Travessia Alpha-Crucis, dia 9

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06 de Julho de 2012, sexta-feira 5:30h – Acordamos do sono profundo, no que consideramos ter sido o melhor bivaque da travessia. Chão fofo e protegido de vento, resultou numa noite de sono espetacular, e agora, finalmente chegara o grande dia de finalizar nossa peregrinação pelas montanhas.

Leia a oitava parte da Alfa Crucis

Iniciamos o procedimento padrão de partida. Decidi que era hora de vestir o traje de guerra. Finalmente a calça jeans e a camiseta de manga comprida iriam provar seu valor, e mostrar pra que vieram. Ainda estava totalmente escuro quando partimos para o cume do Pelado, já bem próximo de nós. Estava frio e ventando quando tocamos a asa do avião sinistrado no Bandeirantes, mas que alguns pedaços acabaram sendo levados até ali.

Nosso objetivo agora era contemplar o sol nascente antes de partir com tudo rasgando a segunda pior quiçaça da travessia (a pior sem duvida foi aquela entre Ferreiro e Ferraria). A diferença é que agora se prolongaria por todo o dia. Porém não íamos perder nenhum tempo abrindo, e apenas passaríamos com o corpo, se esquivando da quiçaça medonha e impiedosa.
Logo o horizonte começa a ficar dourado a nordeste, e cria um amplo espectro de cores até se misturar com o céu noturno ainda crivado de estrelas. Sem lugar apropriado para fixar o adesivo da 33ª montanha, decidimos colar ali mesmo nos destroços do avião. Exatamente às 7:02, a luz brilhante e majestosa desponta nos contornos do Angelo. Era o sinal que esperávamos para completar os últimos cinco minutos que faltavam até cume, e de lá, dar inicio a jornada final. Ainda permanecemos por um quarto de hora no topo, analisando cuidadosamente o trajeto até o Espinhento.
Ali naquele cume, o último resquício de picada ficaria para trás. Agora era terreno 99% selvagem pelo menos até o Sem nome. Sem medo nem preguiça, mergulhamos fundo na floresta. Logo abaixo do cume, chegamos a um platô de campos. Logo abaixo o que vem a seguir, são algumas paredes com mais de setenta graus de inclinação e aproximadamente dez metros de altura. A única forma de descer, é usando trepa-mato como apoio, e dose extra de cuidado. Na base, segue contornando pela direita até encontrar a crista, que leva a outro paredão do mesmo estilo. Vencido os dois obstáculos, só resta procurar uma mata mais transitável, e menos cheia de gretas pra chegar ao fundo do vale. Lá há um rio subterrâneo, mas que poderia haver água para saciar nossa terrível sede. Pra nosso desespero, estava completamente seco.
Seguimos pelo terreno totalmente amarrotado até finalmente encontrar o vale que subia levando aos campos do Espinhento. Nesta subida, encontramos um filete de água escorrendo pelas pedras. Foi à salvação! Ali fizemos uma pausa pro café da manhã, que consistia em devorar alguns dos últimos itens que ainda sobrava do miserável e manjado cardápio, acompanhado de suco em pó.
Lembrei que quando desci esse vale, era sujo, e cheio de esqueletos podres de arvores de bambus, o que tornava desagradável a progressão. Sugeri que escapássemos disso subindo diretamente a encosta esquerda do vale, com a esperança de alcançar mais rapidamente e sem tanto sofrimento os campos. Os primeiro dez minutos foram horríveis, mas depois, piorou muito. A expectativa de que logo à frente estariam os campos, nos impediu de voltar e fazer por dentro do vale, o que seria o mais certo. Acabamos se embrenhando num inferno de caraguatás, cipós, espinhos, e tudo mais que pudesse causar danos corporais, e ser irritante ao extremo. Não demorou muito pra mim me estressar, e iniciar as tradicionais seções de xingamentos. Levamos ao menos uma hora nesse tormento, até finalmente pisar às 9:50h nos campos dessa montanha que faz jus ao nome.
Comíamos um chocolate enquanto notamos que o tempo já não estava mais o mesmo. Agora além do gelado vento sul, ainda havia o avanço de muitas nuvens. Uns dias antes, enquanto ainda estávamos na Farinha Seca, recebemos um SMS do Sexta. Este sugeria que saíssemos da travessia antes do final de semana, porque o bicho ia pegar com a chegada duma grande frente fria. Mas já estávamos ali na 34ª montanha, o Espinhento, e não eram nem dez horas ainda, e isso era muito animador. Não tínhamos duvidas que até o fim do dia, estaríamos comemorando o sucesso na fazenda aos pés do Canal. Porém o que havia logo a frente, não podia ser chamado de animador. É nesta parte entre Espinhento e Chapéuzinho, que está o pior trecho da Alfa Omega. Um terreno medonho, confuso, e repleto de gretas sombrias, onde um simples descuido pode ser fatal. Muitas destas gretas, poderia ser a sepultura pra quem nelas cair.
Seguimos com todo cuidado, acompanhados pelo vento forte que balançava toda a antiga floresta. Avançamos lentamente por entre esse labirinto sem fim de grandes rochas até bem próximo ao cume, e então procuramos do outro lado a continuação que nos levaria aos Alvoradas. Um novo sobe-desce de pequenas dobras topográficas se sucedeu, e sempre acreditávamos que o fundo de cada um desses vales, seria o último, o que levou ainda um bom tempo para acontecer.
Finalmente subindo por um leito seco, percebemos que ali era o vale final entre Alvorada 1 e 2. O 1 não é visitado porque fica deslocado do traçado, mais a direita. Sendo assim, chega-se de cara ao Alvorada 2. Havia um rasto logo depois que saímos do leito seco, o que permitiu um progresso rápido até os campos, onde o vento fazia a festa com rajadas que quase nos jogavam ao chão. Foi nessas condições que à 12:50h atingimos o primeiro cume do Alvorada.
Dele vimos que não faltava muito pro final, e isso era muito gratificante e encorajador. Em pouco tempo estaríamos deixando os Alvoradas rumo ao Mesa, Sem nome, Carvalho, Ferradura, Vigia, e finalmente o Morro do Canal. Após fotos com a identificação, seguimos pros demais Alvoradas onde repetimos o procedimento. Quando era possível, fixávamos provisoriamente com plástico filme as marcas, pois a fita de demarcação já havia acabado no Balança.
Seguimos pro Mesa numa longa jornada por um território sem vestígios de passagem, o que nos causou considerável desgaste físico, psicológico, e muito atraso. O relógio já marcava 15:25h quando enfim chegamos na grande pedra do cume para blindar a 38ª montanha, e já considerada uma das últimas da Alpha Crucis.
O vento uivava forte vindo do sul, e era certo que pela distancia que nos separava do Sem nome, a noite nos encontraria antes de pisar no mesmo. Tratamos de vazar dali rápido. Pouco a frente, o castelo de grandes rochas bem peculiar dessa montanha, se colocou no nosso caminho. Várias alternativas acabavam em abismos mortais, nos forçando tentar outros meios.
Foi um alivio escapar dali, mas a alegria durou pouco, e no fundo do vale um bambuzal maldito tornou a mata fechada e praticamente impenetrável. Avanço lento, penoso, com a noite chegando para complicar ainda mais nossas miseráveis vidas. O GPS mais do que nunca fez sua parte nessa hora, mostrando a direção correta a seguir. O cume já não estava longe, mas mesmo assim parecia inalcançável.
A noite e o céu já totalmente encoberto, trouxeram uma escuridão inominável a floresta. O vendaval só contribuía com o cenário assustador. Troncos retorcidos roçavam uns sobre os outros, criando um ruído diabólico e fantasmagórico de ranger de dentes. Era hora de pegar as lanternas.
Já bem perto do cume, passamos reto numa entrada apagada à esquerda, e acabamos chegando ao topo duma grande rocha. As luzes das lanternas se perdiam pelas frestas da vegetação, sem alcançar o solo. De imediato percebemos o perigo eminente e recuamos. Minutos depois encontramos a passagem correta e chegamos ao local certo.
A ausência de visitantes abre espaço à vegetação que volta a crescer pra todo lado e toma conta de tudo. Concentrados, farejamos a rasto com todo cuidado pra não perdê-lo, sob pena de novos pesadelos caso acontecesse. Finalmente quase no fundo do vale, reconheço uma arvore caída ao passar por baixo do seu tronco. Se tivesse mesmo certo, em minutos íamos chegar num pequeno córrego com fundo de areia grossa. Logo, isso aconteceu.
Apesar da noite e do cansaço que já se agia fortemente em nós, ainda era cedo, 19:00h mais ou menos. Sendo assim, nada mais parecia impedir que concluíssemos a travessia naquela mesma noite. Agora teríamos pela frente um vale traiçoeiro antes de encarar as encostas do Carvalho. Nem mesmo de dia é agradável passar nesse lugar, mas era só manter a concentração pra não perder a picada, que seria êxito garantido.
Então algo terrível acontece. Um forte ruído soma-se ao vento, e avança rápido sobre nós. Não pudemos acreditar. Era uma enorme tempestade desabando sobre nossas cabeças. Chuva torrencial com ventos de aproximadamente 80km/h, que nos encharcaram completamente em instantes. Mesmo estando aquecidos pela atividade física, sentimos a temperatura despencar com aquela água congelante que caia violentamente dos céus.
Em primeira instância, tratamos de proteger com sacos plásticos os equipamentos eletrônicos que estavam na mochila, celulares e câmeras. Pegos totalmente de surpresa pela fúria da natureza, não tínhamos pra onde correr, e a principio, confusos, a decisão foi ignorar a tempestade e seguir adiante. Mas a combinação daqueles fatores extremos, tornou inviável e impossível a progressão, pois estávamos congelando.
A floresta enfurecida se sacudia de forma assustadora, e desesperadamente procuramos um lugar para nos abrigar. Encontramos algumas grandes rochas sujas e precariamente empilhadas. Entalamo-nos meio de qualquer jeito pelas frestas estreitas. Mal cabia uma pessoa, muito menos duas. Ficamos ali imprensados, silenciosos, tentando compreender a proporção da nossa desgraça. Não estava nada confortável, ou agradável, naquele buraco fétido e úmido. Mas nada é tão ruim que não possa piorar. Jurandir pede pra mim olhar pro teto daquilo, centímetros acima de nossas cabaças. A luz da lanterna revela um teto negro em movimento. Este era formado por milhares de aranhas empilhadas uma sobre as outras, ocupando toda a rocha. Nunca vi na vida tantas juntas. Nem eram venenosas, mas aquilo criou um desconforto tal, que era bem melhor estar na chuva, do que dividir aquele precário espaço com elas. Decidimos nos despedir antes do jantar, e desaparecemos dali.
Voltar pra chuva ia ser pior agora, pois o corpo havia esfriado ainda mais. Caminhamos rápido pela picada que seguia por dentro do córrego, que nesse momento já se tornara um rio. Logo Jurandir que estava a frente grita: O caminho sumiu! Nos deparamos com uma encosta íngreme, que não me era nada familiar. Eu, já transtornado com tudo aquilo, digo: “Merda… agora só falta alguns raios pra desgraça se completar!”. Mal termino de dizer isso, e um clarão seguido por um forte estrondo ecoa pelos vales e montanhas. Jurandir suplica que eu não fale mais nada, e aceito seu pedido. Então ele começa a dizer coisas sem nexo, em meio aquele inferno. Diz que devíamos ter parado no cume do Sem nome ao invés de continuar. Respondo dizendo que lá sim estaríamos numa roubada. Não seria interessante estar num cume com aquele tempo. Além de ventos fortíssimos e muito frio, ainda poderíamos levar alguns raios de brinde.
A procura do tênue rasto, cada um foi prum lado, e na confusão, acabamos andamos em círculos. Já havia iniciado os famosos insultos quando finalmente reencontrei a picada. Seguimos com muito cuidado pela escuridão para não perdê-la novamente naquela bagunça de água e vento pra todos os lados. Acontece que ao reencontrá-la, acabamos seguindo na contra mão, e com as lanternas já bem fracas já, nem percebemos a principio. Só muito pra frente que nos demos conta do erro, ao perceber que já havíamos passado por ali. A situação ficou tensa e desesperadora. Começamos aceitar a realidade de que não iríamos escapar dali naquela noite, e a única e dramática opção que restava, era um bivaque medonho por ali mesmo. Isso soava quase como assinar uma sentença de morte, tendo em vista a revolta climática, contrastando com nossos parcos e encharcados recursos.
Voltamos então até o rio de areia. Lembrei que ali, ao lado dele, havia uma boa área de acampamento que construímos à cerca de dois anos atrás, durante abertura e exploração do Sem nome. Tremendo convulsivamente, sacamos as tralhas da mochila para tentar improvisar algo que ao menos nos mantivesse vivos durante aquela noite de horror. Jurandir sacou seu plástico branco de 2×2 metros com o qual forrou o chão. Enquanto isso, eu ancorava com cordeletes nas arvores próximas, minha tenda de nylon pra bivaque, que media exatos 2,10×1,40 metros. Era se equilibrando debaixo deste precário espaço, que teríamos que sobreviver encharcados até os ossos e tremendo de frio, as próxima 12 horas mais dramáticas de nossas vidas.
Durante a correria pra armar a tenda, acabei instalando ela muito alto do chão, cerca de 80cm. Isso fazia com que a água movida pelas fortíssimas rajadas de vento, invadissem sem cerimônia nosso limitado espaço, fortalecendo a desgraça já grande. Os sacos de dormir, mesmo dentro das mochilas, acabaram se encharcando também, e não havia a menor motivação em usá-los. Jurandir pega seu isolante térmico e se enrola nele, ficando encolhido, sentado, estático, abraçado nas pernas encolhidas. Eu visto apenas uma japona de nylon, fico na mesma posição. Um encostado nas costas do outro, em silencio, assistindo de camarote a tormenta se desenvolver com toda sua competência, e sem pressa alguma, num espetáculo tétrico, barulhento, dramático, beirando o trágico.
Perdemos a noção de tempo, mas devemos ter passado algumas horas naquela situação, sem se mexer. Num determinado momento, senti muito desconforto, formigamento, e amortecimento muscular, além dum frio absurdo. Então sussurrei pro companheiro que devíamos tomar uma atitude, pois não havia mais como passar uma noite toda naquela situação. Parece não ter dado atenção pro que eu disse, e permanecemos mais uns vinte minutos do mesmo jeito. Então insisti, e comecei me mover. Neste momento a roupa ensopada se deslocava pelo corpo, causando um frio ignorante.
Tirei rapidamente o isolante térmico e o saco de dormir da mochila, encharcados. O plástico do Jurandir que forrava o chão, formou várias pequenas piscinas, mas isso já não fazia muita diferença. Na verdade, nada mais fazia muita diferença, nem mesmo a chuva que permanecia mais forte. Foi estranho e difícil se enfiar no saco de dormir inundado. Não havia dúvida de que aquela noite seria eterna e maquiavélica conosco, e tudo que podíamos esperar agora, era que sobrevivêssemos a ela.
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Sobre o autor

Elcio Douglas Ferreira é um dos maiores personagens do montanhismo paranaense. Experiente, frequenta nossas serras há mais de 35 anos, sendo responsável pela abertura de inúmeras trilhas e travessias. Foi um mentores da Travessia Alpha Crucis, considerada como a maior e mais difícil travessia entre montanhas no Brasil, que ele fez pela primeira vez em 2012. Possui experiência em alta montanha, já tendo escalado O Illimani na Bolívia e o Aconcágua na Argentina em poucos dias num esquema non stop impressionante.

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