Na noite de 18 de Julho de 2006, Roberta estava praticando direção com seu namorado Sean Leary dentro do Parque Nacional de Yosemite, uma Meca da escalada mundial. Ela estava aprendendo a dirigir, mas bateu o carro e desta forma banal veio a falecer precocemente aos 34 anos de idade.
Logo ela, a melhor escaladora do Brasil, que já havia encarado montanhas perigosíssimas. Ninguém acreditou que um simples acidente automobilístico pudesse tirar a vida de alguém tão acostumada com o risco e a aventura.
Dona de belíssimos olhos azuis, a curitibana Roberta já foi modelo fotográfico e também bailarina clássica. Justamente por ser bailarina, ela foi uma vez convidada a conhecer a escalada no Morro do Anhangava, um dos lugares mais frequentados pelos escaladores de Curitiba. Ela ficou maravilhada ao ver as pessoas escalando em uma perfeita sintonia entre o controle mental e a força física. Foi aí que sua história se encontrou com a história do montanhismo brasileiro, isso foi em 1993.
Com um talento para escalada que poucas pessoas possuem, Roberta começou na escalada esportiva e logo já ganhou destaque por que era muito melhor do que vários marmanjos, mas ela não parou por aí. Em 1993 mesmo, ela já viajou para vários parques nacionais argentinos e chilenos, daí talvez sua paixão por aventura e expedição. Com o tempo foi só juntar a técnica com as viagens para as grandes escaladas em montanhas remotas começarem a sair.
Em 1996 e 97 Roberta participou do COSMO, o Corpo de socorro em montanha, localizado no Marumbi, lendária montanha da Serra do Mar paranaense. Só os melhores e mais experientes escaladores do Estado participavam do COSMO, pois era muita responsabilidade lidar com os resgates. Como o Marumbi é a montanha das vias de aventura do Paraná, não demorou para ela enfrentar vias do gênero e até mais desafiadoras Brasil afora.
Assim, em 1998, ela escalou a “Decadance avec Elegance” localizada em Salinas – RJ, (V+, A0-7C, E2 em 850 metros) num tempo de apenas 4 horas, junto a Rosane Nicolau. No mesmo ano ela percorreu os principais pontos de escalada na Argentina e Chile num período de dois meses, foram eles: Los Gigantes, La Ola, Arenales, LosMogotes,Cerro Catedral, Cerro Bonete. E ainda fez um curso de escalada em Gelo com Sebastián de La Cruz no Cerro Tronador na Patagônia Argentina.
Em 1999 ela foi para El Chaltén escalar as torres de granitos mais famosas do mundo, realizou uma tentativa na agulha Mermoz(2.754m) por nova rota cara leste, junto a Ale Garcia,Sebastián Bortolin e Andres Zeggers. Realizou uma cordada feminina na agulha Guillaumet (2.593m) junto com a suíça Barbara Regli. Ficando a poucos metros do cume principal, pela rota Couluir Amy, face leste.
A Patagônia ficou marcada na vida de Roberta Nunes e um ano depois ela retorna a El Chatén com o seu projeto “Patagônia 2000”. Lá, ela escala a agulha Inominata (2.500m), pela rota angloamericana, com graduação (V+, 6C, A1), junto com o argentino Fefi. Realiza a primeira ascensão feminina brasileira da agulha Media Luna (1.923m) pela rota de Salvaterra, junto a Sebastian Bortolin com graduação (V+, 6C+, A2+). Ela escalou também o Cerro Solo (2.223m) pela rota normal finalizando com a tentativa da inóspita montanha San Lorenzo (3.720) pela rota Agostini, por terreno gelado, ficando a apenas duas horas do cume.
Em maio do mesmo ano ela percorreu por seis meses os principais pontos de escalada dos Estados Unidos, realizando um trabalho fotográfico e a repetindo centenas de rotas. Ela visitou diversos lugares famosos pela escalada: Zion, Indian Creeck, Turkkey Rock, Vaidawo, Ships Nose, Eldorado Cannyon, Vail, Butter Milks, Yosemite Valey, Tuolome Meadows, Rocky Mountains, The Book, Lampy Redge, Boulder Cannyon, Salt Lake, etc. Obteve destaque quando repetiu a rota Regular Route de dificuldade (5.10C, A2 ou 5.12B) na montanha Half Dome do Yosemite National Park,Califórnia, num tempo de apenas sete horas os 850 metros de verticalidade junto ao renomado escalador venezuelano Jose Pereyra. Também nesta viagem escalou difíceis cascatas em gelo em Vail e Aspen.
Em 2001 ela retorna a Bariloche, Argentina, para realizar um trabalho fotográfico junto a outro escalador Marcos Piffer para a importante marca italiana VIBRAM. Em abril, realiza a repetição de uma difícil big wall na Serra dos Orgãos no Rio de Janeiro, no pico do Garrafão pela rota Crazy Muzungus (VI, A2+, em 700m negativos) junto a Marius Bagnati, envolvendo três dias de empreitada.
Em agosto retorna aos Estados Unidos para escalar e preparar-se para seu novo projeto. Em um período de dois meses no Yosemite National Park, Califórnia repete inúmeras rotas em diferentes picos, destacando o El Captán, Sentinel Rock, Royal Arches, Rostrum, North Dome, Catedral Peak, Leanning Tower, atingindo uma dificuldade máxima de 5.12a na graduação americana.
Neste mesmo ano ela se tornou a primeira mulher a atravessar uma hight line (corda-bamba) de 10 metros de comprimento a 300 m do chão no pico Rostrum. Roberta gostava bastante de praticar slack line e tinha uma técnica e facilidade digna de um artista circense.
Em Janeiro de 2002 Roberta retorna à Patagônia para realizar um de seus maiores sonhos, escalar o Fitz Roy (3.341 metros) sendo a primeira mulher brasileira a tentar esta séria e comprometida escalada. Junto ao escalador venezuelano, José Pereyra, repete a rota Afanassief na cara nordeste, sendo a primeira repetição em vinte anos, com uma dificuldade (V+, 7B, A2+ em 1.300 metros de desnível vertical) envolvendo aproximação por gelo e misto atingindo o topo da torre Nordeste ficando a 300 metros do cume, completando 1.350 metros escalados em trinta horas sem parada (ida e volta) até ao campo base.
Repetiu cinco dias depois na mesma montanha, Fitz Roy, a clássica rota Franco Argentina (VI, 7B, A2+), onde ela e Jose tiveram a oportunidade de abrir uma variante de 500 metros por rocha e pouco gelo, seguindo depois os 700 metros de rota tradicional ficando apenas a vinte minutos de caminhada do cume principal, devido a uma grande tempestade de neve. Eles repetiram também a agulha Saint Exupery (2.548 metros) pela difícil rota Chiaro Di Luna (V+, 7C) em 850 metros de verticalidade num tempo de apenas nove horas.
Em 2003, Roberta recebeu uma proposta para experimentar as montanhas de altitude. Ela viajou para Mendoza na Argentina, onde fez uma aclimatação com a escalada da face frontal do Vallecitos (5.500m), uma escalada que foi muito comentada por lá. Depois, ela escalou o Aconcágua (6.962m) pela rota normal até ao cume, no dia 7 de janeiro sem problemas de aclimatação.
Em junho deste ano, ela foi para Espanha encontrar-se a convite da arogonesa Cecilia Buil para realizar o projeto de abrir uma nova via de escalada no maior acantilado do mundo, o Thumbnail, na Groenlândia. Foram quarenta dias de treinamento em escalada e caiaque na região dos Pirineus, pois aproximação para a parede seria feita por caiaques marinhos, 80 km.
Ao todo foram três meses para execução total do projeto. Roberta e Cecília abriram a rota Hidrofilia (VI, 1620m,7A,A2+, graduação francesa), no Maujit Gorgassasia, sendo a primeira ascensão humana deste cume e a maior rota aberta por mulheres na história do alpinismo mundial. O estilo utilizado foi o tradicional sem proteções fixas. A travessia foi outro fator extremo nesta aventura, percorreram os 80 km em três dias, atravessando a encostas e partes em mar aberto, talvez a maior aventura da vida de Roberta.
Em Janeiro de 2004, ela escala na região da cordilheira Chilena de Cochamó, junto a Karina Filgueiras, Dálio Zippin Neto e Maurício “Tonto” Clauzet, uma região quase selvagem com paredes que oscilam de 500 a 1000 metros de altura. Permaneceram vinte dias na região escalando na Pedra do Gorila e Trinidad Médio. Junto com Karina, realizou a primeira cordada feminina da região.
Em 2005 ela retornou pela quarta vez à Yosemite, desta vez para realizar uma rota de Grade VI (que necessitam de 3 a 5 dias para completá-la). Roberta, junto com Sean, entraram na Lurking Fear no El Capitán onde pegaram uma tempestade a 600 metros do chão. Mesmo com os contratempos, ela escalou a montanha em 15 horas e se tornou a primeira mulher sul-americana a escalar aquela parede de granito em menos de 24 horas.
Com esta grande experiência, Roberta resolveu voltar à Patagônia no ano seguinte para realizar uma primeira ascensão totalmente brasileira no Fitz Roy. Primeiro ela esteve no Frey em Bariloche, onde fez uma aclimatação escalando a Torre Principal pela via variante da Clemenzo, um 6b francês. Esta escalada virou um filme de Mauricio “Tonto” Clauzet que recentemente foi indicado no Festival de Filmes de Montanha de Squamish no Canadá.
Em Chaltén o planejamento não ocorreu como o previsto. O mal tempo deixou a montanha em más condições e o ataque ao Fitz Roy não foi bem sucedido. Com mais um ataque frustrado, Roberta e Sean resolvem escalar de uma só vez os picos Guillaumet (2.593m) e Mermoz (2.754m), que ficam no campo base de Piedra del Fraile. O desafio era atrativo, pois até então somente um casal norte-americano tinha conseguido o feito.
Assim, às 5 horas da manhã do dia 26, a dupla inicia a subida do Guillaumet para alcançar seu topo 3 horas depois. Entre a descida e o trajeto por três picos menores, foram mais cinco horas até a base do Mermoz, que foi vencido numa escalada de 2 horas somente. O retorno ao campo avançado de Piedras Negras se dá à noite e sob nevasca intensa. Com experiência de temporadas anteriores, eles enfrentam o frio, a escuridão e os perigos da montanha, e só vêem as covas às 10 horas da manhã seguinte. Roberta perdeu quatro quilos e foram necessários dois litros de isotônico para hidratá-la e repor os sais minerais. Já no campo base, os dois passam três dias descansando nas barracas.
De volta à El Chaltén, é hora de contabilizar os feitos da Expedição Patagônia. Roberta acabara de vencer o Guillaumet e o Mermoz numa escalada dupla. Resultados que foram comemorados com outros 40 alpinistas do mundo todo durante uma festa no acampamento. Depois de alguns dias para recolher os equipamentos nos campos base, a equipe inicia o retorno ao Brasil no dia 05 de março.
Esta foi a última viagem à Patagônia de Roberta Nunes, o lugar que ela mais gostava. Certa vez ela disse: “A Patagônia é mágica: para arriscar a vida tem que ser algo que te tira do lugar comum. É a oportunidade de viver uma fábula”.
Eu não conheci a Roberta Nunes nem nunca conversei com ela. Tive a chance em 2003 durante a Adventure Sports Fair em São Paulo, mas fiquei com vergonha em abordá-la para um papo. Entretanto várias vezes quase nos cruzamos na montanha.
A primeira vez foi em 2000, quando eu estava realizando a “Odisséia Austral”, uma viagem de 6 meses de carona que fiz pela Patagônia junto com o Maximo Kausch. Cheguei em El Chaltén somente em Maio, e mesmo depois de meses que ela havia partido, seu nome era o mais comentado na cidade.
Depois em 2003, eu estava indo para o Chile escalar o Tupungato junto com o Maximo. Quando passamos por Mendoza na Argentina, novamente a Roberta, desta vez com sua escalada no Vallecitos, era o assunto da vez. Três anos mais tarde, quando realizei minha primeira viagem de carro pela Argentina e fui à Bariloche escalar o Tronador, a Roberta tinha acabado de passar por lá e de novo quase nos encontramos.
Me mudei de São Paulo para Curitiba somente em 2007 e aqui conheci várias pessoas que eram intimas à ela. Vejo através destas pessoas como a Roberta era especial. E mesmo sem ter conhecido ela, sei que foi uma pessoa muito bacana, que é como são os montanhistas de verdade, que vivem a escalada e a aventura da maneira mais profunda e pura, sem se preocupar com o que os outros acham.
A morte da Roberta Nunes foi um grande golpe ao montanhismo brasileiro. Todos foram pegos de surpresa, foi uma perda irreparável! Infelizmente existem pouquíssimas mulheres que escalam no Brasil e dentre elas poucas que tenham o nível técnico e a coragem que ela tinha. Vai demorar até que surja alguém como ela.