Submundo das Sombras

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Deito-me sobre o isolante de 6mm, as pernas dentro da mochila, saco de dormir de fleece fininho, tudo dentro de um saco de bivaque, que é um saco impermeável que protege da chuva e do sereno da noite. Por sorte não estava muito frio ali naquele platô úmido, todo irregular, a mais de 300 metros do chão. Havia passado o dia me equilibrando em pequenas saliências da rocha, às quais denominamos agarras, e muitas estavam molhadas, o que me fez sentir exausto. Pensei que pelo cansaço teria uma boa noite de descanso, mas não foi o que aconteceu.

Pizza, vinho e alegria. Era uma sexta-feira à noite (23/07/2022), pesamos as mochilas na casa do Covatti, em Curitiba, com aquela alegria tensa que antecede uma expedição. Mais ou menos 25 kg para cada um, estávamos em quatro: eu, Valdesir Machado, Willian Lacerda e Daniel Covatti. Nosso sonho estava dentro das mochilas: abrir uma via na inexplorada face sul do Pico do Paraná. Ali tinha tudo: equipamentos para escalada, mantimentos, itens de cozinha, abrigo para nos protegermos do frio. Ahhh, essa autonomia que me fascina. Entraríamos na natureza selvagem só com as mochilas nas costas, mas com grandes objetivos.

Willian Lacerda – Daniel Covatti – Valdesir Machado – Ed Padilha

Iniciamos cedinho a caminhada para não pegar o tráfego pesado da trilha do Pico do Paraná, afinal era um sábado e nos finais de semana a montanha transborda de gente. Fomos devagar, pois estávamos carregados e levamos 4 horas até o abrigo 2, dali pra frente que seria complicado. Pegamos a trilha em direção aos Camelos e já viramos à esquerda, rumo ao buraco, ou seja, o vale que desce em direção ao Tupipiá. O caminho não é muito óbvio, mas tínhamos conseguido identificar alguns pontos de referência numa incursão umas semanas antes. Quando atingimos o fundo do vale não conseguíamos achar a passagem para acessar a base da parede, a qual fica no vale formado entre a face sul do Pico do Paraná e o Tupipiá. Fomos ziguezagueando até encontrarmos vestígios da nossa passagem por ali e seguimos pela interminável subida até a base da parede.

Trilha que vai para os Camelos – Foto Ed Padilha

Que parede gigante e intrigante vendo-a de baixo. Vendo as mil opções por onde nossa rota se desenvolveria, ficamos anestesiados. Logo dividimos a equipe: dois a começar a escalada e dois a arrumar alguns locais para dormirmos. Enquanto Val e Covatti se armavam, eu e Willian tentávamos achar alguns lugares que não fossem barro ou um amontoado de pedras. Por fim o Willian colocou uns sacos plásticos sobre o barro eu coloquei folhas secas sobre as pedras. Pronto, já tínhamos cama e um esticão e meio de via. A noite veio e com ela o sono merecido, menos para o Val, que começou a passar mal, com vômito e diarreia. Pensamos que teríamos de abortar a missão. Ele passou muito mal a noite inteira e no outro dia amanheceu destruído.

Paisagem vista da base da via – Foto Ed Padilha

Início da via – Foto Ed Padilha

Acesso-via-Face Sul PP- dia 1

Acordamos, discutimos se continuaríamos ou abandonaríamos e o Val pediu para ficar descansando enquanto esticávamos todas as cordas. Subimos eu e Willian e fomos vencendo metro a metro a parede. Peguei um esticão bem legal para conquistar, no qual havia uma fenda no meio da placa de granito. Foi mágico. Depois o Covatti uniu-se a nós e abriu mais uma que chegava quase até o grande platô de mato, onde queríamos bivacar no outro dia, se o Val melhorasse, claro. Por falar nele, o coitado passou o dia deitado nos observando. Lá pelo final da tarde já estava dando palpites sobre por onde devíamos seguir, isso era um bom sinal 🙂

Esticão 3 – Foto Ed Padilha

Willian guiando o quarto esticão e Covatti dando segurança – Foto Ed Padilha

Acesso-via-Face Sul PP- dia 2

No terceiro dia, o Val estava mais ou menos recuperado e decidimos subir com tudo, até porque não tínhamos mais cordas para fixar, já estávamos com 250 metros de via. Fomos subindo pelas cordas fixas e aí guiei um esticão de trepa-mato até umas árvores, desviando de uma parede mais vertical com mato ralo. Deste ponto segui para cima e depois para a esquerda, esticando uns 70 metros pela vegetação, até atingir o topo do grande platô. A visão inicial era de que uma parte da vegetação acima do platô havia despencado, acima disso a parede era bonita e vertical e parecia que tinha muitas agarras, o que era ótimo.

Willian jumareando com a carga – Foto Ed Padilha

Platozão a 300 metros de altura – Foto Ed Padilha

Covatti no quinto esticão – Foto Ed Padilha

Acesso-via-Face Sul PP- dia 3

Trouxemos toda a carga e eu e o Willian continuamos a abertura da via. Val em plena recuperação e Covatti ficaram no platô tentando encontrar algum lugar mais plano para passarmos a noite. O primeiro esticão acima desse grande platô era curto e trepa-mato, atingindo uma boa plataforma onde vi que poderia iniciar o próximo esticão já por rocha limpa. Esta seção de rocha era vertical e infelizmente estava úmida, dando bastante trabalho para finalizar o trecho com o domínio de um platô de mato. Daí pra frente o parceiro Willian pegou a “punta caliente” da corda e seguiu por mais um esticão bonito, mesclando proteções fixas e móveis. O final do dia estava espetacular, com mar de nuvens, mas com a mesma luz de sempre. Como não bate sol nesta parede em nenhum momento do dia, parecia que sempre era 4 da tarde, fosse pela manhã ou à tarde, já estava sentindo saudades do astro rei.

Terminamos o serviço, organizamos todos os equipamentos, porque o “gerente” Val já estava ativo, dando palpites de onde deveria ser a parada do esticão. Bom, pelo menos estava melhor do piriri. Chegamos no platô com as últimas luzes, comi uns pedaços de queijo e depois um bom e velho miojo. Deitei no chão torto e úmido e meu estômago começou uma revolução, logo em seguida o Covatti começou a passar mal e depois foi minha vez. Neste momento, começamos achar que a água que recolhemos da base da via estava contaminada. No outro dia amanheci bem meia boca, sem poder comer e logo o Willian começou a passar mal também. Por sorte o Val estava bem e assumiu a ponta da corda. Foi seguindo pela linha de agarras e progredindo lentamente pela parede vertical, alguns trechos teve de abrir em artificial, mas muitos foram possíveis de serem escalados em livre, não sem nos deixar tensos, pois tínhamos de economizar as baterias que já estavam acabando.

Val guiando no quarto dia de parede – Foto Ed Padilha

Esticões verticais no final da via – Foto Ed Padilha

Val guiava e nós subíamos com a carga. Em um momento, fui ajeitar a bandana e deixei meu capacete cair, acho que já estava meio amortecido de passar o dia todo sem comer e tendo de jumarear (ascender pelas cordas) com carga pelas paredes extremamente verticais. Val cansou de tanto primeirear, Covatti guiou mais uma, já estava sentindo que nos aproximávamos do cume, Willian guiou um trecho fácil, já era hora da parede mudar sua inclinação, e gritou que estava no topo!!!!! Ufa, bateu uma chapeleta com o que restou de bateria na última bateria da furadeira e nos deu segurança. A via acabou quase no cume do Pico do Paraná, para quem conhece a trilha, naquele ponto em que ela faz uma curva para a esquerda para chegar ao topo.

Na expectativa que chegar ao topo – Foto Ed Padilha

Subindo para o topo – Foto Ed Padilha

Era dia 26/07/2022 e estávamos novamente no sol!!! Foi incrível, como sentíamos falta da luz. Em volta, mar de nuvens 360 graus!!! Toquei uns Bob Dylan com meu ukulele, organizamos toda a parafernália e logo iniciamos a descida, por mais que eu preferiria dormir mais uma noite na montanha, era terça-feira, ela estava quase vazia e eu estava um trapo. Mas o mundo capitalista exigia que descêssemos logo e assim foi, infelizmente. Na descida o Covatti ainda nos deu um susto quando caiu de uma pedra e bateu as costas, por sorte não se machucou gravemente e conseguiu se arrastar pela trilha até o carro.

Cume!!!

Acesso-via-Face Sul PP- dia 4

Que aventura, que vibe, que via incrível e que parede tenebrosa! Interessante o fato dela ficar intocada por tanto tempo. Acredito que seja pelo fato de estar numa face escura e realmente, olhando da trilha, dá medo de entrar naquele vale e escalar aquela parede imponente. Só tivemos sucesso porque nos organizamos bem e formamos uma equipe bem coesa e determinada. Valeu, parceiros!!!!

Croqui Submundo das Sombras 2022-11-24 – Final

Face Sul do Pico Paraná – foto: Lucas Pontes

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Sobre o autor

Edemilson Padilha é sócio fundador da Conquista Montanhismo, um dos principais da fabricantes de equipamentos de montanha do Brasil, localizado em Campo Largo PR. Conhecido e reconhecido também por suas Conquistas de vias de escaladas que estão entre as mais comprometedoras do país.

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