Razões para a conservação da Serra dos Cocais

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A Serra dos Cocais, no interior do São Paulo, é onde ficam os famosos boulders de Valinhos. Muito mais do que só as aspirações esportivas dos escaladores, o local é um importante fragmento de natureza encravado no meio da região metropolitana de Campinas. Apesar da grande beleza cênica e ecológica, ela está sendo ameaçada. Há um projeto de lei esperando ser votado na Assembléia legislativa que a transformará numa APA (Área de Proteção Ambiental). Enquanto a proteção por forma lei não chega, venho aqui contribuir com razões científicas para que este importante local seja preservado. Está na hora de conscientizar os frequentadores da Serra de sua importância e seu significado ecológico.

A evolução fisiográfica do planeta ao longo de milhares de anos, culminou na elaboração das paisagens atuais, por isso podemos dizer que elas apresentam um caráter de herança, já vez que os processos que resultaram em sua elaboração ocorreram no passado ou vêm ocorrendo desde tempos remotos. Desta forma, a história da paisagem é considerado como o fechamento da história geológica.

O Brasil apresenta uma grande variedade de paisagens naturais de grande dimensão espacial onde se verificam relações morfopedológicas, botânicas e climáticas que caracterizam os domínios paisagísticos. Estes evoluíram sobre uma área nuclear de máxima tipicidade de onde é original o material genético das floras adaptadas às condições fisiográficas condizentes.

A Serra dos Cocais é uma elevação que representa uma das últimas vertentes da província geomorfológica do Planalto Atlântico paulista, no contato entre os terrenos cristalinos desta região natural e a litologia sedimentar, representado pelas rochas do Grupo Tubarão da Bacia do Paraná exumadas na Depressão Periférica.

Mapa de localização da Serra dos Cocais

O território onde está a Serra dos Cocais está dividido politicamente em três municípios, Valinhos, Itatiba e Vinhedo, servindo, inclusive, de uma divisa natural entre estes. Veja o que Antônio Christofoletti (1968), saudoso geógrafo Física da Unesp diz sobre ela:

Altimétricamente, a Serra de Cocais apresenta cotas de 800-830 metros em sua parte nordeste, ao ser atravessada pelo rio Atibaia, mas atinge cerca de 900-950 metros em sua parte sudeste, ao norte de Valinhos. A sua topografia apresenta relevo vigoroso, com entalhes profundos dos rios que a sulcam.

As vertentes são muito inclinadas, atingindo 30 a 40º, e os topos possuem um perfil transversal convexo, enquanto longitudinalmente são aplainados. A imagem panorâmica cimeira apresenta superfície aplainada inclinada para oeste.

Ela corresponde a um trecho da superfície pré-permiana de ou de Itaguá (sic), que é a superfície regional mais antiga, exumada pelos processos de circundesnudação pós-cretáceos.

Perlongando a sua frente entre Joaquim Egídio e Valinhos, pode-se notar a existência de um paredão quase vertical, com esporões alinhados e vales suspensos característicos. O seu topo e suas vertentes estão coalhados de matacões.

Boulderes na Serra dos Cocais, Valinhos SP.

Os geólogos Fernando Flávio Marques de Almeida e Celso Dal Ré Carneira acreditam na hipótese que o topo da Serra dos Cocais seja um remanescente de uma antiga superfície de erosão de idade Cretáceo – Eocênica, chamada regionalmente de “Superfície Japi”. Isso significa que tal superfície é parte de um antigo nivelamento colocado em nível do mar logo após a separação da América do Sul da África, entre 80 e 60 milhões de anos, sendo um resto de relevo de uma fase seca que arrasou o relevo do então recém formado continente.

Esta superfície, que foi muito grande, ficou preservada, mas, ao longo do Cenozóico (últimos 60 milhões de anos) ela foi soerguida e deformada, estando presente em diversos níveis altimétricos regionais, 850 metros na Serra dos Cocais, 1200 metros na Serra do Japi – SP, 1800 metros no planalto de Campos do Jordão – SP, 2000 metros no Planalto de Itatiaia – RJ e 1300 metro na Serra do Mar do Paraná.

Além desta, há ainda uma mais recente, a superfície Neógena (de idade Plio – Pleistocênica) que é a superfície onde está instalado o sitio urbano de Campinas nos interflúvios que dissecam a Depressão Periférica.

A situação topográfica e estrutural da região da Serra dos Cocais cria influências sobre uma excepcional cobertura vegetal, identificada por mim em diversos trabalhos acadêmicos como uma transição entre os cerrados assentados sob os terrenos sedimentares da Depressão Periférica à oeste e a Mata Atlântica, Floresta latifoliada estacional e semidecidual dos terrenos cristalinos do planalto à leste da Serra dos Cocais.

Ademais estas fitofisionomias identificadas pertencentes aos macros domínios de paisagem de cerrados e dos “Mares de Morros”, ainda chamo a atenção para a identificação de um rupestre-bioma semelhante à paisagem do domínio Semi-Árido de Caatinga comportando-se como um reduto de flora de um clima pretérito mais árido que o atual (durante a última glaciação, entre 22 e 10 mil anos!), que sob a denominação de “Serra do Jardim”, é segundo Aziz Ab´Sáber (2003, pg. 146), um dos três redutos de caatingas mais importantes, com indicações paleoambientais e paleoecológicas já identificadas.

Cactacea sobre um matacão. Vegetação relictual do último grande período de climas secos, a Glaciação Würm entre 22 e 10 mil anos atrás!

Realizando um levantamento florístico com base na identificação visual das fitofisionomias, eu pude realizar em uma primeira aproximação uma interpretação do padrão paisagístico original anterior à ocupação do homem branco, confeccionado um esquema em perfil sobre a distribuição das floras na região que acreditamos ser válido para boa parte da porção ocidental do planalto Atlântico e contato com a Depressão Periférica e pode ser apresentado como resultado da pesquisa que foi minha conclusão de curso em Geografia na Unesp de Rio Claro em 2005 (download).

Padrão de distribuição da vegetação, solos relevo e estrutura geológica da Serra dos Cocais e entorno (HAUCK, 2006)

Desta maneira, a Serra dos Cocais é um importante lugar para investigação geocientítica, pois sua origem estaria relacionada com a evolução das paisagens brasileiras e seu caráter biodiverso. Além disso, lá é um dos poucos espaços verdes no interior da Região Metropolitana de Campinas, uma das regiões mais urbanizadas e industrializadas do Brasil.

A grande diversidade de paisagem na região, suportada pelo contato de duas regiões naturais de características geobotânicas distintas, serviu na colonização e formação dos municípios circundantes como uma vantagem econômica, o que explica, de uma certa forma, o grande desenvolvimento destes municípios.

Neste processo, a Serra dos Cocais, mesmo que indiretamente, teve uma importância muito grande, condicionando em partes a riqueza do homem neste setor do território paulista.

Em um primeiro momento, no entanto, a atividade econômica de toda região se limitava à monocultura da cana de açúcar, que no século XIX foi substituída pela cultura do café trazendo na época grandes avanços econômicos, mas também grandes impactos ambientais que desfiguraram a cobertura vegetal nativa da Serra dos Cocais. Se antes a mata era destinada à alimentar os fornos dos engenhos de cana, depois sua utilidade foi reduzida e foi então substituída pelos cafezais. O grande geógrafo Antônio Christofoletti (1968, pg. 33) faz uma breve recapitulação sobre a história do uso do solo na Serra dos Cocais que se seguiu:

Através dessa expansão desenfreada, o homem rompeu o equilíbrio bioclimático que aí imperava. Os métodos agrícolas empregados, arcaicos e rudimentares, não favoreciam a conservação dos recursos naturais, e os solos foram rapidamente dilapidados. As zonas florestais, situadas sobre os solos melhores, foram destruídas e ocupadas. O esgotamento dos solos, a crise de 1929 e a praga da broca levaram à capitulação da cultura cafeeira, substituída pelas pastagens e eucaliptais, entremeados por raros capões de mata secundária, e por outras culturas. Por lado, os cerrados, ajustados a solos de qualidade inferior, de baixa fertilidade, foram deixados de lado. Embora degradados pela atividade pastoril, constituem os únicos vestígios da cobertura vegetal original.

Com a crescente urbanização e industrialização da região, as atividades econômicas na Serra dos Cocais, mesmo não sendo mais tão importantes no saldo econômico dos municípios circundantes, ainda estão ativas, e algumas representam uma ameaça ao tecido geoecológico local, que como foi visto, representou no passado um importante fator que condicionou a riqueza regional.

Reflorestamento de pinus e eucalipto, pastagem, fruticultura diversificada, figo e exploração de granito são as principais atividades econômicas na Serra dos Cocais, sendo que as duas últimas são as mais degradantes. A primeira por que faz uso intenso de pesticidas agrícolas, envenenando o lençol freático com sulfato de Cobre e não permitindo qualquer desenvolvimento da vegetação ruderal, desprotegendo o solo à ação da erosão. A segunda por que destrói os matacões e tors de granito (nossos boulders!), destruindo também a beleza cênica da paisagem além dos rupestres biomas de caatinga apoiados nos afloramentos rochosos e deixando grandes cicatrizes, irreversíveis, no relevo.

Destruição de boulder na Serra dos Cocais.

Destruição na Serra dos Cocais

Destruição na Serra dos Cocais

Além destas atividades, a Serra dos Cocais está ameaçada pelo avanço urbano, destaca-se ultimamente a especulação imobiliária que promove nas terras altas da Serra dos Cocais, em ambientes de fragilidade e de grande beleza cênica, o loteamento de condomínios que “privatizam” a paisagem, restringindo-a a grupos sociais economicamente favorecidos.

Desta maneira, acredito muito que a criação da APA do Sauá, excelente proposta da ONG Amigos da Serra dos Cocais que se torna cada dia mais urgente devido às ameaças crescentes e a necessidade que a região metropolitana de Campinas tem de enfim ter uma área verde com finalidades não apenas conservacionistas, mas também recreacionais.

Devemos também ter em conta que a conservação da Serra dos Cocais, além de representar qualidade de vida no futuro, também é uma chave para que os cientistas ainda descubram mais sobre nossa história. Uma história anterior à chegada de nossos antepassados.

Uma história que não é a história do homem, mas sim da natureza que foi tão generosa ao propiciar tantas riquezas ao homem da região, que as herdou, mas que hoje de uma forma egoísta e irracional utiliza estes recursos até o esgotamento, sem dar chance para que as gerações futuras usufruam a natureza.

:: Veja a Serra dos Cocais no Google Earth através do Rumos: Navegação em montanhas!

Para saber mais:

AB´SÁBER A. N. Os Domínios de Natureza do Brasil: Potencialidades paisagísticas. Ateliê Editorial, São Paulo, 2003.
AB´SÁBER A. N. A depressão periférica paulista: um setor das áreas de circundesnudação pós-cretácica na bacia do Paraná. Geomorfologia, São Paulo, IG-USP, nº 15, 1969
ALMEIDA, F.F.M; CARNEIRO, C.R; Origem e evolução da Serra do Mar. Revista Brasileira de Geociências 28(2), jun. 1998, p. 135-150
BIGARELLA, J,J;PASSOS, E; HERRMANN, M.L.P; SANTOS, G.F; MENDONÇA,M; SALAMUNI,E; SUGUIO,K; Estrutura e origem das Paisagens tropicais e subtropicais, vol(3). Editora da UFPR, Florianópolis, 2003. 552p
CHRISTOFOLETTI, A. O fenômeno morfogenético no município de Campinas. Notícia Geomorfológica, Campinas, v.8, nº16, 1968
HAUCK, PEDRO, A. Matas, campos e mandacarus: A Teoria dos Refúgios Florestais aplicada ao estudo da paisagem na Serra dos  Cocais entre Valinhos e Itatiba – SP. Trabalho de conclusão de curso em Geografia. IGCE, UNESP. Rio Claro, 2005 pg. 76. (download)
HAUCK, PEDRO. A.  A Paisagem primitiva da Serra dos Cocais, setor ocidental do Planalto Atlântico paulista. In:. Anais do IV Seminário Latino Americano de Geografia Física, Maringá 2006 (download)
HAUCK, PEDRO. A . As superfícies antigas da Serra dos Cocais: Setor Ocidental do Planalto Atlântico Paulista. In:. Anais do VII SINAGEO, Belo Horizonte 2008 (download)

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Sobre o autor

Pedro Hauck natural de Itatiba-SP, desde 2007 vive em Curitiba-PR onde se tornou um ilustre conhecido. É formado em Geografia pela Unesp Rio Claro, possui mestrado em Geografia Física pela UFPR. Atualmente é sócio da Loja AltaMontanha, uma das mais conhecidas lojas especializadas em montanhismo no Brasil. É sócio da Soul Outdoor, agência especializada em ascensão em montanhas, trekking e cursos na área de montanhismo. Ele também é guia de montanha profissional e instrutor de escalada pela AGUIPERJ, única associação de guias de escalada profissional do Brasil. Ao longo de mais de 25 anos dedicados ao montanhismo, já escalou mais 140 montanhas com mais de 4 mil metros, destas, mais da metade com 6 mil metros e um 8 mil do Himalaia. Siga ele no Instagram @pehauck

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