Após realizar em 1986 com o Xicão (Francisco Cruz Neto/Refúgio 5.13) a 2ª ascensão absoluta do Agudo da Cotia (1.525m), 37 anos após a conquista (Irmãos Curial & Imaguire, 1949), eu tive a confirmação de que era possível andar e alcançar qualquer cume da Serra do Mar do Paraná sem a necessidade de abrir trilhas na base do braço forte e do facão afiado.
Esse método havia sido utilizado na conquista do cume do Pico Paraná (Maack, Stamm & Mysing, 1941), do próprio cume do Pico do Ferraria (Stamm, Becker, Imaguire & Buecken, 1950) e de todos os demais cumes importantes da Serra. Essa era a alternativa viável da época, afinal eles eram “Os Pioneiros”. Mas, na 2ª metade dos anos 80, com a chegada da era de ouro do Montanhismo no Mundo, e o conceito de “pegada ambiental” já apontando no horizonte, me faziam acreditar que era possível fazer diferente.
Montanhista que sou nascido e criado nas densas florestas da Serra do Mar, eu buscava fazer evoluir meu montanhismo através do refinamento do meu senso de orientação, na redução do peso e quantidade de equipamentos utilizados, no preparo físico, e na habilidade de encontrar o caminho de volta apenas rastreando as pegadas que deixei.
Essa ética, digamos assim, também vinha carregada de outros valores. Pensava eu, naqueles anos, que ao deixar um mínimo de rastros e sinais da minha passagem, sem registros detalhados, como fotos e croquis das nossas aventuras nas montanhas, exceto pelos relatos orais para os companheiros do CPM – Clube Paranaense de Montanhismo – ou nas rodas de mate e porro no Anhangava e no Marumbi, eu estaria preservando para as futuras gerações de montanhistas o mesmo privilégio da aventura genuína, das dúvidas e da descoberta, das emoções e alegrias de uma 1ª ascensão. Pensava de forma romantizada, mas sincera, que aqueles que viessem depois deveriam desenvolver esse mesmo senso de pertencimento ao mundo das Montanhas Verdes e Azuis da Serra do Mar. Mal podia imaginar o que o futuro nos reservava com a localização via satélite, as imagens 3D do GoogleEarth, GOPro, apps de trilhas e as redes sociais.
Outono de 1988.
Dubois (Edson “Dubois” Struminski, 1962-2017) e eu olhávamos atentamente para o Ibitirati (1.846m), um dos colossos da Serra do Mar do sul do Brasil. Irmão siamês do Pico Paraná (1.877m), a face noroeste do Ibitirati se ergue mais de 1.000m acima do nosso acampamento. Desde o ponto em que nos encontrávamos às margens do rio Cotia, no anfiteatro formado pela base das montanhas menos frequentadas do Paraná daquela época – Caratuva (1.860m), Taipabuçu (1.730m), Ferraria (1.745m), Ibitirati e o próprio Pico Paraná – tínhamos ao nosso alcance um mundo de aventuras, era só escolher.
Porém, naquela ocasião, nosso objetivo já estava definido. Iniciar a conquista de uma nova via de escalada no Ibitirati, que até então contava com apenas uma via, a Mar de Caratuvas (5º VI D4 E4 600m) concluída em 1987 por um pequeno exército entre os melhores daquela época: Antônio Carlos Schmall Moreira (Maninho), Carlos Eduardo (Tozóide), Dálio Zippin Neto (Dalinho), Dino J. A. Camargo, Domingos Alvarez, Fábio Sceszniak (Segundas), Ivan O. V. Ribeiro, José Luiz Hartmann (Chiquinho), Júlio Nogueira (Julinho) e Ronaldo Franzen Junior (Nativo).
Isolados naquele mundão, ocupávamos nosso tempo da melhor forma possível, organizando nosso acampamento, cozinhando, dormindo horas a fio e jogando xadrez naqueles pequenos tabuleiros de madeira, dobráveis e com um pino embaixo de cada peça, e que eram a cada nova jogada, cuidadosamente colocada no pequeno orifício correspondente. Enfim, fazíamos tudo que fosse possível para o tempo passar mais rápido, enquanto o céu descarregava baldes de água sobre nossas cabeças. Sim, a chuva paranaense. Sem os populares aplicativos de previsão do tempo atuais, literalmente jogávamos com a sorte e a divina providência, que desta vez mandou chuva.
Como autêntico nativo curitibano, nunca reclamei da chuva e do céu cinzento, típicos da capital paranaense. Esse clima faz parte da realidade local, e como bem disse Alberto Caieiro “Um dia de chuva é tão belo quanto um dia de sol. Ambos existem; cada um como é”.
Mas quando o objetivo são paredes verticais de granito, a chuva se torna um obstáculo intransponível. Passamos quatro dias entocados. Quando a chuva dava uma trégua, fazíamos rápidas caminhadas ao redor do acampamento, para esticar as pernas e endireitar as costas. Por certo já sabíamos que não seria daquela vez que lograríamos o sonho de iniciar uma nova via no Ibitirati. Mas nossa energia era tanta que precisávamos de alguma forma queimar o combustível acumulado. E me lembro como se fosse hoje, quando provoquei meu amigo com a seguinte questão: “Dubois, vamos subir a crista do Ferraria!…tá aqui do lado, em 2 dias, subindo bem leve, a gente bate no cume e volta”. Eu apostava que ele não recusaria, pois como bom cabrito que era, certamente não iria recusar capim!
Dito e feito. Gastamos o final daquela tarde separando uns poucos equipamentos para dois dias com um bivaque: comidinhas, lanternas, um toldo para forrar o chão ou armar um teto, dois sacos de dormir e pouco mais. Fomos deitar com aquele friozinho na barriga, típico de quando uma verdadeira aventura se aproxima. Meus pensamentos buscavam na memória as imagens da crista do Ferraria, tantas vezes admirada do alto do Pico Paraná e na clássica foto do grande fotógrafo Helmuth Wagner, que estampava o pôster comemorativo do Tombamento da Serra do Mar do Paraná (1986). Não tínhamos ideia exata do desnível, mas confiávamos nas nossas pernas e na nossa vontade de subir. Além disso, a face leste do Ferraria apresenta em sua porção central, uma linha de crista que confiávamos iria nos orientar no caminho para o cume. Para voltar “bastava” seguir nossas próprias pegadas.
No dia seguinte bem cedo, antes do sol nascer, deixamos nosso acampamento para trás e imediatamente começamos a subir a encosta do Ferraria, que tem a base da sua face leste localizada exatamente sobre o famoso “Disco Porto”. E aqui é necessária uma explicação. O Disco Porto é na verdade uma área de depósito (bota-fora) das rochas extraídas pela abertura de um túnel de 14 km de extensão, e que conduz as águas do lago da represa Capivari, localizada no primeiro planalto paranaense, até as turbinas da Usina Parigot de Souza (1971), localizada no município de Antonina, litoral do Paraná. Parte das rochas foram retiradas por um túnel secundário, localizado exatamente embaixo do Pico Paraná, e depositadas na margem esquerda do rio Cotia. Na época da abertura da via Mar de Caratuvas, essa grande clareira no meio da floresta foi batizada de Disco Porto (referência a um possível estacionamento de discos voadores!) e o local passou a ser utilizado como base para as escaladas e expedições exploratórias dos anos 80 até os dias atuais.
Retomando a historia. O primeiro terço da subida foi por florestas altas e bem empinadas, nas quais avançamos com esforço, mas sem grandes dificuldades. Sabíamos que ao final dessa longa subida alcançaríamos a famosa crista, e que esta nos levaria direto até o que imaginamos seria o maior desafio: um degrau rochoso onde esperávamos encontrar alguma passagem “fácil” que pudéssemos escalar sem proteção, já que não levamos corda nem equipamentos de proteção. Como experimentado outras vezes, confirmamos que “de perto o bicho nunca é tão feio” e uma pequena garganta coberta de vegetação, um ”canyon” como anos depois registraria o Dubois em seu blog, nos permitiu vencer o degrau, forçando-nos a uma clássica escalada mista brasileira (rocha e vegetação) bem exposta e perigosa, mas tecnicamente não muito difícil. E assim, sem desviar do caminho, alcançamos a parte superior do Ferraria, formada por uma larga extensão de floresta nebulosa, típica destas altitudes nas montanhas do Paraná. Éramos os primeiros humanos a transitar naquela floresta primária, o que aumentava nosso senso de responsabilidade com sua conservação. Estávamos extasiados.
As horas passavam rápidas e a noite nos alcançou nesse ponto, ainda longe do cume. Escolhemos um terreno meio plano e ali bivacamos. A chuva que havia nos castigado por quatro dias, foi substituída por um dia nublado, e torcíamos para que assim continuasse. Amanheceu o dia e o caminho prometia ser longo. Apesar de não apresentar obstáculos significativos, a extensão deste trecho nos causou surpresa e levamos horas dentro da floresta. Uma dificuldade adicional era a orientação. A floresta nebulosa tem uma estrutura e aparência muito homogênea, o que dificultava nossa orientação. Lembro que mais de uma vez subi nessas arvoretas para conferir se estávamos no rumo certo. Para arrematar, o trecho final era bem íngreme e nos custou um esforço adicional de pelo menos 1 hora. Eram por volta das 3 da tarde quando nenhum ponto a nossa volta era mais alto do que nós. Chegamos ao cume do Ferraria pela Crista Leste. Nos abraçamos e comemoramos. Era nossa 1ª grande aventura juntos.
Infelizmente o tempo nublado não nos permitiu apreciar a paisagem, e como todo montanhista sabe, o cume é só a metade do caminho. Descer era imperativo. Sem comida para mais um dia, nos bolsos apenas alguns punhados de amendoim, tínhamos que chegar ao Disco Porto naquele mesmo dia, e para isso era urgente voltar; e pelo exato caminho pelo qual tínhamos subido.
Minha preocupação estava no “degrau” lá embaixo. Se não encontrássemos o ponto exato por onde subimos, o tal canyon, certamente iriamos ter problemas e um novo bivaque, sem água e sem comida seria inevitável. E isso me deixava bastante ansioso, especialmente em relação a nossa água, que aquela altura se resumia a pouco mais de 1 litro para nós dois!
Baixamos a toda velocidade. O dia ia se despedindo de nós quando alcançamos o degrau. Fareja daqui, fareja dali e achamos! Ali estavam as marcas da nossa passagem. Sem demora desescalamos aqueles trechos delicados de vegetação vertical e aceleramos montanha abaixo, com a noite nos envolvendo por completo. Passado esse que era o maior obstáculo, confiávamos que agora estávamos praticamente “em casa”. Puro otimismo esperançoso. O caminho para baixo nos exigiu horas e perdemos nosso rastro várias vezes. A noite trouxe ainda mais umidade, nossas roupas colavam no corpo. Nos revezávamos na dianteira. Sabíamos que era “só” descer, mas cada perdida representava alguns minutos valiosos corrigindo a direção e gastando energia sem progredir no rumo desejado. Nossas pernas já acusavam o esforço de mais de 12 horas sem descanso. Nossas mãos seguiam abrindo a vegetação à frente, agarrando qualquer coisa que alcançassem, fossem troncos, galhos ou cipós. Nossas lanternas Petzl com as “modernas” lâmpadas halógenas furavam a escuridão e apontavam o possível caminho. Quando apagassem de vez, teríamos que sentar e esperar o dia amanhecer.
Por volta das 10 da noite, exaustos, chegamos ao nosso acampamento. Era como se tivéssemos alcançado um novo cume. Nos abraçamos sem palavras. Ato contínuo, entramos na barraca e reviramos os sacos de comida atrás de tudo que não precisasse cozinhar. Menos de meia hora depois já estávamos dentro de nossos sacos de dormir. Era o final daquela aventura que marcaria de forma definitiva nossa amizade.
Revisitar essa história vivida com meu bom amigo Dubois, carrega certa nostalgia, mas também a lembrança de aventuras genuínas, daquelas de formar caráter. Nos anos seguintes, junto com o Dubois e o Júlio Nogueira, viveríamos a exemplo desta, outras escaladas memoráveis, como a Face Norte do Agudo da Cotia (1989) e a Face Norte do Siririca (1991), que ainda hoje aguardam a 1ª repetição. Melhor dizendo; uma segunda 1ª ascensão.
Faço este relato como contribuição ao registro histórico do montanhismo paranaense, e em respeito à memória do querido Dubois que, como poucos da sua época, vislumbrou que era possível fazer diferente, foi lá e fez.
Para quem deseja conhecer mais sobre o Dubois, recomendo a leitura do artigo escrito por ele em 2014, no qual ele faz um resumo dos seus 35 anos de montanhismo e cita a ascensão da Crista Leste do Ferraria.
P.S. Recentemente tomei conhecimento da abertura de uma trilha, na força do braço e do facão, pela Crista Leste do Ferraria, e concluída em agosto de 2011. Esta trilha foi, sem má fé, identificada como a 1ª ascensão da crista leste do Ferraria. Seguramente é a primeira “trilha” nesta face.

Crista Leste do Pico do Ferraria, com a linha percorrida conforme este relato. Foto: Caius Marcelus.


















5 Comentários
Um relato bem emocionante.
Muito legal, Tiaraju.
Se sente a emoção da conquista de um objetivo e dos desafios nas trilhas.
Obrigado Keiko. Aqueles tempos, a adolescência do meu Montanhismo foi muito especial…éramos como pintores de frente para a tela branca com milhões de possibilidades. Sou muito grato aos meus parceiros daquela época e aos pioneiros que me inspiraram a fazer diferente!
Pura essência do Montanhismo brasileiro
Adorei! Um relato emocionante onde podemos sentir a dificuldade e a aventura!!! Parabéns 👏👏👏👏
Lindo e emocionante relato. Lembro quando li no blog do DuBois um pedaço disso. Agora muito mais detalhado, dá um entendimento da imensidão do feito.
Obrigado por compartilhar.