O conceito de propriedade é muito amplo! Quando falamos de montanhas, creio eu, elas pertencem a todo mundo e a ninguém ao mesmo tempo. Vamos pelo lado de um bem coletivo e de direito difuso, aquele que pertence a todas as pessoas de forma indivisível, seus efeitos (ou influências) se espalham sobre todos indistintamente. Sim, as montanhas pertencem ao escalador que as frequenta todos os finais semana, ao morador que está lá todos os dias e ao ser humano que vive longe delas, aquele que talvez nunca a tenha visto, mas goza de seus benefícios, contudo sofreria com a degradação dela.
Frequentar uma ou diversas montanhas com determinada frequência não dá título de propriedade. Quem de nós não deparou com o equivocado uni neural que cria regras específicas para que uma coletividade tenha acesso a uma trilha, um rio ou um cume. Aqui não falo da administração de Parques etc, os quais se enquadram em situação distinta, falo de frequentadores que tomam para si algo que é de uso coletivo, público e de direito difuso.
Estes tipinhos se apresentam em diversas modalidades: O tipo “leão de chácara”, que é aquele que não permite o acesso ou cobra de forma antipática para que os montanhistas transitem por sua área (reconheço o direito de propriedade e até o de cobrança amigável); o tipo “peão de trecho”, que quer que as pessoas passem a frequentar outras montanhas para não estragar a trilha daquela montanha que ele elegeu como sua e só deve ser frequentada pelos seus “eleitos”; o tipo “loteador”, que é dono do site de acampamento e se revolta quando alguém chega antes e nele arma a barraca; o tipo “prestador de serviços”, que em nome de sua ideologia retrograda depreda alguma melhoria por não estar no escopo de sua falta de raciocínio; e assim vai…., cada um pode brincar com o termo que quiser, crio os meus!
O Brasil é o país do futebol, muita gente pratica. Há milhares, se não milhões, de empregos relacionados com o esporte do futebol. São jogadores, técnicos, preparadores físicos, funcionários de clubes, transporte de jogadores e torcedores, hotéis, comércio de brindes, e a indústria de equipamentos como bolas, camisas, chuteiras etc (uma rede de negócios). É exatamente nesta última que concentro a minha atenção. No Brasil, apesar dos altos impostos, é possível comprar uma boa chuteira por US$ 40,00, uma boa bota de trekking custa US$ 400,00, dez vezes mais cara.
Pois é !!!! Se o montanhismo no Brasil fosse tão evoluído como o futebol, em média compraríamos equipamentos dez vezes mais baratos nesta rede de negócios. Ocorre que o montanhismo não é um esporte popular, não caiu no gosto do brasileiro, mas também tem o outro lado: os praticantes “donos da montanha” querem exclusividade, parece um esporte elitista. Eu já ouvi em ambientes naturais: não vá lá, não vale a pena; são cinco dias para fazer isto; você não consegue; é só para gente experiente e assim segue …. Também deixo claro que não incentivo irresponsabilidades, sempre indico um clube, um guia ou uma forma segura de incentivar a prática do montanhismo para iniciantes, para os experientes não tenho conselhos a dar.
Vemos, ouvimos e lemos um culto não neófilo, uma repulsa ao novo. “A montanha é minha e pronto” !!!! Para que o montanhismo seja um esporte expressivo, é necessário crescer muito. Este crescimento também passa por uma popularização. Quanto maior a frequência de pessoas nos ambientes naturais maior será a evolução de toda a cadeia ligada ao esporte. Mais consumidores, mais lojas, mais guias, mais refúgios de montanha, mais fábricas de equipamentos e preços mais acessíveis. Aumentarão os problemas ???? É claro que sim !!!!
Nos anos 80 a diretoria do CPM, da qual eu fazia parte, foi convidada para acompanhar, em uma viagem de Curitiba para Foz do Iguaçu, a comitiva da Ministra do Meio Ambiente da França, cujo nome não me recordo. Durante a viagem a Ministra falou sobre os problemas que ocorriam nos Alpes Franceses a cada temporada (fogo, lixo, pichações, acidentes, perdidos etc.) mesmo assim deixou claro que a melhor política de proteção é o cidadão conhecer e frequentar. É a visão da Europa onde o esporte é forte, não a nossa !!!!
Recentemente em artigo publicado neste site, havia uma denúncia de desmatamento no Caminho do Itupava nas Prainhas. Aqui não entro no mérito se o desmatamento é legal ou não, mas entro no mérito de que o assunto só ganhou notoriedade porque os frequentadores da área fizeram a denúncia. Eu mesmo passei por lá. Menos montanhistas – menos proteção dos ambientes naturais !!!!
A invasão de áreas naturais é uma realidade incontrolável (não a vê quem não quer) porém pode e deve ser ordenada. No verão, a Ponte de Ferro do Rio Nhundiaquara em Porto de Cima, nos anos 70, não era frequentada, hoje todo mundo sabe como é !!!! O Pico Paraná recebia em um ano o equivalente ao que recebe atualmente em um final de semana. Marumbi, antes da limitação do preço do trem, chegou a receber 1.200 visitantes em um final de semana, hoje infelizmente, quando muito, a frequência média é de 30 pessoas por final de semana.
O caminho passa pela criação de parques, áreas regulamentadas e protegidas, criação de grupos ambientais, grupos de socorro, brigadas de combate a incêndios florestais, cadastros etc. A maioria pensante sabe que temos que apoiar estas atividades, só elas poderão ordenar o inevitável. Sempre haverá uns poucos retrógrados que balbuciam o contrário, conhecedores do vazio, incapazes até mesmo de estabelecer qualquer nexo rasteiro entre a realidade e a ofensa à inteligência. Temos que focar no futuro, naquilo que está acontecendo e vai se projetar daqui para frente. O romantismo do passado é bom, mas só serve para iluminar lembranças, não realidades. Temos que ter a mente no futuro e não ficar com o pé no passado.
Se ninguém fizer alguma coisa, há três possibilidades mais evidentes para as áreas naturais. A primeira é a criação de Parques com regulação feita pelo Estado. Sabemos das limitações e das burocracias que envolvem a administração pública (veja a reforma do Parque Marumbi que completa o seu segundo ano e não acabou ainda). Outra hipótese são empresas privadas passarem a dominar estas áreas ou serviços como ocorre no Nepal e em outros países. As empresas cobram fortunas dos usuários e devolvem migalhas aos guias e prestadores de serviços locais. A última, mais razoável, são as comunidades, ONG’s, associações etc., tomem conta das suas áreas de interesse, pena que isto é frontalmente combatido por quem deveria apoiar.
O pé na trilha é tão importante quanto a cabeça no cume.
Máfia
Veja mais:
:: Conflito de gerações – Coluna Julio Fiori