasil.
No final do Pleistoceno,entre 20 e 10 mil anos atrás, as oscilações climáticas que culminaram no estabelecimento de uma era glacial no planeta reconfigurou o mundo com um acúmulo de água em forma de gelo nos pólos e montanhas e com o fortalecimento das correntes marítimas frias que influenciaram no clima e por seguinte em toda a cobertura vegetal do mundo.
Na América do Sul, a plataforma continental do oceano atlântico aflorou com o rebaixamento do nível médio dos mares. Nesta extensa faixa litorânea que se formou, a então fortalecida corrente fria das Malvinas passou a influenciar diretamente esta nova faixa de terra, e assim como nos litorais frios da costa do pacífico, o clima que aí se estabeleceu foi árido, pois os ventos carregados de umidade do oceano, ao chocar-se com as águas frias, perdia calor e descarregava sobre o mar a chuva, chegando ao continente somente o vento seco. Este fenômeno é responsável na atualidade para o estabelecimento de vários desertos no mundo, como o Atacama, Sechura, Kalahari e Namib. Com um ambiente assim, as caatingas do nordeste encontraram em seu favor um longo espaço para seu desenvolvimento, sem a competição de outros biomas. Desta maneira, a caatinga avançou sobre o sudeste e atingiu o litoral gaúcho chegando até ao Uruguai.
No estado de São Paulo, a floresta úmida refugiou-se nas vertentes da Serra de Paranapiacaba, onde encontrou a umidade necessária para sua sobrevivência devido às chamadas precipitações orográficas. Por todos os espaços a caatinga avançou e logo penetrou pela depressão periférica atingindo muitos lugares do interior.
Ao contrário do sudeste, no nordeste encontramos rélictos de mata atlântica no sopé de grandes inselbergs, como o morro agudo no Ceará, em meio à caatinga
A caatinga avançou sobre algumas áreas de cerrado, no Piauí e em Minas. O Cerrado por sua vez aproveitando a fragilidade da floresta equatorial e penetrou sobre a Amazônia. Por todas as serras de altitude do sudeste, o frio acima dos mil metros gerou condições propicias para o avanço das florestas de Araucária que atingiram os topos das Cuestas arenito-basálticas de São Paulo (região do Cuscuzeiro) e a serra da Mantiqueira em Minas Gerais.
Para Ab´Saber, as áreas que mantiveram o ambiente que propiciou a sobrevivência da vegetação recuada foi chamada de refúgio de flora. Ao término das glaciações e estabelecimento do optimum climaticum, o quadro da vegetação voltou a sofrer alterações e sobre um clima mais úmido, a então refugiada floresta semidecidual retornou sobre seus antigos espaços, mas nos locais onde um micro clima permitiu a sobrevivência das espécies xerófitas (vegetação seca), estas permaneceram, formando então os enclaves de flora. Esta é, em resumo a idéia principal da Teoria dos Refúgios.
Mas tudo bem, o que tem a ver a paleogeografia dos espaços naturais brasileiros com a escalada em rocha? É justamente este o ponto que quero chegar. Experimente você utilizar um higrômetro e medir a umidade da sombra de uma árvore no meio da mata atlântica. Certamente, o higrômetros irá indicar algo como 75% de umidade no ar. Agora experimente sair da mata e subir um costão e medir a umidade em cima da rocha. O higrômetro indicará uma umidade abaixo de 30%, ou muito menos. O sol incidindo diretamente sobre a rocha evapora numa camada próxima à superfície toda a umidade do ar, o que faz que o micro ambiente das rochas seja árido e propicie que a vegetação xerofítica se fixe sobre estes lugares, ou seja: Os locais de escalada em rocha no Brasil são todos enclaves de flora, rélictos de um paleoclima diferente do atual.
Escalando as paredes de calcáreo da região cárstica de lagoa Santa MG, é muito presente acima dos lajeados a presença de cactáceas e bromeliáceas, a fisionomia da paisagem é idêntica à da caatinga do nordeste. Sobre a úmida floresta da Tijuca, no meio do Rio, escalando os picos de granito e gnaisse é muito comum encontrar vários tipos de cactus e em São Paulo ocorre o mesmo, por exemplo, no morro do cuscuzeiro. Até mesmo nas toponímias das vias de escalada é comum a associação com este tipo de vegetação, como a via “Cactus Now”, “S.O.S Mandacaru”, “Cactus talidomida”, etc…
Não existem só enclaves de caatinga em nossos locais de escalada. Em São Bento do Sapucaí, Andradas em Minas, temos rélictos de Araucária e no Nordeste, aos pés dos milhares de Inselbergs, as montanhas de granitos do sertão (leiam mais no meu site pessoal), desenvolve os então chamados Brejos, as matas de cimeira, não mais que enclaves de mata atlântica nas Serras orográficos interiores no sertão, como Ibiapaba e Baturité, CE, Garanhus, PE e o sertão de Patos na Paraíba, assim como as famosas Chapadas, como o Araripe, onde se abriga a floresta nacional do Araripe, um enclave de Cerrado no meio do Sertão, assim como a Serra da Capivara e a Chapada da Diamantina.
Contudo, nossos espaços de prática de escalada, por se tornarem um ambiente geomorfologicamente diferenciado das planícies e vales, forma-se um ambiente de microclimas específicos que se comportam como paisagens de exceção dentro do espaço tropical do Brasil. Mais do que nada, é dever dos freqüentadores destes lugares manterem a riqueza biológica destas paisagens, pois nossas montanhas constituem-se então um grande patrimônio genético da riqueza e diversidade de nossas formações vegetais e que precisam de mais conhecimento e cuidado.
Boa parte do conhecimento sobre a teoria dos refúgios se encontra na literatura científica, em centenas de artigos publicados por Aziz Ab´Saber, Paulo Vanzolini e Adler Viadana, além de mim que inicio meus estudos na paleogeografia. Abaixo deixarei como referência duas bibliografias a quem quiser se aventurar no conhecimento mais aprofundado do assunto:
– AB´SABER, A. N. Os Domínios de Natureza do Brasil: Potencialidades paisagísticas. Ateliê Editorial, São Paulo, 2003.
– VIADANA, A. G. A teoria dos Refúgios Florestais aplicada ao estado de São Paulo. Tese (livre docência) Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro 2002