Texto: Ricarto "Rato" Baltazar. Introdução: Eduarto Prestes
Depois de escalar no início de novembro a Agulha Poincenot, desta vez Ricardo alcançou o cume da Aguja Saint-Exupéry, com 2558 m e situada no cordão de montanhas do Fitzroy. A via escolhida foi a Kearney / Harrington, escalada pela primeira vez em 1988 pelo casal norte-americano Alan Kearney e Sue Harrington. A via tem cerca de 550 m, precedida por um longo trecho de rampas de pedra e gelo, começando na face oeste, nas profundezas do Vale da Torre, até próximo do colo com a agulha Rafael Juarez (também conhecida como Innominata), onde a linha segue pela face leste.
A Saint-Exupéry foi batizada pelo cartógrafo francês Louis Lliboutry, membro de uma grande expedição francesa que em 1951/52 fez uma detalhada exploração da região. Faziam parte desta expedição também os escaladores Guido Magnone e Lionel Terray, que alcançaram pela primeira vez o cume do Cerro Fitzroy. O cartógrafo francês batizou na ocasião alguns dos principais cumes de Chaltén, entre os quais as agulhas Poincenot, Mermoz, Guillaumet e Saint-Exupéry. Jacques Poincenot era um jovem escalador e membro da expedição francesa; ele afogou-se no final de 1951, durante uma travessia do Rio Fitzroy. Os outros homenageados eram pilotos do correio postal aéreo argentino, que voavam nesta região na década de 30: Jean Mermoz, Henri Guillaumet e Antoine de Saint-Exupéry. A linha de correio aéreo era operada na época por uma empresa européia, o que explica a presença dos pilotos franceses na Patagônia. Saint-Exupéry tornou-se depois mundialmente famoso como escritor, com destaque para a fábula infanto-juvenil "O Pequeno Príncipe", um livro vendido e traduzido em quase todos os países do mundo.
A primeira ascensão da Aguja Saint-Exupéry aconteceu apenas em 1968, por um quinteto italiano (uma mulher e quatro homens), que chegaram ao cume pela via Italiana (700 m, 7A/A1). Atualmente, esta agulha tem cerca de 11 vias, mais algumas variantes, com alturas entre 450 e 750 metros. É uma boa opção para janelas de tempo mais curtas, com vias de menor extensão (para os padrões da Patagônia) e rocha de excelente qualidade. Porém, como podemos perceber no relato de Ricardo Baltazar, nada na Patagônia costuma ser fácil ou rápido. Tudo irá depender do clima e das condições da parede, somados aos inevitáveis imprevistos de uma escalada em ambiente alpino. Além da ascensão, Ricardo comenta ainda alguns aspectos do seu cotidiano em Chaltén, alternando períodos de trabalho, treinos e escaladas.
Dale Cabeçada !
Subi mais uma !!! Desta vez, foi a agulha Saint-Exupéry !!!! Isssaaaa ! Fui lá em cima ver se encontrava o tal asteróide B 612 !! Para quem não sabe ou não lembra, esse é o planeta onde vive o Pequeno Príncipe, perdido em algum ponto do espaço.
A coisa por aqui tem estado meio enrolada, nem só de escaladas é feita uma temporada na Patagônia, as janelas de tempo bom são curtas e os períodos de espera longos.
Depois de escalar a Poincenot, trabalhei bastante. Pêlo-duro é assim, se quer escalar, tem que trabalhar antes. Tenho feito uns "porteos" até o Paso Marconi, que fica bem longe, às bordas do Gelo Continental, depois de Piedra del Fraile (camping de onde se tem acesso ao Paso del Cuadrado, ponto de partida de escaladas na Guillaumet, Mermoz, face oeste do Fitzroy, etc). Outro dia, eu e um amigo argentino fomos com os guias e mais 10 clientes até La Playita, um acampamento a umas 3 hs de caminhada do Fraile. Ando até pensando em morar na Playita, tenho feito porteos seguidos para estes lados e o lugar é alucinante, próximo da Aguja Pollone. Ali dormimos uma noite, acordamos no outro dia às 5 da manhã, calçamos botas e crampons, e seguimos com as cargas até o Glaciar Marconi, onde descarregamos, perto do acampamento onde iriam dormir os clientes. Existe um percurso de 7 dias, chamado "Volta ao Gelo Continental", e que passa por trás de todo o cordão do Cerro Torre, caminhando no gelo. Nosso trabalho tem sido levar cargas até o glaciar e dar um apoio neste trecho inicial. É massa, pagam bem por isso, estou safo por uns tempos, mais tranquilo para pensar em escalar. Também fui umas vezes ao Glaciar Torre, como assistente de guia, conduzindo grupos de clientes. Foram 4 dias de trabalho duro, sem descanso. O cara volta "destrozado". Estas jornadas são fortes e acabam sendo um bom treino para a montanha. O roteiro para o Glaciar Torre começa às 7 da manhã e o retorno é quase às 8 da noite, é um dia full, quase sem parar, nem mesmo para comer. Este mês foi bom, deu para voltar a comer como gente e não como "perro", ando comendo até iogurte com cereal no café da manhã, nem em casa eu como isso !
Pensei em seguir ao Glaciar Viedma, para um trabalho como assistente em um grupo, mas na real precisava parar um pouco, já estavam me doendo os pés e os joelhos, era hora de descansar. A gurizada está se puxando nos trampos, já que nesta temporada estão precisando de porteador para todos os lados. Maluco, chega a faltar porteador para alguns trabalhos. No ano passado não estava assim, acho que é porque tinham poucos guias e muitos carregadores. Já nesse ano, muita gente prestou exame no Parque para trabalhar como guia (até porque ganha mais) e assim tem sobrado esse tipo de trabalho, de apoio.
No final do mês eu mandei para o alto alguns serviços, para treinar e descansar as pernas. Teve uma janela lá pelo dia 25, mas eu já havia fechado com um grupo para o Glaciar Torre. Tenho treinado num ginásio que existe em Chaltén, gratuito, estou me escalpelando de tanto escalar no muro. Existem ainda inúmeras vias esportivas e boulders no entorno da vila. Também tento passar o rodo nos argentinos nas partidas de futebol, mas isso são outros quinhentos, os caras jogam bem e eu só engano !
Os austríacos com os quais eu escalei a Poincenot voltaram da montanha por estes dias. O Toni e o Lui estiveram metidos no fundo do Vale Niponinos, bem além do bivaque Noruegos. Estiveram escalando umas agulhas que chamam Inti, Atchachila e Pachamama. São distantes, existe um roteiro chamado trilogia inca, que é uma travessia destas 3 agulhas. O tempo esteve bem instável, com chuva, vento e frio. Acho que os austríacos tiveram que agüentar bastante coisa, mas conseguiram completar as escaladas. Eles foram embora no fim de novembro. O Toni deve voltar em janeiro, parece que com o David Lama.
Vinha pensando em ir também para aqueles lados, para o Vale do Torre. Um par de gringos subiu a Via do Compressor uns dias atrás. O tempo esteve meio ruim em novembro e isso deve ter impedido os austríacos de fazer uma tentativa séria na Maestri-Egger, na face norte do Cerro Torre. O Toni, junto com outro austríaco, foram os que chegaram mais alto nesta rota, tiveram que retroceder já próximos do cume. O Toni esteve 3 vezes nesta rota e está empenhado em ser o primeiro a fazer uma ascensão completa da face norte da montanha. É até mais complicado do que subir a parede sul, onde o Ermano Salvaterra abriu a Infinitu Sud. Esse italiano ficou quase um mês na parede, vivendo dentro de um latão com mais 2 micróbios, alta conquista.
Pois é, neste meu descanso veio uma janela de tempo bom, 4 dias, com um pouco de precipitação no meio. Descansei na quinta (01/12), aproveitando que na quarta todos se arrancaram para escalar em algum lado. O camping e a vila ficaram tranquilos, os micróbios correram tudo para as montanhas !!! Arranjei-me com um amigo e guia argentino, o Gaston Carlos. Eu conheci o Gaston na temporada passada e combinamos de ir para Niponinos na sexta de manhã, pensando em escalar algo na área. Primeiramente, esse algo seria a via Chiaro di Luna (750 m / 6C), na Aguja Saint-Exupéry, mas acabamos no fim "cambiando" os planos e fomos para a clássica Kearney-Harrington. É mais fácil escalar a via do que pronunciar os nomes dos caras ! Para a Chiaro di Luna, já havia fila no bivaque Polacos, localizado a cerca de 40 minutos de caminhada acima do campo-base Niponino. Chegamos por lá na sexta à tarde, e assistimos de camarote duas lanternas que tentavam subir o largo Bridwell, lá pelas 8 da noite, na Via do Compressor do Cerro Torre. Os caras deviam estar se cagando de frio, porque ventava a full no vale, mas no fim eles subiram o monstrengo. Eram 2 tchecos, esses caras do leste europeu são tudo casca-grossa.
Sábado, em torno das 4 da manhã, levantaram-se todos que estavam em Polacos e foi cada um ao seu calvário, para uma boa sessão de chibatadas !!! Dois suiços e uma outra cordada avançaram sobre a vertical Chiaro di Luna. Eu e o Gaston seguimos outro caminho, subindo por uma rampa de neve sem fim, foram 2 hs até chegar ao pé dessa via de nome impronunciável ! Grudamos nas fendas tal qual carrapato e "dale para arriba". Fendas e fendas perfeitas, como nunca tinha visto igual. Os largos são fáceis (dependendo das condições, claro). Na via predominam passadas de 4º, 5º e 6º graus em rocha, às vezes quebradiça, às vezes sólida, mas com boas proteções o tempo todo. Lá pelas 14 hs, estávamos fazendo a virada característica desta via, onde se sai da face oeste para a face leste, e então se pode ver Chaltén e tudo em volta.
A partir daí, nos complicamos um pouco. Começou a fazer calor e tinha um monte de "repisas" e platôs carregados de neve. Levamos uma piqueta para cima, caso fosse necessário cavar ou bater pitons nas paradas. Então o que aconteceu é que, às vezes, eu tinha que guiar lances que no croqui eram indicados como 4º grau, mas que estavam tapados de neve fofa, até os joelhos. Ou seja, não dava para tracionar e não tinha como proteger, pois a neve escondia as fendas ! Maluco, a parada foi bizarra ! Eu estava de sapatilha Snake, toda furada e empapada de neve, com os dedos congelando, de piqueta na mão ou na mão grande mesmo, me enterrando numa rampa de neve de até 50 graus de inclinação, sem proteção alguma ! Às vezes, dava para laçar um bico de pedra que se sobressaia na neve, mas nem pensar em cair, ia parar no inferno se resvalasse naquele troço. Esse tipo de escalada parece estar na moda por aqui. Os caras chamam isso de "nadar em neve" ! Vai nadar assim na casa du carai !!! Não foi nem um pouco divertido escalar essas rampas.
Já no final da via, onde pensávamos que a montanha ia arregar e deixar a gente seguir até o cume tranquilo, a coisa piorou. O último movimento para chegar ao cume eu ainda tenho bem guardado na memória. Estava metido dentro de uma espécie de chaminé de granito, coberta de verglass por todos os lados, e com neve fofa no fundo. Eu tive que meter as mãos congeladas dentro da cueca, para descongelar um pouco, isso me equilibrando como podia, com as sapatilhas enterradas na neve mole. Assim que os dedos descongelaram, eu pensei: "é o último movimento, vamos montanha, me regala essa pelo menos, só essa passada e já é". Nem precisa dizer que a proteção estava pendurada no meu pescoço, em forma de escapulário, porque a corda estava ali só para bonito mesmo, soltinha no vazio.
Para baixo, o que me esperava era uma rampa neve de uns 15 metros, beeem inclinada, depois umas quicadas em uma rampa de granito empapado, uma proteçãozinha incrustada entre pedras soltas, o que resultaria provavelmente num fator 2, e meu grande companheiro Gaston provavelmente teria tempo de descobrir a velocidade que alcança um base jumper sem pára-quedas ! Loco, foi preciso respirar fundo e seja o que Alah quiser ! Meti as mãos no gelo, formado entre a rocha e a neve fofa, e me agarrei nisso, da maneira mas delicada possivel, e dale patinaço para arriba. A porra do gelo se esfarelou 2 vezes na minha mão, e 2 vezes voltei a me agarrar em neve, em gelo e em sei lá mais o quê, mas consegui me segurar e não escorreguei para o inferno, naquela chaminezita gelada ! Eram só 2 blocos, e não me deixavam passar para o cume, foda ! Bem, no final, a história teve um final feliz. Consegui trepar na chaminé de joelhos, sei que não é nada elegante, mas paciência, eu queria é viver. Voltei a me agarrar no gelo e utilizei todas as técnicas de pirambeirismo que aprendi ao longo dos anos e fui ! Montei nos blocos, agradeci a Deus e passei, cume !!!
Mal deu tempo de curtir alguma coisa. O Gaston chegou bufando, tiramos umas fotos e já armamos o rapel. O tempo estava virando e ficando muito feio, maluco! Tinha desaparecido tudo na nossa volta. Nada do Torre, nada do Fitz, nada de nada ! O que havia eram nuvens e ventania vindas de oeste. Os últimos largos transcorreram pela face leste da montanha e nem nos demos conta que o tempo havia virado, para bem pior. Aí anoiteceu, e foram inúmeros rapéis madrugada adentro, queixos batendo de frio, cordas presas em bicos de pedra, levadas pelo vento, fome, sede, prussicadas no escuro, alucinações, palavrões, xingamentos e todo o pacote sky de presentinhos patagônicos que pode te tocar às vezes.
Batendo um piton, me afrouxou a lâmina da piqueta, e a desgraçada caiu. Nem me dei conta. Ficamos com uma piqueta sem lâmina, só o cabo ! Afrouxou a porra do parafuso ! Sei lá, cada coisa loco, descemos só com um cabo de piqueta toda a rampa que dá acesso ao pé da via. O negócio tem uns 45 graus, olha, só indo lá para ver a porra ! Mas conseguimos, sei lá como, e lá pelas 5 da manhã de domingo cambaleamos para dentro do saco de dormir em Polacos. Nem comer conseguimos, fumamos um Phillip Morris cada um e beleza, caímos no sono. Ainda no domingo, à tarde, voltamos para Chaltén, em trapos, mas inteiros !
Da próxima vez, vou procurar uma raposa mais perto de casa ! Valeu Exupéry !!!
Abraço a todos na terrinha, vou dormir, que estão me “cerrando os zoio”. "Seguimo" na peleia, fazendo o "aguante" !
É nóis e zás !!!!
Ricardo Rato Baltazar