O Portal Alta Montanha é um espaço para a disseminação de informações e conteúdos relevantes para as atividades do montanhismo. E também para reflexões sobre o papel que essa atividade exerce sobre a sociedade e como essa atividade se desenvolve no Brasil. Em 2010, o montanhista e colunista Pedro Hauck escreveu um artigo sobre a História do Montanhismo Brasiliero e também fez algumas reflexões sobre a atividade naquela época. Confira o texto desse montanhista é veja o que mudou nos últimos 13 anos.
Confira o artigo na íntegra
Não se sabe com exatidão quando aconteceu a primeira ascensão em montanha no Brasil. Alguns locais no país, como a cidade do Rio de Janeiro, é suficientemente próxima a montanhas o que sustenta a hipótese de que pode ter havido ascensões em montanhas antes de 1879, ano que Joaquim Olimpo de Miranda, também chamado de Carmeliano, escalou o Marumbi, no Paraná, pela primeira vez, feito que é tido como o marco inicial do montanhismo brasileiro.
Nos Andes, antes dos europeus, já havia uma tradição de escalar montanhas, o que põe em dúvida também o pioneirismo de Gabriel Paccard e Jacques Balmat, que escalaram o Mont Blanc, na França, em 1785, marco do início do montanhismo no mundo. Isso porque inúmeras múmias e sítios arqueológicos, alguns acima dos 6 mil metros de altitude, atestam a ancestralidade do costume de escalar montanhas na América.
A diferença, no entanto, é a motivação. Enquanto os povos ameríndios subiam montanhas por questões religiosas, os europeus subiam por razões esportivas, daí usar o pioneirismo europeu como marco histórico do começo do montanhismo no mundo. O mesmo aconteceu no Brasil.
No ano de 1879, o país ainda estava sob regime da monarquia e havia um sentimento da elite em “ocidentalizar” o Brasil em detrimento dos costumes nativos e dos negros escravos. Assim, não há relatos sobre as ascensões indígenas às montanhas brasileiras, o que faz da experiência paranaense o relato mais antigo de uma expedição que culminou uma montanha por razões 100% montanhísticas. Por conta desta experiência, o pico mais alto da Serra do Marumbi chama-se Monte Olimpo, em homenagem a seu conquistador.
Na época da primeira escalada no Marumbi, o montanhismo encontrava-se muito popular na Europa, o que nos permite interpretar que esta foi uma motivação para que houvesse a conquista da montanha, outra, foi a própria exploração do terreno, já que um ano depois da conquista começaram as obras de construção da ferrovia Curitiba – Paranaguá.
O montanhismo no Marumbi se popularizou. Carmeliano se tornou um personagem popular em Morretes, cidade que fica aos pés da montanha. Ele mesmo retornou ao Marumbi dezenas de vezes, sempre levando consigo alguém importante. Conta-se que várias pessoas participaram das aventuras, até mesmo presidentes da Província, o que demonstra a popularidade e o significado cultural de subir montanhas. Carmeliano continuou escalando o Marumbi até o ano de 1902, o mesmo ano em que uma mulher escalou a montanha pela primeira vez.
Estas ascensões utilizavam técnicas rudimentares, muitas vezes priorizando apenas caminhos que proporcionasse uma subida que não necessitasse de mãos para escalar. Esta história mudou quando em 1912, um grupo liderado por um ferreiro de Teresópolis escalou o Dedo de Deus, montanha na Serra do Mar fluminense que era tida como inescalável na época.
Algumas expedições estrangeiras já haviam vindo ao Brasil tentar escalar a montanha, sem sucesso. Assim, José Teixeira Guimarães, Raul Carneiro e os irmãos Acácio, Alexandre e Américo Oliveira, utilizando ferramentas por eles próprio fabricadas e sem terem conhecimentos técnicos de montanhismo, conseguiram culminar o Dedo de Deus, feito que é considerado como a primeira escalada técnica realizada em território brasileiro.
Mais tarde, no ano de 1919, foi fundado no Rio de Janeiro o primeiro clube de montanhismo do país, o Centro Excursionista Brasileiro (CEB). Como montanha-símbolo foi escolhido o Dedo de Deus, que até hoje figura no centro do seu emblema. Em 1926, o clube lançou a primeira publicação destinada à divulgação do esporte – o Excursionista – depois transformada em boletim interno. O Rio de Janeiro e o Estado do Paraná se tornaram então os dois principais pólos do desenvolvimento da cultura do montanhismo no Brasil.
Enquanto que no Rio o montanhismo encontrava terreno fértil sobre a topografia favorável de suas serras e maciços montanhosos, o Paraná concentrava no Marumbi o centro das atenções para a atividade, principalmente por conta do acesso facilitado por causa da ferrovia.
A partir da década de 1920 começou um movimento de exploração do Marumbi que aos poucos foi resultando na conquista de todos os seus cumes: Gigante, Esfinge, Ponta do Tigre, Abrolhos e Torre dos Sinos. Após a descoberta das passagens entre os cumes, veio a época da escalada técnica, utilizando-se principalmente linhas naturais, como fendas e chaminés.
Teve muita importância no desenvolvimento destas conquistas, as técnicas trazidas de Europa pelo imigrante austríaco Erwin Gröger, que ao ensinar montanhismo, recebeu o apelido de “o professor”.
Outra pessoa entusiasta que contribuiu enormemente, não somente na conquista de montanhas no Marumbi, mas em toda a Serra do Mar, foi o filho de imigrantes alemão Rudolfo Stamm. Foi ele o maior fomentador do montanhismo das décadas de 1940 e 1950, numa época que escalar o Marumbi se tornou tão popular em Curitiba que o montanhismo no Paraná passou-se a chamar “Marumbinismo”. Foi neste contexto que nasceu o Circulo de Montanhistas de Curitiba, o CMC.
Rudolfo Stamm foi também o primeiro homem a escalar o Pico Paraná, montanha mais ao norte da Serra do Mar que despontava no horizonte de Curitiba e que atraiu a atenção do geógrafo alemão Reinhard Maack, pai da Geografia do Paraná.
Maack que tinha em seu curriculum uma vasta experiência como explorador e aventureiro tanto no Brasil, quanto na África, achou que aquela montanha ao norte poderia ser mais alta que o Olimpo, na época considerada a mais alta do Paraná. Ele empreendeu então uma expedição à montanha, sendo assessorado por Rudolfo Stamm e Alfred Mysing, que eram renomados marumbinistas e que foram os primeiros a galgar o cume da montanha que Maack descobriu ser a mais alta do Estado e do sul do Brasil.
Este capítulo evidencia também o grau de altruísmo dos praticantes de montanhismo, evidenciando também que a aventura foi motivação para o empreendimento de pesquisas científicas, num capítulo em que a história do montanhismo e da Geografia se misturaram, o que aconteceu diversas vezes, até mesmo com o príncipe alemão Alexander Von Humboldt, pai da Geografia moderna que escalou o Chimborazo no Equador, que no século XIX era tido como a montanha mais alta do mundo.
Para terem a ideia da importância de Maack no cenário geocientífico internacional, ele foi um dos precursores da teoria da Deriva Continental, muitos anos antes de seu idealizador oficial, o geólogo Alfred Wegener. Daí o significado das experiências de Maack nas montanhas do Paraná e da Namíbia para todo o cenário científico.
Uma nota digna de passagem foi como imigrantes ou filhos de imigrantes europeus e japoneses encontraram no montanhismo, uma forma de manifestação de sua cultura em solo brasileiro.
Antes da eclosão da segunda Guerra, os alemães que escalavam todos os fins de semana o Marumbi, cantavam durante a subida da Serra no domingo à noite canções nazistas, que ecoavam nos vagões escuros do trem. Apesar do cunho político das canções, estas pessoas faziam isso como um ato de valorização de sua cultura, pois não tinham nenhuma relação com o partido e nem o ideal nazista. Entretanto, com a entrada do Brasil na Guerra, muitos deles sofreram perseguição e o Marumbi se tornou um refúgio ainda maior para eles.
A cultura do montanhismo se sustenta sob dois pilares centrais: A aventura e a liberdade. Muitas vezes alguns destes pilares perderam a sustentação na história do Brasil, principalmente o segundo. Nestes casos, a montanha se tornou um ponto de fuga para os jovens.
Isso aconteceu, por exemplo, durante a ditadura militar de 1964 a 1985. Nesta época houve um grande avanço no montanhismo técnico, onde podemos dizer que houve a evolução da escalada contemporânea. Apesar de um movimento apolítico, o montanhismo se tornou mais popular devido a evocação de liberdade que ela emana.
Montanhas como o Marumbi, eram locais aonde a repressão não chegava e não era incomum as pessoas confundirem a liberdade com a libertinagem, ainda mais na época do sexo drogas e Rock and Roll.
Alguns episódios curiosos mostraram que as autoridades viam com desconfiança as andanças de alguns montanhistas. Foi o que aconteceu com Jean Pierre Von der Weid, que durante uma conquista no Espírito Santo suscitou a curiosidade de um delegado de polícia, que achou sua atividade subversiva e o exigiu que fosse à delegacia esclarecer o que era aquela tal “escalação”.
Mesmo depois do final da ditadura, o montanhismo ainda chama atenção das pessoas por seu apelo à liberdade, que, como já dito, muitas vezes se confundem com a libertinagem. É neste contexto que muitos jovens acabam subindo montanhas mais acessíveis para se drogar, beber e fazer besteiras. Isso deu origem nos tempos atuais aos chamados “Farofeiros”, que são pessoas que acabam por subir montanhas sem se identificarem com a cultura do montanhismo.
Mas afinal, a cultura do montanhismo é popular?
Como vimos, ela é mais antiga do que o futebol aqui no Brasil, mas não se dispersou da mesma maneira no país. Em alguns locais ela é bem mais recente e pouco reconhecida, em outros, já é considerado um patrimônio, como no Rio de Janeiro.
É possível que existam mais ou menos umas 10 mil pessoas que se identificam com a cultura do montanhismo no Brasil e pratiquem com freqüência. Muito pouco considerando que o Brasil tem mais de 180 milhões de habitantes.
Mas porque o montanhismo encontra dificuldade em se desenvolver? Eu acredito que é por conta de sua própria natureza. Subir montanhas não é uma coisa fácil e não são todas as pessoas que tem condições físicas e psicológicas para tal.
Outro problema é que não é em todo lugar que há montanhas próximas, apesar de que eu ache que no Brasil haja muitos locais favoráveis. É uma mentira que não existe montanha no país (quem afirma isso não conhece a geomorfologia do Brasil).
Acho também que outro problema que atrapalha o desenvolvimento do montanhismo é o atual momento histórico que a humanidade está enfrentando, um momento marcado pela crise ambiental.
Como sabem, as montanhas preservaram, de uma certa maneira, seus aspectos paisagístico originais, pois representavam uma dificuldade para o desenvolvimento econômico e conseqüentemente à ocupação.
Assim, as áreas montanhosas se tornaram os últimos espaços naturais em meio ao espaço transformado pela sociedade, o que aumenta ainda mais a necessidade de conservação destes locais.
O problema advém de um exagero na política de proteção à natureza, uma política que enxerga com maus olhos a presença do homem no meio natural, o que é um problema, pois diversas montanhas já são historicamente frequentadas pelo homem. Este uso da paisagem, inclusive, foi que resultou na cultura do montanhismo.
Proibições diretas e indiretas ameaçam a liberdade e principalmente a aventura do montanhismo, destruindo os dois pilares centrais desta cultura centenária.
Chegamos a um momento de um grande avanço nas técnicas, nos equipamentos e nas conquistas. Olhando para trás, o montanhismo de Carmeliano ou de Teixeira soa como engraçado e primitivo…
Apesar deste desenvolvimento, acho que ainda que é preciso amadurecimento dos montanhistas para eles percebam suas ações e reconheçam o montanhismo não apenas como ferramenta de promoção pessoal, focando não apenas na performance esportiva, mas também em sua atuação neste cenário de conflito.
São estes os motivos que me levam a levantar estas discussões com freqüência aqui no AltaMontanha ou no meu blog. Acredito que nossa ação atual irá definir o futuro do montanhismo como atividade de aventura, interação com a natureza e valorização da liberdade que herdamos, ou para uma atividade controlada, meramente contemplativa, cheia de regras, normas e proibições que podemos deixar para nossos filhos.
Qual será o futuro da cultura do montanhismo no Brasil?
Por Pedro Hauck
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