Salathe Wall, Yosemite

0

2 dias de preparação, 1 dia içando haul bag, 4 noites na parede, 5 dias de escalada, 35 enfiadas de corda, 1.050 metros de escalada, 57 horas escalando, 45 litros de água, 1a vez no cume do El Capitan. Não é comercial do Master Card, mas não tem preço!


Yosemite é umas “Mecas” mundiais de escalada em rocha. Escalador do mundo inteiro vem para o “valley” para serem desafiados nas imensas paredes de granito. Dois de seus cartões postais são o Half-Dome e o El Capitan ou El Cap, como é carinhosamente conhecido pelos escaladores. Queríamos escalar o segundo, que é o maior monolito contínuo em granito do mundo. Meu parceiro: Joe Frost. Nosso objetivo: a via Salathe Wall, umas das mais acessíveis do EL Cap, mas também uma das mais longas (se não a mais longa), com mais de mil metros de escalada contínua.

Chegamos ao Vale e logo decidimos entrar no nosso objetivo. Não encontramos ninguém que já havia escalado a via, então nos baseamos no que o guia nos falou, e começamos as preparações.

Os dias de preparação

Decidimos não levar fogareiro e por isso tínhamos que cozinhar toda a comida antes de entrar na escalada. Foram mais ou menos umas 6 horas cozinhando jantares e cafés da manha para 5 dias. Macarrão, arroz, xapate, etc… Ufa! Fora isso, precisávamos decidir os equipamentos que íamos levar: duas cordas, sendo uma estática, quase 3 jogos de equipamento em móvel, mais equipamento de escalada em artificial. Uiii, que peso! E para finalizar, água! Precisávamos estabelecer quanto íamos levar para a parede. Inicialmente decidimos por 2.5 litros por pessoa por dia, 25 litros no total.

Para acompanhar toda essa preparação, muita cerveja. Obviamente, a idéia não foi a melhor, pois diminuiu nossa eficiência e acabamos indo dormir sem parte das coisas prontas, mas nos divertimos muito.

Dia 0

Acordamos atrasados, com uma leve dor de cabeça e nos pusemos a trabalhar. Os 30 minutos que achávamos que ia demorar se estenderam por mais de 2 horas. Resultado: colocamos o haul bag nas costas por volta de meio dia, com um calor infernal de quase 40o que lembrava o verão carioca.

O interessante de big wall é que ela começa a “nos colocar no nosso lugar” antes mesmo de entrarmos nela. A logística, os dias de preparação e arrumação de material já nos deixam desorientados e nos fazem baixar a crista e entender que não vai ser fácil.

A trilha é curta e logo achamos a base da via e uma surpresa: cordas fixas que nos levaram ao Platô do “Heart Ledges”, onde seria nosso primeiro bivaque. Essas cordas nos economizaram muito peso e logística e como não contávamos com elas, ficamos muito felizes.

Durante 4 horas enfrentamos o calor e a verticalidade do granito do El Cap para levar nossos víveres a Heart Ledges. Içar haul bag não é fácil, mas ganhamos os metros com eficiência e sem perceber o tempo passar, chegamos a nosso destino, onde deixamos as coisas e imediatamente nos pusemos a descer para onde tinha sombra.

O calor infernal nos fez repensar nossa quantidade de água e na volta para o carro encontramos com uns escaladores que tinham descido da parede. Eles falaram que tinham levado 6 litros por pessoa por dia. Nos entreolhamos apreensivos, pois isso significava 7 litros a mais por dia para a gente e agora sem a possibilidade de içar o peso no haul bag. Teríamos que levar esse peso extra com a gente, nas costas.

Pensamos em 57 mil opções e decidimos levar um extra de quase 4.5 por pessoa por dia, carregando para cima mais 19 litros (ou 19 quilos) de água.

Dia 01

Depois de uma noite na base da via, começamos a escalada propriamente dita. Nosso objetivo era chegar a nosso haul-bag, 11 enfiadas acima quase todas em livre. Logo na primeira enfiada decidimos que não íamos içar a mochila com a água por estar muito pesada, quem estava jumareando teria que carregá-la.

A escalada fluía tranquilamente, mas subimos com o calor infernal que drenava nossa energia na medida em que sugava nossa água. A mochila muito pesada não ajudava em nada e acabou nos deixando bem mais vagarosos do que queríamos.

Achamos uma sombra e ficamos ali quase uma hora esperando o sol baixar. Dali eram apenas duas enfiadas fáceis até o platô, ao qual chegamos por volta das 6 da tarde. Mas nem pensar em descansar ainda, pois decidi escalar a próxima enfiada para agilizar nosso dia seguinte. Num misto de escalada em livre e artificial subi os próximos 45 metros e desci já limpando a enfiada.

A primeira noite na via foi sensacional. O platô era incrível e a vista maravilhosa. Nosso jantar, merecido, foi macarrão com sei lá o que. Depois de comer, nos entregamos a sensação de êxtase de poder descansar depois de um lindo (e quente) dia de escalada. Bons sonhos…. Bivaque 5 estrelas.

Dia 02

O segundo dia amanheceu sem uma nuvem no céu, mais um dia quente na pedra. Mas a empolgação ainda era grande e logo nos pusemos a nos mover. Subi pela corda fixa e puxei o haul bag, agora muito mais pesado, para continuarmos nossa empreitada.

A próxima enfiada foi guiada pelo Joe e é uma das mais temidas de toda a escalada. Depois de um pêndulo, é necessário escalar um 5o grau em off width sem proteção nenhuma por uns 25 metros até chegar na parada. Confesso que fiquei feliz de não ir, até porque o bichinho voou pela fenda, parecia que estava em um lugar super fácil, mas quando vi a fenda vi que não era nada disso. Ele escalou muito eficientemente e “tocou pra cima” pois sabia que não tinha opção de proteger mesmo. Impressionante.

Dali, seguimos alternando algumas guiadas em livre e artificial, passando por “the ear”, uma chaminé apertada de 4o que foi guiada pelo Joe e coube a mim a pior parte: limpá-la numa mistura de jumareada, escalada com tênis, entalamento de corpo e peças na horizontal. Horrível!

Chegamos na primeira enfiada que seria toda em artificial e ela ainda tinha praticamente 50 metros. Parti com uma mistura de determinação e apreensão, sentimentos constantes em big walls. As proteções se demonstraram sólidas, mas trabalhosas. Ao passar um teto, me deparei com a parte que iria me dar mais trabalho, uma fenda bem fina, com algumas partes mais abertas, que seguia por mais uns 35 metros. Segui com cuidado e o tempo foi passando, fui vendo o sol descer e comecei a agilizar a escalada. Não parava para pensar muito, nem para testar as peças, queria chegar na parada antes de escurecer, pois já não tinha como puxar nada pela retinida e eu estava sem headlamp.

Foi trabalhoso, mas cheguei na parada, já escuro e extremamente desidratada. Trouxe o haulbag no limite das minhas forças, muitas vezes pensei em parar e descansar, mas sabia que precisava tirar energia da onde eu pudesse pois tínhamos que continuar seguindo até o nosso próximo bivaque. Ele não estava longe, apenas uma enfiada, mas não sabíamos se essa seria difícil ou longa, o que acabou não sendo nem uma nem outra.

Chegamos no nosso bivaque as 10:00 da noite, depois de 15 horas escalando, mortos, mas felizes. Comemos o que conseguimos, o que, apesar da fome, não foi muito e mergulhamos num sono profundo. Bivaque 4 estrelas.

Dia 03

Acordamos em um lugar fenomenal: a “alcove”: nosso bivaque que era uma mistura de platô, com totem, caverninha e alcova. Não nos demoramos muito e Joe começou a escalar por atrás do que seria um dos lugares mais loucos por qual já passei em escaladas, o El Cap Spire.

Nesse dia, escalamos durante 11 horas e chegamos ao próximo bivaque com luz e a necessidade de um descanso mais relaxado fez com que não continuássemos a escalar a próxima enfiada. Sabíamos que o próximo dia seria puxado e o mais longo, mas precisávamos ter um tempo para fazer “nada”. Mas fazer nada em uma big wall significa arrumar equipamento, comer, mexer no haul bag, preparar nossa cama, pensar na logística do dia seguinte e organizar mais equipamento. Obviamente, nosso fazer nada demorou mais de uma hora, mas uma hora tranquila, sem a pressão de ter que escalar e chegar no próximo bivaque. Isso ficaria pra amanhã. Bivaque 2 estrelas.

Dia 04

Acordamos ainda na escuridão para o dia que seria o mais trabalhoso, cheio de enfiadas longas em artificial, uma headwall e um mega teto para serem “vencidos”. O cansaço era grande, mas a determinação de continuar também o era. Big wall nos desafia inteiramente e sempre alcançamos o que pensamos ser nosso limite e nos surpreendemos ao ver que esse limite é extremamente “elástico” e, que na verdade, podemos mais do que pensamos. E era isso que estávamos testando, alcançando e provando. Continuávamos a subir, a escalar as paredes que ficavam cada vez mais verticais e mais complicadas e não pensávamos em outra coisa a não ser subir.

No limite do cansaço , do stress e da necessidade de trabalho em equipe, coisas simples se tornam complicadas e nos desafiam a viver em harmonia e parceria. Muitas vezes extrapolamos os limites e nos estressamos para no momento seguinte saber que precisamos um do outro e de trabalhar em conjunto para que a gente atinja nosso objetivo. Não é fácil e a convivência nessas situações e locais nos fazem ver que não alcançamos nada sozinhos.

Alternamos as enfiadas, eu com as enfiadas mais longas e complicadas e o Joe com as enfiadas mais curtas. Algumas das enfiadas dele acabaram não sendo tão simples como esperávamos e ele demorou bastante. Chegamos no teto que foi guiado pelo Joe e coube a mim a árdua tarefa de limpá-lo. Difícil é pouco para o que foi limpar esse teto enorme e com diversas passadas em horizontal, mas kmon. As enfiadas eram extremamente verticais e ligeiramente negativas, deixando as paradas complicadas e nada confortáveis.

A última enfiada do dia era mais um dos cruxs da via e coube a mim passá-lo à noite, na base da headlamp. Fiquei nervosa, apreensiva. Mas ao sair da parada e começar a escalar, o foco nas peças me fez quase esquecer a escuridão da noite e apenas pensava em ganhar os metros finais até o bivaque.

Esse bivaque, um 4 estrelas, era muito plano mas bem estreito e comprido e a noite foi impressionantemente confortável.

Dia 05

Acordamos sem pressa. Era nosso último dia na parede. A vontade de não fazer nada era enorme e foi difícil de motivar a se mover. Joe não se sentia muito bem e me ofereci para guiar tudo, mas ele não quis e guiou a primeira enfiada.

As próximas duas ficaram para eu guiar. Subir o El Cap era muito mais sonho dele do que meu e por isso deixei para ele a 35a e última enfiada da via.

Chegar no cume de uma via é indescritível, ainda mais de uma via que exige tudo e mais um pouco de você, que te desafia em todos os sentidos: psicológicos, físicos, comportamentais, etc.

Estávamos no cume do “capitão”, do El Cap, depois de muita, mas muita escalada. Rimos à toa, curtimos o visual, a sensação de estar ali, e nos pusemos a descer, pois a descida era desconhecida e longa…

Mas valeu! Muito aprendizado! Muita energia!
Kmon!

Kika Bradford escreve o Blog: Mundo de Escalada

Compartilhar

Deixe seu comentário