Finalmente após alguns adiamentos por prudência frente ao mau tempo, a oportunidade de trilhar novamente no Parque Nacional da Serra dos Órgãos, na clássica travessia Petropólis – Teresópolis se avizinhava sob bons augúrios. Talvez algo mais ansioso que de costume, tratei de preparar as mochilas. Sim, plural: mochilas. Como faríamos de ataque, acamparíamos num refúgio de montanha próximo (em Petrópolis) para iniciarmos o retorno na manhã de domingo.
Então, o rol de equipamentos seguiria em duas mochilas. A de ataque, com a alimentação e elementos de segurança (lista abaixo) e a de camping, que ficaria na van, para uso no pernoite. Nesse arranjo menos usual, descuidei da parte de camping e esqueci o isolante. Nada como o suceder dos sóis para nos lembrara humildade devida.
Mochila de Ataque | PETRÔ – TERÊ |
saco de bivaque | kit de Primeiros Socorros – grande |
poncho de emergência | |
lanterna de cabeça (3) | doces e comidinhas |
capa de chuva | power bank e cabos |
fita (10 metros) | comunicador e rastreador |
luva neoprene 2 mm (2) | pazinha, papel e lenço |
jaqueta e calça pluma | segunda pele tronco e pernas |
garrafas d’água 1 l (2) | garrafas d’água 500 ml (2) |
fogareiro, caldeira e caneca | combustível sólido pastilha (8) |
Sopas instantâneas e chás (4) | Canivete Victorinox “huntsman” |
Apito fox 40 micro (2) | Isqueiro (2) |
Na sexta, pouco antes das 22h encontrei a trupe que viera do Paraná para trilhar conosco no desafio proposto e organizado pela Amanda, da Equipe Arcanjo. Desconheço na atualidade outro grupo capaz de congregar 19 intimoratos montanhistas que abarquem a quantidade necessária de capacidade física, mental e logística para cacifar uma aposta dessas. A quilometragem expressiva (mínimo de 28 km), a navegação complicada em caso de mau tempo, as reduzidas temperaturas noturnas e a enorme altimetria envolvida, convertem uma pernada feita em 3 dias, em sua forma clássica, em um desafio real de montanha. Não bastaria que um, dois ou dez o fizessem. Para darmos conta do desafio, todos os 19 precisariam concluir o trajeto. Muitos estariam fazendo sua primeira incursão em grande parte do trajeto. Era, de fato, algo ousado.
Desnecessário dizer que é o tipo de proposta que me ganha fácil. Enquanto aguardávamos a chegada dos demais desafiantes, conversamos amenidades sobre as últimas caminhada. Aos poucos, o grupo foi-se
completando e com a chegada da Amanda, a anarquia reinante tomou rumos deordenamento militar. Alguns integrantes eu conhecia de outras pernadas: a Ariane, a Michele, o Caio, o Daniel, o Mário Flores, o Davi e a Cleicimara. Outros, de trocas de mensagens nas redes sociais. Dentro da margem de tolerância prevista, as 22h12, partimos para o Parque Nacional da Serra dos Órgãos – PARNASO.
A viagem transcorreu sem anormalidades, à exceção do encontro imprevisto com o Davi. Como viria do RJ para caminhar conosco, ficou combinado de nos encontrarmos lá, na entrada do parque. Coincidiu de que ao nos ver passar, pilotando sua moto, seguiu a van por alguns quilômetros em estrada erma e quase acabou sob as rodas do carro. Felizmente para todos, nosso motorista conseguiu avaliar adequadamente a situação e mesmo em terras cariocas, deu um voto de confiança ao desconhecido suspeito. Após emparelhar conosco, perguntou se era a van da Amanda… bem tortos de sono, acordando ainda, conseguimos concatenar as ideias e esclarecer as coisas. Sem novas surpresas, às 5h50 fizemos a parada final para café e banheiro. Às 6h37, partimos para a portaria do parque, onde ao chegarmos já encontramos pequena fila para entrada. Apesar dos servidores estarem em greve, com as atividades administrativas prejudicadas em maior ou menor grau, a parte de visitação e segurança estão sendo mantidas. Com a fila, a falta de organização e previdência do pessoal à nossa frente, não portanto os documentos necessáriospara a conferência expedita, acabamos por entrar no parque apenas às 7h40, tratando de apertar o passo para recuperar, no possível a pequena mora sofrida. Consegui que a Amanda aceitasse a gentileza de que eu levasse a maior parte da água, para lhe poupar esforços adicionais no pé, ainda em recuperação.
Subindo sem forçar muito o passo, com a Amanda verificando como o seu pé direito se comportava, após o trauma de 8/7 (entorse no calcanhar e trinca no 5º metatarso) alcançamos a Pedra do Queijo as 8h47, o ponto d’água do Ajax às 9h50 e o final da Isabeloca, no Graças a Deus, às 10h28.
Pouco depois, às 10h52 tivemos nossa primeira vista desimpedida para os Castelos do Açu, fizemos alguns registros e retornamos o caminhar até a base dos imensos blocos rochosos que formam os Castelos (11h07), onde os trilheiros predecessores ergueram paredes na base das rochas, para proteger dos fortes ventos e permitir um bivaque confortável. Com a irresponsável postura (suponho) de uns e outros que não zelam por manter o local asseado e talvez ainda pior, vandalizam as instalações históricas, o pernoite nesse ponto atualmente não é permitido.
Me baseando no informado pelo vigia, de que “tem pontos d’água secos adiante”, optei por seguir prevenido e abasteci o inventario de água ao máximo, com 3 litros. Subimos o Morro do Marco e descemos uma trintena de metros até a bifurcação para os Portais de Hercules, alcançados às 12h30. Quase no final da descida, um singelo curso d’água cruza o trajeto, antes de despencar por uma fenda à esquerda, buscando compor o Rio Soberbo centenas de metros abaixo.
Fizemos uma pausa para lanche, contemplação e registros e iniciamos o retorno sobre nossos passos às 12h40. Na subida, uma situação inusitada nos preocupou bastante para, em seguida, converter-se em motivo de brincadeiras até o final do rolê. Havíamos sido alcançados há pouco pelo Patrick, que ficara preparando uma refeição no Abrigo no Açu e seguira até a bifurcação com o pessoal do Paraná. Como estavam atrás de nós na entrada, mas habitualmente andam num ritmo forte, acreditávamos que passariam por nós a qualquer momento. Não sabíamos que, já conhecendo os Portais, zelosos com o cronograma e a segurança, optariam por avançar direto para o Sino, que não conheciam. Por sua vez, o Patrick descuidou da segurança e escondeu bem demais a mochila de ataque para fazer seu último ataque nessa pernada.
Confiava que a referência memorizada “perto de um totem, na entrada da trilha” bastaria. Ignorante de todo esse contexto, comentei no começo do retorno que um montanhista deixara a cargueira escondida para fazer o ataque aos Portais, e na volta não a encontrara. Depois de muito procurar, acabou por supor que houvesse sido furtada e, frustrado, completou a travessia. Anos depois (não me recordo se 3 ou 5) a mochila foi encontrada, e pela carteira chegou-se ao desafortunado proprietário. Naquelas coincidências que a vida nos traz, o Patrick fizera o mesmo, com o adicional que a mochila escondida era de ataque. Com ele restara apenas o celular. Procura aqui, procura ali na subida e nada… chegamos na bifurcação e com o pessoal sem tanta margem de condição física para apertar o passo na sequência, após mais algum tempo de busca, parte prosseguiu enquanto eu subia até as placas e garantia que entre elas e a bifurcação nenhum ponto se encaixava na descrição pouco precisa por ele relatava. Retornei até a bifurcação e apertei o passo até alcançar o pessoal.
Informei que como a mochila ainda não havia sido achada iria retornar até o Patrick e deixar com ele, no mínimo um poncho de emergência, uma lanterna, uma garrafa d’água e um apito. Assim, ele poderia usar o celular para navegar e, mesmo que anoitecesse poderia nos alcançar na corrida, isso caso não encontrasse a mochila.
O Davi se prontificou a voltar comigo, o que permitiria que caso não o encontrássemos na bifurcação um de nós ficasse ali, controlando a passagem e o outro descesse ao encontro dele. Davi, agradeço a gentileza, tornou o processo de “resgate” do Patrick bem mais confiável. Quase chegando na bifurcação, com o Davi à frente, encontramos o desafortunado paranaense que, ajudado por um pessoal que pernoitaria no Açu, encontrara a mochila e apertava o passo para alcançar o grupo. Agora em trio, mantivemos o passo cerrado em sentido contrário, buscando o cume do Morro da Luva, onde nos reunimos novamente ao grupo.Com esse ir e vir, acabei por cruzar 3 vezes o Vale da Luva. Consciência tranquila vale o suor derramado e o coração a sair pela boca, risos. No cume do Luva (falso cume), encontramos outro grupo, fazendo a travessia em sentido contrário ao nosso, partindo de Teresópolis para Petrópolis. Trocamos algumas palavras sobre a beleza do lugar e logo retomamos o caminhar. O trecho de laje fez com que não percebessem uma passagem à esquerda e trilharam uma dezena de metros no sentido incorreto enquanto eu confirmava com um pessoal que chegava o ponto correto de deixar a laje. Confirmado que era aquela passagem, bastou que voltassem essa dezena de metros para podermos prosseguir pelo caminho correto. Desse momento em diante, seríamos em 7: Amanda, Ariane, Beatriz, Daniel, Pedro, Patrick e eu. Cerca de 20 minutos à nossa frente, outro grupo também fazia a travessia e nos alternaríamos na posição de “último grupo” na montanha. Iniciamos a descida do Morro da Luva por uma área de charco, antes de cruzarmos três vezes as águas de algumas das nascentes mais elevadas do Rio Soberbo. Primeiro em direção ao leste, depois oeste, e finalmente ao norte, já na base da encosta, onde uma sucessão de rústicas pontes de ferro e madeira nos permitiu alcançar a base do Elevador.
Um dos obstáculos mais técnicos da travessia, consiste numa escadaria “quebra-peito/de marinheiro” com degraus de vergalhões de ferro maciços engastados na rocha. Tanto o arranjo quanto o espaçamento irregular trazem maior desconforto aos que tem dificuldades com esse tipo de obstáculo. Não era o caso da nossa trupe, e todos galgaram sem dificuldade a escadaria. Porcautela adicional, subi com os bastões de caminhada do povo, escudando a Amanda. Assim, se em algum momento seu pé falseasse, poderia ancorá-la.
Após alcançarmos a Cobertura do Elevador, prosseguimos a caminhada, contornando a profunda greta à nossa direita, até alcançamos o acesso para descida, feita em simples aderência. A presença de um grampo “p” à direita faz evidente que, sob chuva a descida se mostra mais desafiadora. Da minha passagem anterior por esse trecho, recordo da atenção que dediquei à descida, pois não conseguia ver mais que meio metro à frente, em muitos momentos.
Vencida a tensa descida, em pouco tempo alcançamos o cume do Morro do Dinossauro (na verdade, acredito que seja um falso cume, pois há outro homônimo próximo, mais alto – 2166 m) às 15h40. No cume, uma cena de certo modo inusitada se repetiu: nossa convalescente Amanda incitou o pessoal a retomar a caminhada, logo após os registros terem sido feitos. Desde o começo da pernada, ainda na subida do Ajax esse fora o proceder: o “pelotão da frente” do nosso grupelho parava para retomar o fôlego e minutos depois, quando não segundos, ela os enxotava do descanso, zelando pelo avançar quase que contínuo do grupo, com vista a superarmos os trechos técnicos (chegada no abrigo do Sino era a meta) ainda com a luz do dia.
A partir do cume do Morro do Dinossauro a descida se faz predominantemente na direção norte com apenas 4 curvas. A perda de altimetria até o Vale das Antas, entre o morro superado e o próximo, da Baleia, não é intensa, como atestam as poucas curvas. Isso permitiu que descêssemos conversando despreocupados, comigo descrevendo o mar em que as baleias da toponímia nadavam: os enormes matacões faziam vez dos dorsos dos mamíferos e, da vegetação, as moitas de capim e arvoretas, perfaziam a espuma do mar agitada pelo movimento dos monumentais animais. Ante a poesia da descrição, os filisteus que me acompanhavam brincaram que decorreria do consumo de alguma substância ilícita e que eu deveria compartilhá-la caso quisesse que me acompanhassem nos delírios. Negativo, nada de ilícitos, as endorfinas, serotoninas e dopaminas do caminhar nas montanhas me bastam. Também vaticinei a presença de água logo mais, pelo perfil da vegetação, com um rio serpenteando no talvegue do vale. Bola e caçapa cantada, fui me distraindo com o explicar o porquê da aposta.
Alcançamos o vale, onde o grupo que estava à nossa frente fizera uma parada maior para descanso, talvez aproveitando para lanche. A água estava à frente e a passagem, por uma ponte sobre o rio “adivinhado”, à direita. Fomos até o pequeno curso d’água, e na descida para coletar afundei o pé na areia encharcada da margem ao buscar um ponto mais a montante e, portanto, de consumo mais seguro.
Me hidratei fartamente, mais do que devia, inclusive. Percebi o erro na subida seguinte, pela queda no desempenho. Aproveitei a gentileza do Patrick para repor a água consumida sem molhar novamente o tênis. Fiel ao andar devagar quase que sem parar retomei o caminhar com nossa intrépida convalescente, estranhando o sofrer à toa, numa encosta tão pouco íngreme. Demoramos a associar os goles descuidados com o torpor que sentíamos. Uma vez feita aligação, nos resignamos a andar em segunda encosta acima, azeitando aos poucos o motor enquanto buscávamos a laje de pedra que formava o filhote do cardume de cetáceos que nomeia o trecho. Logo fomos ultrapassados pelo restante do grupo que andava em ritmo mais forte. Mantivemos o passo, ao alcançar a laje rochosa do Filhote, o pessoal já espraiado na laje teve a surpresa de se ver acompanhado no largar-se, pela Amanda que concedeu à todos 10 minutos de descanso, logo abreviados para cinco, risos. Retirou a mochila e deitou-se, com as costas na pedra aquecida pelo Descanso para as pernas e costas, que haviam se somado ao chiar do pé ferido. Somávamos, nessa hora pouco mais de 8 horas de caminhada, ainda havia um bocado a andar, decidi permanecer com a mochila e não me deitar (ainda). O mau jeito nas costas que tanto me incomodara nos dias precedentes parecia adormecido, não queria arriscar a, pagando-lhe tributo, fazê-lo, meu senhor.
Findos os 10 minutos (5), a voz de comando da Amanda pôs a todos em marcha, agora rumo ao cume do Morro
da Baleia, penúltimo cume da travessia. Após ele, restaria apenas o Sino, que não precisaríamos acumear. Nesse momento, “meros” 1,5 km nos separavam do abrigo do Sino, mas ainda teríamos o trecho mais técnico da travessia, com a sequência “Mergulho”, “Cavalinho” e “Coice”. Com o sol já buscando seu ocaso, seguimos no passo da Ariane, que fazia às vezes de guia e de maestrina, regendo os acordes dos nossos passos. Conseguíamos ver o Caio se aproximando do Cavalinho, e supus que talvez nos aguardasse para fazer a passagem com o amparo da fita. Alertei a Ariane para que aguardasse ao chegar no Mergulho, um lance inocentemente menos temido que o Cavalinho.
Pouco depois, a presença dos grampos “p” engasgados na rocha à esquerda lhe sinalizou que chegara a hora de vestir o snorkel e os pés de pato. Entendemos mais seguro que eu tomasse à frente na passagem e assim fizemos: passei pela Ariane e desci o primeiro lance até a rocha que divide o mergulho ao meio, aproximadamente. Ali me ancorei para guiar os passos ou auxiliar aos demais na passagem. As meninas aceitaram o auxílio e na ordem, Ariane, Beatriz e Amanda foram apoiadas no primeiro lance, após o qual não tiveram dificuldade em completar a descida até o colo Baleia – Sino.
Novamente com a Ariane puxando a trupe iniciamos a subida final, com o grupo que estávamos alternando posições nos ultrapassando no colo, na tentativa de pegar o pôr do sol no cume do Sino.
Na aproximação ao Cavalinho, a Ariane cedeu a primazia ao Pedro, escudado pela Beatriz. Deixando o Patrick como fecha trilha, subi até a passagem para auxiliar o Pedro, que estava vencendo a passagem com alguma dificuldade, felizmente conseguiu fazê-lo com a ajuda do grupo que nos precedia nesse momento. Agradecemos a gentil oferta de ajuda para fazermos a passagem, liberando-os para que tentassem alcançar o cimo da montanha a tempo.
Dispúnhamos de bastante segurança para fazê-lo e ali, não há espaço para a permanência de muitos. Subi sem nenhuma dificuldade, até surpreso com a memória que tinha da passagem. Nesses anos, perdera alguns quilos nos ossos e vários outros na mochila. Já na parte alta do lance, tirei a mochila, analisei como ajudar e, de
forma a permitir que o Pedro também fizesse força no puxar dos próximos, me posicionei bem à esquerda, permitindo que a pessoa ajudada, logo ao montar no cavalinho conseguisse me ultrapassar com segurança. A posição encontrada foi funcional, mas deu azo à brincadeiras com minha exposição a dolorosos impactos nas terras baixas. Felizmente, as ameaças ficaram nas angústias, sem se concretizar em dores. Muito melhor rir que chorar.
Superado o Cavalinho, partimos para enfrentar as derradeiras passagens técnicas, primeiro o Coice, uma passagem de pouco mais de 1 metro de altura, cuja inclinação do encaixado de rochas passa dos 90 graus,
exigindo a avaliação criteriosa de onde colocar pés e mãos para transpor.
Para o pessoal do grupo, acostumado com escalaminhadas na Serra do Mar, a passagem se mostrava pouco mais que interessante. De qualquer modo, para ganharmos tempo, me aprumei no patamar superior para ajudar quem precisasse. O pé contundido da Amanda recomendava prudência adicional, pois um movimento
de maior amplitude ou de esforço em ângulo desfavorável poderia trazer complicações desnecessárias.
Possivelmente pelo refluir da adrenalina da passagem no Cavalinho, ou pelo movimento abrupto no Coice, a Amanda nos alertou para a tontura que sentia.
Conhecedora de si, diagnosticou a situação como decorrente de uma baixa súbita na pressão e prontamente fizemos uma curta parada para alimentação, aproveitando para recuperar fôlego e deixar as lanternas em condições de pronto uso. A queda na pressão foi tratada com salgadinhos Torcida, cortesia do Pedro,
sabor pimenta mexicana. Mesmo curioso preferi não arriscar a conhecer o sabor exótico. Na sequência, outra passagem semelhante ao Coice foi superada sem dificuldade e alcançamos a escada, que permite superar um lance vertical de uns 4 metros e marca o fim das passagens técnicas da travessia. A partir dela,
sobe-se ainda uma dezena de metros na vertical até a placa que informa as direções para o Abrigo 4, a Travessia e o Sino, alcançada às 17h35.
Poucos minutos e metros à frente passamos pelo Abrigo 4, onde o vigia ofertou que coletássemos água, pois “havia pontos secos à frente”. Eu havia me planejado para dispensar boa parte do volume que transportava, mantendo apenas 1 litro, mas acabei por cometer o erro de completar o inventário, iniciando a descida com 3 litros. Como o consumo ao escurecer é baixo, terminaria a longa caminhada com 2,5 quilos desnecessários na mochila. Foram 4 horas de sobrepeso desnecessário na mochila, que cobraram seu preço.
Para tentar aliviar o tédio da descida e abreviar o tempo dispendido apertamos o passo, tentando acompanhar a Amanda, que desligara o freio motor e aproveitava a gravidade para acelerar mais e mais. A cada pouco, eu “cantava” nossa estimativa de chegada e o “minuto ganho”. Chegamos a tentar pequenas apostas do horário no final da trilha, comigo apostando que tiraríamos 33 minutos à estimativa inicial. Minha aposta era das 20h30. A ousada brincadeira distraía do tedioso avanço pela infinidade de curvas de nível da estrada, mas majorava o risco de uma entorse mais séria. Pequenas torcedelas, em boa parte aliviadas pelo uso atento dos bastões, se sucederam, comigo e com a Beatriz, até que um evento mais preocupante com o Daniel nos fez repensar e abandonar a estratégia. Colocamos ele na frente para que ditasse o ritmo que lhe parecesse seguro e seguimos perdendo altitude lentamente, por mais que os quilômetros decrescessem de forma constante. Depois de algumas horas que pareciam não findar nunca, às 21h30 concluímos a travessia. Verificamos aliviados que não havia ninguém mais por chegar e soubemos, então, que os primeiros a concluir o desafio fora o grupo de corredores, com o Felippe às 17h01. Cerca de 40 minutos após o penúltimo grupo, nós chegamos, concluindo o desafio. Soube do desencontro entre parte do pessoal que andara mais rápido e estendera a pernada mais longa e, que pelo efeito didático, entendo oportuno sintetizar o ocorrido, pelas visões do Mário Flores e do Felippe Duarte (Lobinho).
Mário Flores: “Descendo o Morro do Dinossauro, o Felippe entrou no Vale das Antas e foi pela esquerda. Achei que ele havia subido direto e foi aí que nos separamos. Comecei a acelerar “buscando” o Felippe, não o alcançando (estava às minhas costas). Supus que ele também havia acelerado e toquei direto para o Sino achando que o alcançaria ali, apreciando o visual. Já quase no Cavalinho encontrei o Vargas (Peru) e perguntei se vira o Felippe passar e ante a negativa, soube que ele ficara para trás. Continuei a subida, em companhia do Vargas e, na bifurcação nos separamos por alguns momentos. Ataquei o Sino, enquanto o Vargas seguia até o Abrigo 4 (Sino) para me esperar. Conforme combinamos, encontrei o Vargas no Abrigo 4, iniciando a longa descida. Na bifurcação que dá acesso ao Mirante do Inferno, nos separamos, pois, ele não atacaria esse atrativo do PNSO e queria aproveitar a oportunidade. Ele foi em frente e o Felippe o encontraria na longa descida em zigue-zague. Cheguei na van umas 18 h e encontrei nela o quarteto Vargas, Raí, Felippe e Leandro.”
Felippe Duarte “Cheguei a abrir uma montanha inteira à frente do Mário (acredito que tenha sido o Luva). No Vale das Antas parei para pegar água (para emergência, não tomei), como não tinha olhado o tracklog a partir daquele ponto fiquei imaginando que o Mário ia passar pelo ponto d’água. Ele não passou pois eu não estava na trilha. Sentei-me e comecei a conversar com os demais trilheiros de cargueira para saber qual seria o desafio de cada grupo, por onde tinham passado, do que tinham gostado mais na travessia. Foi aí que o Leandro apareceu e perguntei do Mário, ele me disse que já tinha passado tentando me alcançar. Segui por um trecho na companhia do Leandro até que ele me “liberou para correr mais um pouco” (queria muito fazer o Sino. Tivera o infortúnio de pegar o cume totalmente encoberto em outras oportunidades. E assim parti e, correndo, passei por muitos grupos até parar no Cavalinho. Ali, na ausência de 2 guias para um grupo de senhoras, me fiz solicito a ajudá-las. Mochilas passadas, coordenei a parte inferior da pedra, vestindo os trilheiros com cadeirinha e me certificando de que o mosquetão estava bem fechado.
Assim o fiz até que simultaneamente outro guia chegasse e o Leandro da sela do Sino me perguntasse se ali era o ponto que eu e ele havíamos combinado dele me esperar. Dada a negativa, pedi para que o amigo, já na companhia do Raí começasse a subir. Com o grosso do grupo que eu auxiliava já tendo superado o lance, pedi aos guias que me franqueassem a passagem. Sem dificuldade, galguei a pedra que outrora me custara 1 h para passar. Na primeira vez que realizei a travessia, tivera há pouco um pesadelo que me apresentara um local muito parecido onde, por azar, meu pé escorregara me levando a morte. Segui em marcha rápida contando o pesadelo, até o Sino, alcançado em poucos minutos. Ali, gravei um vídeo agradecendo e como sempre faço tirei meus calçados e meias para me conectar com a montanha, meu templo. Ao descer encontrei o Leandro e o Raí no cruzo para o abrigo e para o Sino e tocamos em marcha até o abrigo, registramos o momento e dali seguimos em trote puxado pelo Leandro por boa parte da descida. Eu sabia que faltavam ainda alguns poucos quilômetros e, para evitar o desconforto do uso do shit tube, pedi a autorização aos amigos e apertei mais o passo rápido até o final, finalizando em 10h01, em tempo de usar o banheiro na região da barragem/resgate.”
Partimos para o camping, ainda buscando encontrar algum restaurante, não turístico e de custos mais razoáveis, mas as tentativas de mostraram infrutíferas e restou encomendar uma (excelente) pizza, que chegou em sincronia conosco, no camping. Ao chegarmos, montei minha barraca e usei as tampas das caixas de pizza e o corpo das mochilas como isolantes térmicos. As roupas, que estavam em duplicidade também foram empregadas nesse intuito. Um caprichado banho com lenços umedecidos e me arranjei para o pernoite. Meu relógio marcou de mínima, dentro da barraca, 12°C. Dormi da 1 h às 5 h da madrugada. Depois levantei fui tomar um longo banho quente e ler enquanto o dia nascia. Saí de SP com a previsão de garantir o básico, 28 km. Como a oportunidade estava bem propícia arrisquei a ida aos Portais de Hércules, acompanhando o povo que, além de rodas nos pés, tem asas. Minha quilometragem somou 35 km, com 2400 de altimetria acumulada, cerca de 2 km desses decorreram das tratativas de busca da mochila e das consequências da busca, entre idas e vindas.
Importante observar como desencontros e imprevistos fazem parte das atividades em ambiente outdoor e, exatamente por isso, planejar o melhor possível e se preparar de forma bastante consciente. Dispor dos equipamentos e conhecimentos certos pode ser a diferença entre um incidente e um acidente, por vezes, irremediável. Reflitamos sobre esse ponto e aprendamos com as provações alheias.
2 Comentários
Seus relatos são sempre rebuscados e completo em detalhes, gosto muito… Foi uma delícia nossa exploração pela Serra dos Órgãos!
É um privilégio ter a oportunidade de aprender contigo sobre o mundo outdoor e uma alegria sem fim fazer parte dessa equipe e das empreitadas da Amanda Mascaro.
Vocês são foda! Tamo junto! <3
Fico cada dia mais feliz em ter esses loucos ao meu lado.