Alto Paraíso de Goiás é uma pequena cidade localizada aos pés da enorme muralha da Serra Geral do Paranã, repleta de pousadas caras, mas nenhum camping oficial. Mas sabendo perguntar sempre te passam o nome de alguém q ´acolhe´ mochileiros. Tal como sua vizinha São Jorge, a cidade tem forte tradição mística e serve de apoio à primeira. Conseqüentemente, tb esta repleta de comunidades alternativas, lojas c/ massagens terapêuticas, acupuntura e templos místicos. Enfim, um mix de S. Tomé das Letras, Capão, Trindade e Maromba no meio do país! Tds eles c/ um publico especifico, sejam turistas gringos, mas principalmente bichos-grilo e ripongas de Brasília ou Goiás, detentores de limitado poder aquisitivo. Era meu caso.
Daí q o jeito foi fazer base no quintal espaçoso de um tiozinho, no extremo sul da cidade, por meros R$5! O local tinha cara de ter sido realmente um camping há muito tempo, mas q estava em desuso. Decente, c/ gramado fofo, c/ banheiros limpos dispostos em cabines e cercado de pés-de-manga, o único porém era q a energia elétrica não funcionava. Mas e daí? Assim sendo, mal me estabeleci fui à cata de infos de ´como subir´ à Serra do Paranã, no limite leste da cidade. Infos, claro, q não consegui pq sempre tentam te enfiar um guia goela abaixo.
No entanto, da própria cidade já se avistam picadas subindo espigões de serra sucessivos ate o alto, daí bastava descobrir de onde estas partiam. Simples assim, dei uma rápida sondada nos arredores ate ter essa idéia e de já preparar as coisas p/ pernada no dia sgte, q seria apenas de reconhecimento dos arredores selvagens da região. O resto da tarde e inicio de noite fiquei no sossego: tomando cerveja, comendo espetinhos e curtindo o point dali, um tal de ´I Forró Dance´, na cia de duas missionárias austríacas q conhecera na farofada e nada recomendável São Jorge. E seu parque idem.
Pois bem, levantei de ressaca as 6hrs no ´camping´ sob muita neblina. De noite chovera horrores c/ direito a relâmpagos, deixando o gramado forrado de mangas e carambolas, q complementaram meu mirrado café-da-manhã e abasteceram o estoque de frutas na cargueira. Arrumei as coisas e me dirigi à avenida principal, caminhando decididamente ate os limites da cidade. Tomando quebrada ali, quebrada aqui, alcanço um trevo ate tomar à direita e, na seqüência, esquerda, e seguir ate o final da rua. Lá bastou acompanhar uma cerca à esquerda ate dar numa estrada de chão, já q o asfalto havia sido deixado atrás faz tempo.
Após cruzar uma ponte de madeira sob um rio bem cheio (onde abasteço o cantil), a estrada começa a subir ate ganhar altitude no aberto, sempre bordejando fazendas e cada vez + próximo dos paredões da serra. A estrada, por sua vez, é um lamaçal só devido à chuva e as maritacas parecem caçoar de mim nas varias vezes q quase deslizo de cara no chão! Assim como o arvoredo, q parece desejoso de me bombardear c/ mangas na cabeça ao menor sinal de vento forte!
No final de 4 intermináveis kms de estrada alcanço uma porteira. Daqui tomo um carreiro pedregoso saindo pela esquerda q sobe forte beirando uma cerca. Não tem erro, daqui se avista uma trilha subindo ao alto da serra! No entanto o topo da mesma esta totalmente encoberta, mas o vento faz q as nuvens vão se dissipando no decorrer da manhã. Aos poucos, Alto Paraíso vai ficando pequenina lá embaixo a medida q vou galgando degraus em meio ao capim, p/ depois subir íngreme e exaustivamente aos ziguezagues através de valas erodidas de muita terra e argila de tonalidade roxa e cor-de-rosa.
As 9hrs alcanço o 1º e amplo ombro de serra, onde alem de recuperar o fôlego e sentir a brisa soprar no rosto, dou uma avaliada na carta, na bússola e na direção a seguir. Daqui a picada bordeja a encosta de quartzito da Serra da Baliza p/ leste, beirando paredões de quase 70m de altura! Uma paisagem forrada de capim, alguma vegetação rasteira retorcida, mas principalmente pipocada de vistosas canelas-de-ema! Algumas pequenas arvores solitárias mostram sinais de queimada e tds os afloramentos rochosos ostentam liquens alaranjados, atestando a pureza total do ar da região.
E assim, por largos ziguezagues num carreiro pedregoso e repleto de cristais, vou lentamente ganhando altitude ate alcançar o alto dos 1400m da serra, quase 1 hora após o 1º descanso! A subida é demorada, porem compensa: daqui tem-se uma panorâmica de Alto Paraíso, esparramada quase 300m abaixo, de onde destoam algumas pitorescas casas em forma de oca, usadas por grupos esotéricos p/ fins meditativos, atraídos pelo misticismo q envolve os cristais que agora eu pisava aos montes. Alem disso, a paisagem vai alem da horizontalidade do Planalto Central, c/ as elevações da Serra dos Cobras, do Buracão e da Baleia, à oeste!
A partir daqui a trilha segue desimpedidamente p/ leste por um terreno q poderia ser chamado de ´cerrado de altitude´, um chapadão q nada mais é um vasto descampado de capim, salpicado de altos cupinzeiros, muitos charcos e alguns aglomerados de pequenas arvores, principalmente ipês amarelos destoando da retidão desta vasta planície. A beirada da trilha é ornada em td sua extensão de muitas velosias, margaridas, lírios vermelhos, sucupiras e um belo tipo nativo de sempre-viva q os locais chamam de ´chuveirinho´. Varias picadas oriundas de outras direções se entrecruzam, mas me mantenho naquela q leva sempre na direção leste/sudeste, s/ sair do caminho. Água tb não falta, pois há sempre algum filete d´água ou pequeno córrego rasgando a campina florida em direção norte, alem de alguns gdes caldeirões de água represadas pela chuva na terra q + parecem verdadeiras banheiras!
Após um tempão caminhando neste ritmo inabalável, a picada cai noutra + batida (seria a oficial?) vinda do norte p/ depois sair do aberto e adentrar num aglomerado maior de mata, sentido sudeste. Esbarro, enfim, num belo rio cujas águas escuras já ouvia marulhando há algum tempo, q é a própria nascente e cabeceira do Rio Macacão! Daqui bastou acompanhar o dito cujo, fosse pela trilha, pulando pedras pelo leito do rio ou em meio aos afloramentos rochosos do caminho, enqto o mesmo corria em vários níveis serra abaixo, formando degraus lajeados, varias cachus e poços. Aqui o mato estava relativamente alto e a trilha já não era tão evidente, havendo necessidade de farejá-la nalguns trechos, mas em tese o sentido era sempre beirando o rio.
A esta altura o tempo havia limpado completamente e um sol de fritar miolos dominava, radiante, lá no alto! Foi ai q comecei a ouvir o rugido estrondoso aumentando à medida q avançava. A cachu estava próxima! Foi qdo a mata hostil e o terreno acidentado , impossibilitaram continuar pelo rio, e a discreta picada me afastou do mesmo tocando p/ esquerda ate dar numa espécie de mirante sobre gdes lajotas, após um tempinho. Foi ali q pude apreciar a tão comentada Cachu do Sertão Zen, ao exato meio-dia! Uma enorme e bela queda d´água despencando de quase 150m de altura!! Dessa ´arquibancada rochosa´ privilegiada tb se descortina um belo visu panorâmico do Vale do Rio Macaco, um verdejante e úmido vale rasgando à leste os paredões de quartzito da chapada. O Rio Macaco serpenteia td esta região, passa pela Aldeia Arco-Íris (uma comunidade alternativa de angolanos), e continua serra abaixo atravessando um belo conjunto de cachus e algumas comunidades calungas, ate dar na Bacia do Tocantins.
Pois bem, daqui veio a duvida: descia o vale ou retornava? Vasculhei os arredores dos paredões da cachu atrás de vestígios de alguma picada, s/ sucesso. Pela trilha q tb chegara ate ali tb não havia muito o q dizer, pq ela logo fechava e se perdia em voçorocas de mata arbustiva espinhenta em terreno bem íngreme, quase vertical. Bem q haviam me alertado q descer ao vale era algo difícil pq o mato crescia facilmente, ocultando qq vestígio de trilha. E varar-mato sozinho não era recomendável, pq pode ser ate perigoso nessas condições.
Como chegar ate ali já tava de bom tamanho, voltei alguns minutos na trilha ate reencontrar o rio e lá fiquei curtindo as águas escuras de um poção c/ cachu apenas pra me refrescar, alem de lavar muita roupa suja q trazia na mochila. Comi algo e fiquei lagarteando nos lajedos, deixando o sol bater forte na pele, tentando sentir a vibração dos cristais q permeiam tds as rochas daqui. Sozinho ali acabei pegando no sono, claro, sob protesto de um gavião. Na seqüência, busquei lugar p/ pernoite. Enfim, ali rente o rio era impossível pq, alem do terreno íngreme e acidentado, o chão tava forrado de rocha irregular e matão alto. O único espaço disponível era na trilha, q por sua vez era estreita e repleta de brejos. Sem chance tb. Como pernoitar na cidade tava fora de cogitação, o jeito foi retornar 1 hora na trilha ate a vasta campina outra vez e lá ficar. E foi o q fiz.
As 14:30hrs montava minha barraca confortavelmente no descampado, à sombra de um belo ipê solitário e do lado de uma toca de tatu naquele enorme chapadão! O resto da tarde foi reservado ao mais improdutivo, porem justificado ócio! Descanso, leitura, comer besteira ou apenas contemplação da paisagem. Como o sol e o calor daquela tarde eram quase palpáveis e permanecer dentro da barraca era impossível, o jeito foi explorar os arredores da beirada norte da Serra do Paranã, sentir a brisa no rosto e tentar adivinhar de onde saia a trilha ´oficial´ do Sertão Zen, na estrada q leva para Morrão. Alem disso daqui tem-se uma panorâmica do Moinho e Pouso Alto, o pto mais alto da chapada.
Qdo o sol pousou lentamente atrás do horizonte, as 19:30, noutro belo espetáculo merecedor de vários cliques, os pernilongos foram à loucura! Os bichinhos tinham o tamanho avantajado de helicópteros e me forçaram, alem de besuntar de repelente, a me enfiar em definitivo na barraca! Foi ai q o cansaço acumulado pegou de vez e cai no sono dos justos, numa noite q foi extremamente agradável, fresca e coalhada de estrelas. De madrugada, ao som do coaxar dos sapos nos brejos próximos, levantei apenas p/ apreciar o belo luar e qual foi a minha surpresa de ver q a campina ao redor parecia estar iluminada naturalmente! O chão cristalizado, fosse da trilha ou afloramentos rochosos próximos, refletiam o luar de forma tal qual estilhaços de vidro, conferindo à paisagem noturna um aspecto pitoresco e surreal! Uma noite cristalizada, literalmente!
Na manhã sgte levantei a tempo de apreciar a deslumbrante alvorada q surgiu emoldurada na entrada da minha barraca, as 6:30, ao mesmo tempo em q tomava meu desjejum. Uma hora depois arrumava minhas coisas e zarpava rumo Alto Paraíso, agora tendo o sol nas costas e um forte vento soprando do norte. O caminho de volta me pareceu mais rápido q o do dia anterior, e dessa forma, as 9:30hrs, já me vejo bordejando os paredões da Serra da Baliza, onde tenho um breve descanso. Após a ´escadaria´ de argila roxa, as 10:30hrs alcanço a base do morrão ate dar na estrada de terra novamente. O sol escaldante do meio-dia se fez sentir e não pensei duas vezes em cair num riachinho no caminho. Assim, as 14hrs já estava de volta à cidade, onde parei numa praçinha p/ ´almoçar´ as pencas de mangas q havia coletado no caminho, alem de planejar meu próximo destino pelas redondezas.
Enfim, palmilhar o Sertão Zen é um ótimo programa independente q foge da rigidez e das restrições q o Pq Nacional impõem, q pode ser esticado p/ outros locais de igual interesse nos arredores. Tão interessante e bonito qto seu vizinho ilustre e mais notório, o local não poderia ter nome + apropriado. Sertão Zen. O nome é recente e faz parte do folclore orientalista q influenciou Alto Paraíso nos anos 80, atraindo os esotéricos atrás de enriquecimento espiritual. Td a ver mesmo, pq é de fato um local q transmite paz e tranqüilidade, onde a energia dos cristais sob (ou sobre) o solo é quase palpável. Ideal p/ meditar e contemplar da natureza selvagem ao redor. Em suma, um local q tem td aquilo q motiva a , ´peregrinação´ de todo andarilho q se preze, seja esse ´quê´ de cunho espiritual ou não.
Jorge Soto
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