Esta é a segunda coluna sobre as intervenções históricas de empresários poderosos para o desenvolvimento da Floresta Amazônica.
Os Ciclos da Borracha
Relatei num outro capítulo como a Amazônia passou por um extraordinário ímpeto de crescimento, com a exportação do látex extraído das seringueiras. Até então, ela não passava de uma das muitas drogas do sertão, como o guaraná, o urucum, a poaia ou o cravo, de uso alimentício ou medicinal.
A enorme demanda criada pela produção dos pneus de borracha para a indústria automobilística gerou a nova classe dos Barões da Borracha. Trouxe a riqueza, o progresso e a civilização para as capitais de Belém e Manaus, então as mais opulentas do país. Mas os sertanejos brutalizados e escravizados no trabalho na floresta em nada participaram dessa prosperidade.
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Os mercados municipais (Fonte: Divulgação)
O desenvolvimento dos novos seringais no Sudeste Asiático, o aperfeiçoamento da borracha sintética e o fim da II Guerra Mundial foram os sucessivos golpes que terminaram de vez com os ciclos da borracha. A partir de meados do século XX, a Floresta Amazônica recuperou sua existência vazia e silenciosa. Da qual foi, entretanto, despertada por um dos mais utópicos projetos concebidos pelo homem.
Daniel Ludwig
Daniel Ludwig, o empresário que criou o chamado Projeto Jari, tinha certas semelhanças com Henry Ford, autor de outra utopia amazônica quase meio século antes. Ambos eram idosos à época (respectivamente 70 e 60 anos), comandavam autocraticamente negócios extremamente lucrativos, eram considerados os homens mais ricos do planeta, tinham personalidades reservadas e doenças incapacitantes.
Ludwig e Ford, na opinião de Pedro Moreira Salles, quiseram substituir a selva pela monocultura e não trabalhar mais com a floresta, mas contra ela, com o objetivo de mecanizá-la. Acredito que compartilharam a arrogância empresarial e a ignorância ambiental, numa escala tão grandiosa quanto a Amazônia onde investiram e fracassaram.
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Daniel Ludwig (Fonte: gettyimages)
Depois da II Grande Guerra, o transporte marítimo cresceu imensamente, com o progresso dos países desenvolvidos. Entre todas as mercadorias transportadas, nenhuma teve a importância do petróleo, de enorme uso automotivo e industrial. Ludwig percebeu que o tamanho dos navios-tanque teria de crescer – inicialmente pela adaptação dos cargueiros existentes e depois pela construção dos superpetroleiros.
Este processo de gigantismo evoluiu por meio século, trouxe grandes economias de escala (de construção e operação) e tornou Ludwig um dos primeiros bilionários da história. Os negócios mundiais de Ludwig tornaram-se diversificados – hotelaria, agropecuária, extração de carvão, reflorestamento, banco e seguros. Ele morreu com mais de 90 anos – vivia no escuro, sozinho e doente.
O Projeto Agropecuário
Ludwig originalmente pretendia desenvolver um projeto agroindustrial na Nigéria, mas como o país estava em guerra civil, acabou adquirindo em 1967 nada menos do que 32 mil km² entre o Pará e o Amapá. Imagine que isto corresponde a quase quatro municípios naquela região ou a uma Bélgica inteira. Era então o maior dono individual de terras no Ocidente.
Lá não havia nada além da floresta e Ludwig teve de construir portos, ferrovias, estradas e uma cidade. Esta chama-se Monte Dourado e tem hoje cerca de 15 mil habitantes.
Está na margem do Rio Jari, um afluente do Amazonas com belos trechos encachoeirados no seu curso médio. Ele bordeja o Tumucumaque, maior parque natural brasileiro, que abriga uma natureza exuberante.
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Bosque de gameleiras (Fonte: Divulgação)
Ludwig começou por um projeto de reflorestamento (em plena floresta) com sementes de gamelina, uma espécie de rápido crescimento do Sudeste Asiático. Seu plano era usá-la na produção de celulose. Em apenas seis anos poderia ser processada como polpa e, em oito, abastecer a indústria madeireira.
Plantou também uma imensa área de arroz e pretendia desenvolver a criação de búfalo e a mineração de bauxita. Nada disto deu certo: o desmatamento por tratores compactou e desenraizou a terra, tornando-a estéril; a gamelina não se adaptou à região e definhou; a cultura de arroz mostrou-se improdutiva; acidentes em suas instalações foram dispendiosos.
A Jari Celulose
Mas a maior aventura estava ainda por vir. Em 1978 Ludwig contratou no Japão a construção de uma fábrica de celulose e de uma usina elétrica movida a óleo. Vieram flutuando no mar por quase dois meses e 25 mil km.
Uma volta ao mundo, pois não poderiam caber no Canal de Panamá, tiveram de contornar o sul da África e subir a costa do Brasil. Um menino que viu estas instalações aparecendo numa curva da selva exclamou: Tem uma cidade subindo o rio!
Ao chegar, foram incrivelmente montadas numa lagoa artificial sobre milhares de toras submersas de maçaranduba, que estão até hoje no local.
Sim, a fábrica entrou em operação e os eucaliptos (e, em parte, os pinus) substituíram com melhor resultado as gamelinas. Cheguei a conhecê-las no Sudeste, pareceram-me apenas um bosque de troncos curvos e finos e de copas pequenas e desanimadas.
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As barcaças (Fonte: Divulgação)
Mas a infraestrutura na Amazônia remota era muito cara; a escala de 280 mil t/ano da fábrica deixou de ser excepcional, diante de projetos maiores; sua celulose passou a ter concorrentes mais competitivos no mundo; e os juros subiram, tornando-se mais custosos pelos atrasos do projeto.
E, no fim, Ludwig descobriu que fora enganado, era dono de apenas 17 (e não 32) mil km², que o Governo não quis repor. Uma Bélgica que encolhera para o tamanho de um Kuwait. Era então um homem muito velho, assistindo à derrocada do seu maior projeto – e o único deles que malogrou.
Um horrível naufrágio aconteceu perto da cidade de Monte Dourado que Ludwig construíra para abrigar seus funcionários. Denúncias de maus tratos repercutiram na mídia e a opinião pública voltou-se contra o empreendimento. Em 1982, Ludwig abandonou o projeto. Vendido sucessivamente a outros empresários, em 2020 a Jari Celulose pediu recuperação judicial, pois estava falida.
A Floresta Viva
Ludwig um dia contou: Eu sempre quis plantar árvores como num milharal, em fila. O escritor Jerry Shields comentou que a existência da selva ofendia sua cabeça de engenheiro. Ele acrescenta que a floresta era excessivamente desorganizada para Ludwig, com cipós, galhos, raízes e mato crescendo caoticamente. Ele queria asseio – árvores perfiladas como soldados em colunas retas, à espera de serem cortadas e despachadas para o mercado.
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A fábrica e a cidade (Fonte: Divulgação)
Acho que Ludwig nunca entendeu a floresta como um ser natural e coeso, abrigando a interdependência da vida – para ele, era improdutiva e dispersiva, não diversa e maravilhosa. Mas, da área de 17 mil km² que coube ao seu projeto, apenas 400 km² foram até hoje de fato replantados. O restante, sob a vigilância da empresa, não foram grilados, minerados ou devastados, como tem sido tão comum na Amazônia. Conclui Pedro Moreira Salles: Ludwig jamais imaginou que seu maior legado no Jari seriam as florestas que ele não derrubou
3 Comentários
Qual a área reflorestada atualmente de propriedade da Jari ?
Qual a área reflorestada atualmente de propriedade da Jari ?
É chegado o momento do maior desafio deste projeto, talvez maior até mesmo do que a fábrica vir navegando desde Hiroshima, que é o de pagamento dos empregados e redesenhar um projeto sustentável economicamente, para depois se tornar economicamente, sustentavelmente, ambientalmente e socialmente principalmente.
Sustentável, rentável, porém para novos resultados precisamos novos caminhos, novos propósitos, novos processos, novos produtos, novas condutas e disposição de mudar.
Aproveito ainda para registrar que desde 1979 até 2023, o úncio ano de resultado econômico positivo, foi o ano de 1994. Muito além da situação atual, por si só já exigiria mudanças radicais no que está acontecendo, para a real sustentabilidade exige resultados econômicos positivos.
Parabéns pelo texto. MInha biografia de Daniel Ludwig, com foco na história do ‘Projeto Jari’, pode ser do seu interesse, e está disponível (em inglês) no Kindle Brasil: [R$24,64]