Segunda parte da retomada da exploração do PNI

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Pois bem, na primeira parte deste relato você leu que eu e Tácio Philip saímos de São Paulo no dia quatro de maio rumo ao Itatiaia, no primeiro dia ainda adiantamos a subida da Maromba quebrando o grande desnível em dois, bivacando na primeira noite a 1.950 metros de alitude. No segundo dia subimos a crista do Pico do Maromba, descendo pela crista oposta e, além disso, culminamos o Pico Cabeça de Leoa e o Pico Cara de Gorila, estabelecendo nosso segundo bivaque a 2.220 metros de altitude no vale que separa estas duas montanhas. Vamos seguir adiante daqui…

Como disse no final da parte 1, quando acordamos no terceiro dia, a iluminação do sol estava belíssima no maciço inteiro do Leoa. Pura beleza da natureza com pinceladas de nuvens cirrus pelo céu do planalto do Itatiaia. Tomamos nosso café com bastante preguiça, esperando os raios de sol chegarem até nosso lugar de pernoite, contamos os metros pra ser sincero, a manhã estava gelada.

 

Assim que o sol chegou começamos a arrumar tudo pensando na dureza que seria carregar água necessária pros dias subseqüentes, pois não sabíamos se haveria água adiante. Assim, saímos com mais de 13 litros de água (somados) rumo a parte mais isolada da borda leste do Itatiaia, que na verdade é até bem próxima da civilização, com cidades bem próximas como Itatiaia, Penedo e Resende, todas visíveis do alto do planalto.

Lentamente vencemos a vegetação alta de floresta de altitude na base dos Gorilas, margeando sempre o enorme charco pra não ter que molhar as botas. Chegando ao fundo do vale, cruzamos até o lado oposto subindo uma pequena elevação que nos levaria até o topo de um morro que fica de frente pro final do maciço do Leoa. Chegando no topo dessa elevação tivemos nossa primeira vista completa do rochoso do Gigante Deitado.

É uma montanha de configuração um pouco diferente da maioria das outras do Itatiaia, que têm formato de morro ou pico piramidal. O Gigante Deitado é uma crista isolada por vales profundos dos dois lados, que na ponta mais alta tem seu ponto culminante em blocos de rocha. A altitude nominal da montanha é de 2.190 metros, no Google Earth o máximo que se encontra é de 2.181 metros e como isso varia muito no GE, as vezes até sessenta metros, a montanha pode ter efetivamente de 2.121 metros a 2.241 metros, só pisando lá pra medir.

Bem, no topo deste morro composto de diversos blocos menores de rocha, sentamos e fizemos um lanche antes de prosseguir, já estávamos um pouco cansados por causa do peso, mas nada demais. Dali víamos totens marcando o caminho de descida e obviamente decidimos segui-los, já que o caminho sugerido por eles nos pareceu coerente, além de bater com o trek que o Tácio tinha de sua primeira tentativa de chegar lá.

Descemos contra a vegetação alta de 60 a 70 cms de altura, ainda fácil de vencer. Seguimos os totens até o lado oposto do morrinho ali na frente de onde descemos, menor do que o que estávamos. Chegando do outro lado havia um pequeno vale pra ser atravessado, não era nada demais e a trilha até estava bem batida, atravessamos esse pequeno vale chegando na penúltima crista antes do Gigante. Esta crista é separada pela crista do Gigante por uma pequena crista no meio intermediária que é relativamente fácil de ser vencida.

Mas não foi tão rápido que nos demos conta disso. Seguindo os totens encontramos na mesma linha três deles, distante uns dos outros cerca de 15 metros. Então o caminho correto a seguir não estava claro.

Sabíamos que recentemente pessoas passaram por ali, coisa de dez meses atrás, mas isso não ajudava muito já que a parte é pouquíssimo freqüentada, e as chuvas mal acabaram, isso significava tudo maior e mais alto em termos de mata. E de fato estava, terrível. Só pra andar entre esses totens tínhamos que lutar contra o mato de 1,6m a 1,80m de altura, vendo o próximo objetivo por centímetros de altura. Dureza.

Tentamos começar a descida pelo totem do meio, beco sem saída, ficava cada vez mais difícil à medida que perdíamos altitude. Metro a metro pior. Voltamos e tentamos pelo da esquerda, comecei a descer uma possível trilha plausível, passando por uma falha entre duas rochas que sugeria um degrau perfeito pra descer, mas chegando no fundo dos degraus, uns 4 metros verticais abaixo, o chão não me parecia confiável, parecia sumidouro coberto por raízes e musgo. Fiquei com receio de prosseguir e disse ao Tácio pra subirmos.

Voltamos e cogitamos descer pelo totem mais distante, o da direita, mas chegar até ele iria demandar mais luta contra mato e as horas estavam passando. Estávamos usando muito o cérebro pra uma missão de puro trabalho braçal. Infelizmente só nos demos conta disso tarde demais.

Bom, ficamos desanimados, já que na esquerda, depois do totem, o Tácio já havia tentado ano passado e chegou a um abismo perigoso. Mas que coisa…Parecia não haver passagem a não ser brigando com a mata densa pós-chuvas. Eu desanimei, perdi o tesão, fiquei frustrado pois sempre que me pedem ajuda eu dou, até faço mapeamento de acesso com pontos georreferenciados tudo bem didático, e mando pra quem me pede. Dessa vez pedi ajuda e a resposta que recebi foi negativa. Difícil de acreditar quando a pessoa está sempre com seu GPS, mas tudo bem, ninguém é obrigado a ajudar se não quer. Direito é direito.

Aborrecido eu desanimei, mas mesmo assim Tácio decidiu tentar descer por aquele ponto onde eu desisti desconfiado do solo, e eu tentaria seguir umas rochas que seguiam para a direita saindo deste mesmo ponto. Lá fomos nós, pra última tentativa do dia. Enquanto o Tácio progredia com certa facilidade dentro da mata, eu consegui galgar por cima de blocos consecutivos de rochas, com pequenas cavernas sob meus pés, mas trinta metros para a direita cheguei a um beco sem saída, a rocha termina em uma parede de uns sete ou oito metros de altura. Voltei.

Quando voltei fiquei sentado no topo da rocha onde ficam os degraus orientando o Tácio por gritos, enquanto ele tentava chegar no outro lado do pequeno vale. Ele chegou!

Fiquei feliz quando ele lá chegou, mas ele não. Quando vislumbrou o que nos aguardava do outro lado ficou sem ação, o último vale era o maior desafio, com pelo menos 200 metros de profundidade e bastante inclinado, com mata muito fechada. Roubada da grossa…Começou a voltar e quando chegou onde eu estava me contou perturbado o que vira.

Naquela hora eu desanimei. Decidi abortar e fui sincero com ele. Ponderamos por vinte ou vinte e cinco minutos observando as encostas da montanha e enxergando trilha onde não existia, tentando confortar o coração montanhista. Que desgraça. Mesmo derrotados neste dia, o Tácio me convenceu de decidimos tentar na próxima manhã cedo, e a condição dada por ele mesmo é que se não conseguíssemos culminar o Gigante neste dia, voltaríamos por onde viemos. Isto era uma coisa que nem eu nem ele queríamos. Significaria caminhar mais 15 kms pra voltar com mais desnível pra subida e descida, já cansados destes três dias.

Preparamos nosso bivaque em uma posição nada confortável, mas com vista panorâmica pro Gigante. Mais aliviados pela decisão de tentar no próximo dia relaxamos um pouco e descontraímos fotografando o final da tarde com luzes bonitas no lado oeste do Itatiaia, fotos de silhueta do maciço oposto com raios de sol ultrapassando seus pontos culminantes. Além disso, fizemos vídeos e umas fotos bem bonitas do próprio Gigante, que nos seduzia mais e mais com a beleza de suas encostas florestadas bem verdes, e as nuvens de serração subindo rapidamente pelos flancos da montanha. Quanta beleza…

Preparamos nossa janta, dessa vez cada um fez o seu cardápio, conversamos um pouco e quando o sono bateu, o Tácio dormiu e eu fiquei acordado pensando no próximo dia. Pensando “poxa, bem que poderíamos encontrar uma trilha semi-aberta até o outro lado”, e coisas do tipo. Dormir que é bom nada, acabou que fiquei em uma posição meio ruim, muito inclinado, e escorregava muito, um saco. Tive que colocar a mochila contra um arbusto de mato pra que eu a usasse como “parede” pra me sustentar. A princípio parecia ter melhorado, mas no decorrer da noite constatei que não adiantou foi nada, resultou pra mim em uma noite em que dormi só uma ou duas horas.

Durante o tempo que fiquei acordado, a lua iluminava forte nosso hotel mil e uma estrelas, e volta e meia, assim como na noite anterior, pequenas gotas de chuva caíam do céu, pequenas o suficiente pra não preocupar, durava dez minutos e depois o céu ficava estrelado novamente. Ventou muito esta noite, muito mesmo. Em alguns momentos o vento atingiu com certeza 70 km/h, mas felizmente estávamos protegidos por arbustos altos de mato aos lados e atrás de nós, então isso não atrapalhou em nada.

Durante um certo momento da noite, entre três e quatro da manhã, pequenos cristais de gelo se formaram do lado de fora de uma das garrafas d’água, mas durou pouco, uns quarenta minutos. Então penso que a mínima nesta noite, por este curto intervalo de tempo, foi abaixo de zero, provavelmente –0.5°C ou algo assim.

Contei os minutos até o sol nascer, o que foi uma eternidade. Um frio de rachar o côco, e com preguiça de novo fomos arrumando tudo e preparando as mochilas pra tentar avançar pela parte que nos pareceu mais plausível, a descida em degraus até o solo sinistro que o Tácio atravessou sem problemas na tarde anterior.

Começamos a luta. Descemos no caminho mais possível que vimos, chegamos no topo da crista oposta de onde dormimos, e vislumbramos a crista do gigante na nossa frente, a apenas 300 metros em linha reta. O cume do Gigante estava a só 680 metros em linha reta, incrivelmente perto!

Começamos a nos esgueirar pela mata densa, muito densa. Resolvemos medir quanto desceríamos em uma hora pra avaliar a situação, já que o progresso era muito lento por causa das mochilas agarrando em tudo. Quando a primeira hora acabou perguntei ao Tácio a altitude, e só tínhamos descido 30 metros verticais. Inacreditável, muito, muito difícil a descida. Mesmo assim continuamos tentando, e depois de mais quinze minutos o Tácio chegou a uma parte que era muito inclinada. Eu tentei pela lateral me esgueirando por debaixo de uns blocos de rocha cheia de musgo e com cavernas logo abaixo, olha o perigo! Cavernas de quatro, cinco, seis metros de profundidade. Nada…

Por qualquer lugar que tentávamos, enfrentávamos o mesmo problema, um ponto sem retorno: Isso significaria que até conseguiríamos descer aquilo, mas sem poder voltar. Ou seja, descer um trem daquele sem conseguir voltar, já pensou se a parte onde descermos não tiver saída também? Ficaríamos ilhados do mundo, sem possibilidade de auto-resgate ou resgate, porque não tínhamos pelo menos quinze metros de corda. Que desgraça…Depois de outras duas tentativas abortamos já com escoriações diversas, e subimos de volta pro nosso ponto de bivaque. Só avançamos 200 metros em trilha e gastamos um total de 3 horas, deu pra entender a dificuldade?

Nessa hora estávamos putos, e fizemos um “vídeo relato revolta” da nossa desistência, e começamos o longo retorno. Antes de partir, dispensamos 80% da água que tínhamos pra reduzir o peso de retorno, ficando somente com o necessário pra chegar à base do Maromba ainda naquele dia.

Voltamos os dois pequenos vales, subimos a encosta da elevação que fica de frente pro maciço do Leoa e ali paramos pra um meio almoço. Transferimos peso das mochilas pras barrigas durante meia hora, colocando o máximo de energia pra dentro pra cumprir a longa tarefa da volta que não seria fácil.

Tínhamos três opções, voltar exatamente pelo mesmo caminho, que seria longo demais pro nosso gosto e disposição, subir o maciço do Leoa pra descer na outra ponta já no local de bivaque, o que seria muito desnível, ou ir margeando o maciço do Leoa do mesmo lado em que estávamos, sem ganhar altitude, mas que significaria lutar contra mato de novo. Foi o que escolhemos.

Nossa, que roubada…O mesmo local onde o Tácio passara ano passado, e estava completamente fechado por causa da vegetação alta. Lutamos e lutamos muito contra o mato, teve locais em que o mato elefante era tão alto, mas tão alto (cerca de 2,5m!), que suas folhas se entrelaçavam e mesmo jogando o peso do corpo não dava pra passar, nossa energia já era pouca, quase nenhuma, então só podíamos fazer uma coisa, virar as costas e tentar no mato ao lado.

E assim lentamente fomos passando, avançando e as dificuldades foram reduzindo, nosso ânimo foi aumentando proporcionalmente igual ao desprendimento de energia, e chegou um momento em que conseguíamos simplesmente desviar das florestinhas, mas sempre com o cuidado de não descer mais cinco metros que fossem, pois estaríamos pisando no charco. Continuamos e continuamos, passamos por várias nascentes que descem do maciço do Leoa, muita água que a natureza produz ali! Mesmo exaustos, começamos a desfrutar novamente da caminhada, tamanha a beleza do lugar.

Finalmente conseguimos terminar de atravessar o vale, chegando à encosta do Leoa por onde fizemos o ataque ao cume, dali foi só contornar a montanha até a seqüência de pequenas cachoeiras que descem do Maromba, 300 metros verticais acima de nós. Escolhemos um local de bivaque literalmente exaustos, até mesmo sentados ou deitados, sem nenhum esforço físico, nossas pernas doíam. Que empreitada boa viu…

 

Nesse dia resolvi jantar duas vezes pra compensar a queima de energia e massa muscular, a sensação é que queimamos tanto que não importava a refeição, não iria repor o gasto. Então comi o máximo que pude, nos livrando de mais peso. A noite veio e com ela o frio, agora estávamos no bivaque mais alto de todos a 2.320 metros. Fomos dormir pensando na batalha que seria contra nossos corpos ascender novamente o Pico do maromba. Só, literalmente só 300 metros verticais suavemente distribuídos em 1,3kms de subida suave, mas com tanta dor pelo corpo inteiro, sofremos por antecipação…kkk

A manhã veio, muita fria como sempre, e as dores no corpo pareciam infinitamente piores, então envenenei o café da manhã com dois comprimidos de dorflex pra aliviar as dores, as coxas doíam mesmo sem fazer nada! Lentamente e sem pressa comemos e começamos a arrumar tudo pra recomeçar a caminhar. Mochilas nas costas partimos com sensação térmica de pelo menos 0°C, com muito vento e tempo nublado, parecia ruim de vez dessa vez.

Engraçado, a subida do Maromba foi muito mais tranqüila do que imaginamos, e em pouco mais de uma hora chegamos ao topo novamente desta grande montanha brasileira. Nem paramos pra descansar, só fiz uma foto pro Tácio e continuamos a descida pra longa crista até o Marombinha, cume norte da montanha. Foi bem cansativa a subida do Marombinha, última subida efetiva, passamos direto também e descemos até encontrar a trilha da travessia, ali sentamos pra um lanche antes de descer os 1.050 metros verticais finais até o carro.

Cerca de 2,5 horas depois chegamos ao carro, era 13:20h, abatidos, cansados e sedentos de comida pronta e não de ter que cozinhar comida de montanha. O Tácio tirou uma foto final do gps marcando o desnível total acumulado. Algo aconteceu que o somatório não ficou correto no final, dando uma diferença entre subida e descida. Considerando que subimos e descemos pelo mesmo lugar, deveria ser muito similar, mas deu 2.561 metros de subida e 3.260 metros de descida. Que loucura! Isso explica as dores. A km andada chegou a quase 34kms.

Durante a descida, por volta de 1.800 metros, cruzamos com dois funcionários da ICMBio subindo com um radinho de pilha. Nos perguntaram se vimos um casal e continuaram a subida frustrados com nossa resposta negativa. Havia um casal perdido pelas bandas do Maromba. Isso é ruim, tomara que 1: Tenham sido encontrados/ 2: Isso não reflita em proibição da trilha.

É meus caros, se alguém planeja conhecer a borda leste do PNI, precisa ter disposição pra galgar algumas das montanhas mais altas do Brasil, lá não é como a parte alta oeste onde o carro pára a 2.380 metros no Abrigo Rebouças. Na borda leste, seja qual for a rota que você escolhe pra subir, o desnível do primeiro dia será SEMPRE mais de 1.100 metros verticais.

Não conseguimos nosso objetivo principal de culminar o Pico do Gigante Deitado, escolhemos a rota mais longa e cansativa. Da próxima vez teremos que escolher a rota alternativa direta, a crista da Serrinha que leva diretamente pro pico.

Para ler a primeira parte deste relato acesse:
https://www.altamontanha.com/Colunas/3360/retomando-a-exploracao-do-pni–pt-1
Para ver mais fotos (Tácio), acesse www.tacio.com.br
Para ver mais fotos (Parofes), acesse: www.parofess.blogspot.com
Para ler o relato do Tácio, acesse: http://www.tacio.com.br/tacio/blog/2012-05-13T18-11-09_Pico_da_Maromba-_Leoa_e_Gorila—_mais_uma_vez.php

Abrazos!

Parofes

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Sobre o autor

Parofes, Paulo Roberto Felipe Schmidt (In Memorian) era nascido no Rio, mas morava em São Paulo desde 2007, Historiador por formação. Praticava montanhismo há 8 anos e sua predileção é por montanhas nacionais e montanhas de altitude pouco visitadas, remotas e de difícil acesso. A maior experiência é em montanhas de 5000 metros a 6000 metros nos andes atacameños, norte do Chile, cuja ascensão é realizada por trekking de altitude. Dentre as conquistas pessoais se destaca a primeira escalada brasileira ao vulcão Aucanquilcha de 6.176 metros e a primeira escalada brasileira em solitário do vulcão ativo San Pedro de 6.145 metros, próximo a vila de Ollague. Também se destaca a escalada do vulcão Licancabur de 5.920 metros e vulcão Sairecabur de 6000 metros. Parofes nos deixou no dia 10 de maio de 2014.

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