Paradoxos

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Aos leitores de minha coluna, aviso que o texto abaixo nada tem a ver com a natureza e sim com a física e a matemática, sendo portanto bastante teórico. Se você não teve simpatia por esses assuntos na escola, sugiro que guarde sua curiosidade para a próxima coluna – ou a anterior, se você ainda não a leu.

Paradoxos

Se a conferência entre os dois maiores líderes militares da América hispânica nunca foi documentada, os encontros entre os dois maiores físicos de seu tempo foram amplamente registrados.

Os três pilares da física moderna são a relatividade, a mecânica quântica e a estrutura atômica. Albert Einstein foi fundamental na construção das duas primeiras. E Niels Bohr, para a compreensão das duas últimas.

Einstein mudou nosso entendimento do universo, a partir de seus dois trabalhos científicos fundamentais, ambos sobre a teoria da relatividade. Publicados no início do século XX com dez anos de intervalo entre si, afirmaram que o tempo e o espaço, assim como a matéria e a energia, estão entrelaçados. Criaram o conceito de espaço-tempo, um mundo em quatro e não mais em três dimensões.

Albert Einstein 1879-1955 aos 40 anos, quando já tinha publicado a teoria da relatividade e ganho o Prêmio Nobel. Embora liberal e pacifista, sugeriu que os EUA desenvolvessem armas nucleares. Einstein era de origem judaica e teve de escapar do regime nazista, recebendo a cidadania norte-americana.

O tempo pode ser entendido como um caminho que percorremos na vida – mesmo você estando parado, o tempo passa. E ele passa tão mais lentamente quanto mais rápido você se move.

Na velocidade da luz, que é o limite de todas as velocidades, o tempo simplesmente não passa, ele para. Para quem se move nesta velocidade, é como se a luz roubasse todo o tempo. Mas para um observador parado, tudo o que ele observa não é o tempo, e sim o espaço percorrido. Espaço e tempo são intercambiáveis e tudo é relativo.

A mais célebre equação da física é E = mc², que correlaciona a energia E com a massa m. Na equação, c é a velocidade da luz, que é assombrosamente grande, e ainda mais se elevada ao quadrado (vale dizer, multiplicada por si própria).

Uma vez mais, massa e energia estão entrelaçadas, são intercambiáveis. Só que, conforme a equação, uma mínima porção de massa pode gerar uma gigantesca quantidade de energia. Este é o princípio da bomba atômica.

A mais misteriosa das forças da natureza é a gravidade, que age sem necessidade de contato e de maneira instantânea. Ao invés de uma atração entre massas, Einstein enxergou a gravidade como um encurvamento no tecido do espaço-tempo, ou seja, este é curvo e não plano. A gravidade desacelera e dilata o tempo, além de distorcer o espaço.

Imagem da curvatura no tecido do espaço-tempo ocasionado pelo efeito gravitacional de uma massa.

Ondas gravitacionais, buracos negros e dualidade entre ondas e partículas foram algumas das consequências dos achados de Einstein. Ele também descobriu que o universo seria dinâmico, contraindo ou expandindo – porém parece ter preferido um universo fechado e estacionário.

No fim da vida, procurou unificar as leis da física com a gravidade, para criar a chamada Teoria de Tudo, mas fracassou. Até hoje, ninguém conseguiu. Penso que, na realidade, ninguém conseguirá.

A luz é formada por uma grande quantidade de partículas, os fótons. Não é, entretanto, uma radiação contínua, e sim um conjunto de pacotes discretos ou separados de partículas, chamados de quanta.

Esta foi a conclusão de Einstein em um de seus primeiros trabalhos, fundamental para o desenvolvimento da mecânica quântica. Entretanto, percebeu que a luz ora se comportava como partícula (ocupando uma posição), ora como onda (dotada de uma velocidade) – uma dualidade intrigante que nunca o satisfez e que terá grandes consequências a seguir.

Niels Bohr foi um dos fundadores daquele modelo do átomo com o núcleo de nêutrons e os elétrons orbitando à sua volta. Ele notou que as órbitas correspondiam a níveis de energia e que estes eram discretos, ou seja, quânticos. Cada mudança de órbita correspondia à liberação de um quanta de energia.

Embora o modelo planetário dos átomos não fosse novo, a ideia da movimentação quântica dos elétrons era. Einstein quantizou a luz e Bohr trouxe a quantização para o interior do átomo.

Niels Bohr 1885-1962 e seu modelo de átomo, pelo qual também recebeu o Prêmio Nobel. Diferentemente de Einstein, o pensamento de Bohr era obscuro e seu temperamento era autoritário.

A mecânica quântica estuda o nível subatômico da matéria, que não parece obedecer às leis da física. Ela afirma que é impossível atribuir simultaneamente uma posição e uma velocidade a uma partícula – o princípio da incerteza de Heisenberg.

Ela nega assim o conceito de trajetória, que é vital para a física clássica. O movimento é descrito como uma onda. No conceito de Bohr, uma onda sequer é algo físico (como uma onda do mar), é meramente conceitual (como uma onda de sorte).

A onda, entretanto, só indica uma probabilidade, não uma certeza, de se encontrar qualquer partícula numa dada posição ou num dado tempo. Neste sentido, o mundo é bizarramente não determinístico. O conflito entre Bohr e Einstein sobre a dualidade onda-partícula talvez represente o debate do século na física, diz Harvey Brown.

Essas conclusões paradoxais resultaram dos trabalhos da Escola de Copenhagen, liderada por Niels Bohr na Dinamarca. Mais ainda, afirmaram que o ato de observar ou medir provoca o colapso da função de onda – embora antes da medição o estado do sistema permitisse muitas possibilidades, apenas uma delas acabou sendo escolhida a partir do processo de medição.

E esta escolha foi simplesmente aleatória. Durante a observação, a função de onda modificou-se instantaneamente para refletir a escolha. A medição interfere no resultado e este é estranhamente acidental ou arbitrário. O observador e o objeto perdem sua independência mútua, comenta Don Howard.

O entrelaçamento quântico é um fenômeno estranho, que pode conectar duas ou mais partículas até mesmo se elas estiverem muito distantes entre si.

Além disso, a Escola de Copenhagen reconheceu o princípio da complementaridade. Objetos poderiam ter comportamentos contraditórios, como ondas ou como partículas, dependendo do experimento. A existência dessas situações opostas era necessária para a compreensão dos fenômenos.

Esse argumento tinha um conteúdo antes filosófico do que físico. Os sistemas não  estavam separados e sim emaranhados. Se você está perplexo com tais afirmações, considere ainda que os textos de Bohr são extremamente obscuros (dizem alguns, contraditórios).

Existe uma experiência mental que talvez esclareça um pouco desta confusão. É chamada de O Gato de Schrödinger. O físico com este belo nome propôs encerrar um gato (provavelmente preto) numa caixa, sem sabermos se estava vivo ou morto. Sua condição neste momento é então o emaranhado vivo-morto.

Esta é a situação do sistema (ou seja, o gato) antes de ser observado. Observar é interferir, é abrir a caixa – e você deverá necessariamente se deparar com um gato vivo ou morto. Este é o colapso da função de onda, que aleatória ou arbitrariamente escolhe um estado – de vida ou de morte.

Representação do gato de Schrödinger. No experimento, há partículas radioativas com 50% de chance de decaírem e acionarem um frasco de veneno. O gato pode aleatoriamente estar vivo ou estar morto. Este experimento está de certa forma associado ao princípio de incerteza de Heisenberg.

É típico destes casos que uma indeterminação originalmente confinada ao domínio atômico venha a transformar-se numa indeterminação no mundo real, escreveu ele. É a física quântica abarcando o mundo todo – questionando os conceitos de causalidade, identidade, separação e localidade e substituindo-os pelo de emaranhado não determinístico.

E quando esses dois físicos se encontraram? Embora já se conhecessem, os dois Congressos Solvay (este é o nome de uma empresa química que os patrocinou) por volta de 1930 criaram uma plataforma pública sobre a física subatômica, e na presença dos principais cientistas da época. No primeiro deles, Einstein tentou provar que a interpretação da mecânica quântica pela Escola de Copenhagen era inconsistente e, na segunda, que era incompleta.

Os participantes da Conferência Solvay de 1927. Schrödinger é o moço alto no centro da fileira superior e Heisenberg é o terceiro à direita. Finalmente, Einstein ocupa o centro da fileira inferior. A única mulher é Madame Curie. Praticamente metade dos presentes recebeu o Prêmio Nobel, alguns mais de uma vez.

Ele falhou em ambos os casos, embora o seu último trabalho nesta área em 1935 (chamado de Artigo EPR, devido às iniciais de seus autores) seja considerado fundamental e duradouro. Ele novamente não conseguiu vencer Bohr, embora tivesse curiosamente contribuído para que este refinasse sua teoria, até então confusa e mesmo incoerente.

Pode parecer exótico, mas os físicos posteriores deram razão a Bohr, antes do que a Einstein, embora hoje o assunto seja dúbio. Já se afirmou que, num espaço que acolha tanto a mecânica clássica quanto a quântica, as duas interpretações são matematicamente equivalentes. Mas também já se propôs que a física seja um emaranhado entre a mente e a realidade, ou seja, de novo uma situação exótica.

Para Einstein tudo que fosse real teria seu lugar no espaço e no tempo. E se uma teoria pudesse predizer com certeza o valor de uma entidade física, então existiria uma realidade física correspondente a esta entidade – e uma única.

As leis que governavam as mudanças nos sistemas físicos eram as mesmas para quaisquer outros, ou seja, eram universais. Um robusto mundo de ordem e razão, na qual a natureza podia ser conhecida. Deus não joga dados com o universo, afirmava Einstein (ao que Bohr respondeu que ele tinha de parar de dizer a Deus o que fazer).

Segundo Bohr, um objeto e seu instrumento de medição formam um emaranhado, a nenhum deles podendo ser atribuída uma realidade independente. As medições produzidas resultam aleatórias.

O emaranhado não gera incoerência, mas complementaridade. Um mundo de mistério e surpresa. A natureza pode ser descrita, mas não compreendida. Como diz Harvey Brown, Einstein iludia-se ao pensar que Bohr tinha uma teoria da realidade, e não meramente uma teoria da linguagem sobre a realidade.

A antiga física clássica foi fortemente experimental. Já a nova física quântica é grandemente matemática. Quando pensamos na matemática, quase sempre consideramos a sua condição de provar teoremas – na geometria, no cálculo ou na física.

Mas existe um outro território da matemática, que pertence à lógica. Foi neste aspecto que Kurt Gödel se tornou o maior matemático de sua época, com seus dois teoremas da incompletude.

Kurt Gödel (1906-1978) foi um dos maiores lógicos da história. Seu sombrio teorema sobre a matemática antecipa por assim dizer toda a modernidade. Assim como Einstein, chegou à sua grande teoria aos 25 anos. Teve de emigrar para os EUA, como fizeram tantos outros judeus. Era introvertido e paranoico, tendo morrido de inanição.

Deixe-me voltar a um exemplo clássico. Se um cretense lhe dissesse que todos os cretenses eram mentirosos, estaria criado um paradoxo. Se, de fato, fossem mentirosos, então nosso amigo seria verdadeiro, embora cretense. Se não fossem mentirosos, então seriam verdadeiros, mas contrariamente o amigo cretense seria falso, por afirmá-los mentirosos. Então, em qualquer dos casos temos uma contradição. Este foi o contexto em que Gödel desenvolveu seu trabalho.

O primeiro teorema da incompletude afirma que em qualquer sistema de lógica aritmética há uma afirmação que, embora verdadeira, não pode ser provada dentro desse sistema. Generalizando, nenhum sistema lógico consegue capturar todas as verdades matemáticas.

O segundo teorema também provou que nenhum sistema lógico consegue provar sua própria consistência. Assim, os sistemas matemáticos são em si mesmos incompletos e inconsistentes.

Desde o início do século XX, a matemática vinha sofrendo com a existência de contradições. David Hilbert queria saneá-la dessas aberrações e desenvolveu um novo conceito, que incluía os axiomas, as inferências e as deduções da matemática tratadas de forma rigorosa e formalizada. Era uma espécie de teoria da prova matemática, que ele chamou de metamatemática. Foi este esforço que Gödel destruiu com seus teoremas.

A construção de Gödel foi genial: ele atribuiu um número para cada símbolo ou fórmula matemática. Toda a sua linguagem se reduziu a números – assim, ele transformou a matemática na aritmética. Com esta linguagem formalizada, as afirmações lógicas foram convertidas em propriedades dos números.

E, nesse mundo estranho e rarefeito, ele foi capaz de provar a incompletude e a inconsistência. Eu consegui em dias de sol estudar sua obra. Confesso que Gödel me convenceu, mas não cheguei a entender como. O mundo mental que criou pode ser belo, mas me pareceu simulado, artificial – aliás, uma prática da matemática atual.

Esta foi uma época de perplexidade. Veja quantos conceitos estranhos  apareceram neste texto: relatividade, indeterminismo, aleatoriedade, emaranhado, dualidade, incerteza, complementaridade, incompletude, inconsistência. Eles detonaram as certezas da teoria  clássica e descortinaram novas possibilidades físicas e matemáticas – que os cientistas ainda estão buscando entender e  experimentar. Por isto, chamei este capítulo de Paradoxos.

Imagem do Teorema de Gödel, um dos grandes paradoxos modernos. Dizia a placa de um barbeiro: “Faço a barba somente das pessoas que não fazem a sua própria barba”. A pergunta sobre quem faz a barba do barbeiro conduz a um ciclo autocontraditório de paradoxos. Pois o barbeiro ao mesmo tempo faria e não faria a própria barba.

Você deve ter notado que toda a ciência moderna era europeia até que, na época das Grandes Guerras, os norte-americanos começassem a atrair para lá os maiores cientistas (e também artistas). Einstein chegou ao Instituto de Estudos Avançados de Princeton no início da década de 1930 e, dez anos depois, passou a ter a companhia de Gödel.

Depois da Segunda Guerra, os europeus procuraram evitar a fuga de seus melhores cérebros. Várias nações europeias se uniram para criar o CERN, uma organização de pesquisa em física fundamental. Bohr propôs oferecer para tal o seu Instituto – mas os criadores do CERN acharam que a Escola de Copenhagen já estava àquela altura superada. O CERN foi estabelecido em 1952 em Genebra.

Enquanto isso, Einstein e Gödel tornaram-se grandes amigos, caminhando longamente e conversando assuntos certamente profundos, porém desconhecidos. Em 1955 Einstein sofreu um aneurisma e disse: Quero ir quando quiser (…) Fiz minha parte; é hora de partir. Vou fazê-lo com elegância.

A perda do companheiro teve um terrível impacto em Gödel, que passou gradualmente a se isolar e alucinar. Julgando que havia uma conspiração para envenená-lo, simplesmente deixou de comer e morreu de inanição.

Há décadas, ambos eram desdenhados como dois anciãos irrelevantes – afastados das correntes científicas modernas, incapazes de produzirem novas descobertas, isolados socialmente, com poucos relacionamentos.

A relatividade os convencera da irrealidade do tempo absoluto. Einstein um dia disse: Para aqueles entre nós que acreditam na física, esta separação entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão.

Jim Holt escreveu que se o tempo meramente pertence a nossa mente, talvez esperemos escapar dele numa eternidade sem tempo. Como meros humanos, Einstein e Gödel não conseguiram, mas suas obras o fizeram por eles.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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