Detalhe: Travessia entre São Jose do Barreiro/SP e Mambucaba/RJ pela trilha do Ouro – Caminho de Mambucaba, no Parque Nacional da Serra da Bocaina.
Na saga das trilhas otimizadas para finais de semana, em função da reduzida oferta de feriados em 2024, reservei a vaga para a Travessia do Ouro, a ser efetuada em até 31 horas de caminhadas, contemplações, banhos e pernoite. A primeira data, 23 e 24/03 acabou por ter que ser preterida pois o Parque Nacional da Serra da Bocaina foi fechado. pela sua gestão em função do grave risco hidrológico que se desenhava naquele momento. Ainda antes de todo esse imbróglio eu repassei minha vaga, para participar da formatura do ensino médio do meu filho. No momento do repasse eu não sabia que sairia do hospital onde meu pai estava internado por dengue para a festa e depois voltaria para passar a noite com ele.
Com a postergação para 4 e 5/5 e a alta hospitalar do meu pai, voltei a ter esperanças de fazer esse trajeto, que já cobiçava há alguns anos. Fiquei com a vaga do Gustavo Ridgue, que não poderia fazer a travessia na nova data.
Tratei de estudar um pouco sobre o trajeto, mas as intercorrências de trabalho, trilhas e a delicada recuperação do meu pai tomaram praticamente todo o tempo disponível. Com a ansiedade de sempre, na quinta feira já estava com os equipamentos revisados, organizados e com a cargueira pronta. Na 25ª hora, consegui preparar o mapa e fazer os ajustes solicitados no tracklog de base, incluindo um ataque ao Pico do Gavião. A altimetria não era desprezível, 350 metros aproximadamente, a serem galgados em 2,5 quilômetros de trilha.
Na sexta soube pela Fernanda que a Amanda estava internada em função d’uma recidiva da dengue hemorrágica do começo de abril e que obteria alta “na marra”. Por saber que não a demoveria do intento de, pelo menos tentar a trilha, concentrei esforços em convencê-la, ao menos dividir barraca e equipamentos comigo, assim andaria mais leve. Consegui arrancar dela o compromisso de que, se não estivesse bem na trilha, retornaríamos pelo caminho menos desgastante e que, só faríamos o ataque ao Pico do Gavião caso não houvesse nenhum indício de complicações de saúde.
Saímos do Tatuapé às 23h, com uma parada para alimentação e banheiro e chegamos na portaria do parque às 6h20. Revisamos o arranjo das cargueiras, aproveitamos o conforto dos banheiros e aguardamos a abertura do parque, às 7h para a conferência das devidas autorizações de ingresso e permanência no parque. Iniciamos a caminhada do dia às 7h20, em passo leve, apreciando o aquecer do corpo pelo exercício. A temperatura amena, observada no termômetro da portaria (8ºC) fazia uns e outros refletirem sobre a escolha dos equipamentos para o pernoite. Era meu caso, eu optara por um liner, basicamente um pequeno cobertor costurado, contando que a temperatura não caísse abaixo de 10ºC e sopesava os prós e contras da escolha. Seguia à frente, fazendo contas, tentando encontrar um resultado de projeção que me tranquilizasse: trilhávamos sob 8ºC, à 1.500 m de altitude em relação ao nível do mar. Nosso pernoite estava previsto para a base da Cachoeira do Veado, a cerca de 740 m de altitude. A cada 300 m de redução de altitude, a atmosfera apresenta um ganho de temperatura, em condições estáveis, de 1ºC… temperatura projetada, se tudo se mantivesse conforme: 10,5ºC… ia ser apertado, na “casca” … ainda dispunha de uma jaqueta de plumas e do cobertor de emergência… talvez fosse a oportunidade de batizá-los em campo. A madrugadinha que havíamos visto findar, fresca e estrelada, sinalizava que o sol seria intenso.
Em pouco tempo chegamos ao ponto de acesso da primeira cachoeira do dia: de Santo Isidro, padroeiro das lavouras e dos agricultores. Três caminhantes do nosso grupo optaram por seguir direto, minimizando o desgaste físico e os quilômetros a percorrer até o acampamento. Menos prudentes e “confiando no nosso taco”, tocamos pelo acesso à direita e descemos até a base da cachoeira, alcançada às 7h42. A linda queda, de cerca de 70 metros, apresenta um belo poço na base e uma singela prainha à direita. Alguns lampejos de sol venciam o dossel vegetal e alcançavam as águas do poço, convidando para o primeiro mergulho. Optamos por adiar a entrada para quando o sol já estivesse mais forte e o caminhar de roupas molhadas fosse grande alento e não pequeno tormento.
Retomamos a trilha principal, uma antiga estrada de tropeiros ainda em uso por veículos das pousadas e propriedades no interior do parque, e seguimos em direção a próxima cachoeira, das Mochileiros, onde repetimos o ritual de deixarmos a trilha principal e enveredarmos à esquerda em direção ao rio Mambucaba e dobrarmos à direita, já em sua margem para descermos até a base da pequena cachoeira, alcançada às 9h.
Novamente na trilha principal seguimos em frente até o acesso à cachoeira das Posses, cujo acesso em nível aponta que caminhamos em direção à algum rancho ou construção maior. Nesse acesso, a trilha é tão larga quanto na estrada principal, basicamente uma aleia de pinheiros, onde noto uma alvissareira iniciativa do Parque. Uma ação de manejo extremamente importante e necessária, real exemplo a ser seguido pelos parques Brasil afora: o sacrifício dos pinheiros-americanos (Pinus elliottii), espécie exótica e altamente invasiva, para permitir a recuperação da mata nativa.
Ainda que esperando encontrar alguma ruína, em função da toponímia, da aleia de acesso, não consegui evitar a distração com a ação de manejo e deixei escapar a curva à direita para acesso ao rio e a base da cachoeira das Posses. A trilha segue batida até as ruinas, pouco mais de 10 metros após a curva. Já dentro das ruínas, não observando que a trilha as atravessasse, pedi a Amanda que verificasse se não havia rastro batido ao redor, enquanto voltava alguns metros pela trilha. Toda essa área, ampla e plana, permite o camping selvagem e pode ser uma boa opção de pouso para incursões pela parte alta do Parque. Identificado o ponto em que minha distração nos conduzira para fora da rota, descemos rapidamente até a base da cachoeira (9h30), onde uma nova surpresa nos aguardava: na margem, a dois metros de altura, uma octomeria, em belas flores amarelas, se agarrava ao galho veterano de uma arvore não identificada.
Ainda evitando o molhar de roupas e focando no ataque ao Pico do Gavião, deixamos a simpática queda, de cerca de 40 metros às nossas costas e retomamos o caminhar pirambeira acima até a trilha principal. Mantivemos um ritmo constante, em descida, passando por um trecho onde o dossel vegetal não se recompôs e o sol abrasador nos atingiu diretamente. Confesso que me arrependi de não ter entrado na água antes e de ainda trilhar com as vestes secas, nesse trecho até a pousada Barreirinha, os pontos de água são menos abundantes e os aclives e campos mais frequentes, com o sol castigando um pouco o incauto que se aventure com menos água que o necessário. Seguimos o clássico 1 litro por cabeça, reabastecendo com água fresca quando possível e foi tranquilo. Mesmo assim, as roupas molhadas teriam sido um adicional de conforto bem relevante, nesse trecho.
Subindo de forma moderada alcançamos o Alto da Jararaca (1.450m) às 14h10 e passamos a descer em direção à Capela Santa Cruz, totalmente em ruínas. Reproduzi abaixo a (talvez) mais recente e derradeira imagem dela, a partir do relato do Zé Thiago, em passagem por ali em abril de 2023. Restou apenas um amontado de telhas escondido e envergonhado da desídia humana.
Com essas reflexões em mente, seguimos perdendo altitude paulatinamente até alcançarmos, às 12h a Pousada Barreirinha (altitude 1.208 m), onde dividimos ações, busquei água no regato que cruza a estrada e a Amanda conferiu se havia alguém na pousada, na (vã) esperança de conseguirmos uma coca gelada naquele meio de mundo. Até ali havíamos caminhado XXX quilômetros, sem que a Amanda manifestasse qualquer desconforto com o calor, a carga da mochila ou as subidas mais intensas. Dessa forma, decidimos tentar o ataque ao Pico do Gavião, de forma bastante cuidadosa, pois nosso tracklog de referência havia sido montado com insertos de passagens de trilheiros anteriores, e nesse trecho as informações de que dispúnhamos eram antigas, de 2015, e nesses 9 anos muita coisa poderia ter mudado e mesmo as imagens de satélite que mostravam trechos de crista com rastros claros poderiam nos induzir a um perigoso erro, caso algum trecho onde o crescer da vegetação houvesse acabado por tornar o transpassar por demais desgastante para dois montanhistas apenas. Consideração adicional merecia o aspecto clínico da recuperação incipiente da Amanda de uma internação por dengue hemorrágica de início de abril. Não obtivemos resposta ao bater de palmas, de forma que tomamos um rápido banho no regato, encharcando as roupas e tocamos encosta acima, à direita da estrada, em direção ao pico do Gavião. Iniciamos o caminhar de cargueiras, mas uma trintena de metros acima, optamos por deixar a cargueira da Amanda e seguirmos apenas com a minha, pelos equipamentos de PS e para eventual perrengue. A subida é consideravelmente íngreme, com um suceder de falsos cumes enquanto se busca a ápice daquela região, à insuspeitos 1.650 metros de altitude. Da estrada até o cume são cerca de 320 de ganho de altimetria em pouco mais de 2,2 quilômetros de pernada.
Subindo a passo moderado, com ocasionais vara-mato das samambaias que cresciam mais à sota-vento das encostas, fomos galgando aresta após aresta da montanha até que às 13h14 não havia mais o que subir, estávamos no cume do Pico do Gavião, onde uma singela placa de madeira nos informava da altitude e, também, solicitava que se preservasse a natureza.
Nesse ponto, sabíamos que as subidas não seriam intensas, mas a extensão da jornada até o ponto de acampamento era considerável, pouco mais de 14 quilômetros, a somar com os 22 já palmilhados até ali. Com isso em mente não nos demoramos muito na contemplação e tratamos de iniciar a descida do cume, certo de que encontraríamos nosso pessoal no contrafluxo. Como dispúnhamos de água em abundância e a descida demandaria menor consumo, mantivemos a disciplina de goles pequenos e pouca conversa, de forma a poder socorrer alguém que estivesse em vias de desistir pela sede. Ironia das ironias, a única montanhista sangue nos zóio para fazer o ataque, estava abandonado a subida, duas centenas de metros abaixo de nós, subindo de chinelas, pois sua bota havia entregado os pontos ante os despudorados abusos a que fora submetida em trilhas e mais trilhas (Travessia do Travessão foi uma).
Com certa surpresa em não encontrar ninguém subindo, recuperamos a cargueira da Amanda e alcançamos a estrada, na base da pousada Barreirinha às 14h17. Onde a Thais (Pérola) descansava e recuperava as forças para seguir. Com o ataque mais delicado do dia coroado de êxito, trocamos algumas palavras de incentivo e nos demos uma curta pausa para banho e lanche no simpático regato que nasce na encosta nordeste do Gavião. Recuperada, na medida do possível, logo a Pérola retomou a caminhada. Ficamos mais alguns momentos apreciando a pausa, mas logo a comichão da caminhada venceu nossa modorra e tratamos de nos colocar em marcha, em passo leve nas subidas e mais fechado nos planos e descidas.
Encontramos a singela igrejinha de Barreirinha bastante degradada, como se o mundano buscasse olvidar do Divino. O mato a crescer no átrio. As portas soltas dos batentes, o reboco pouco a pouco a se desfazer pela incúria e abandono. O azul vibrante das madeiras com o viço perdido sob o iniludível avanço do tempo que a todos e a tudo transforma em pó, em cinzas, em nada. As imagens de santos com caveiras me vieram à lembrança. Aquela igrejinha se tornara o memento mori da história da época áurea dessa travessia. Tempo ido, onde tropas de mulas transportavam a riqueza do café para embarque em Mambucaba.
Confesso tristeza com o presenciar essas construções se desfazendo às vistas, fruto da desídia e da burocracia disfuncional que vivenciamos. Custa-me crer que esse proceder seja o mais adequado. Entendo as limitações para que esse bucólico lugar seja empregado como moradia ou como comércio. Pois então que seja implantado um posto da brigada de incêndio do Parque. Ou cedido o uso, conservação e guarda à um grupo escoteiro ou a um clube excursionista. Que se encontre uma solução diferente da aparente “deixe-se desfazer, depois tratamos de reconstruir – ou não”.
Às 14h54 encontramos a bifurcação que dá acesso ao trecho em desuso da estrada em direção à Areias, caso se siga pela esquerda, com uma suave descida inicial. Nesse ponto já estávamos próximos da Pousada e Camping da Dona Palmira, um amplo gramado, com uma pequena casinha à direita, onde passamos às 15h04, cruzando a porteira e em seguida um pequeno riacho, prosseguindo pela estrada em subida na outra margem.
Encontramos o primeiro trecho de calcamento histórico, em lajes irregulares, com cerca de 6 metros de largura. Os trechos inclinados e, ainda mais, onde o sombreado do dossel vegetal preserva a umidade do solo, apresentavam-se bastante escorregadios, demandando certo cuidado na pisada, de forma a evitar quedas e entorses. Passamos em seguida ao lado esquerdo do açude que armazena e direciona a água que mina da encosta à direita da trilha.
Passamos a Pousada do Sr. Salvador e pouco depois observei um pequeno muro (de arrimo) de cantaria à esquerda, cujo registro fiquei feliz em acrescer à minha coletânea. Pouco depois alcançamos uma singela pinguela, cruzada com o providencial apoio de um corrimão.
Avançamos mais algum tempo, agora cruzando as terras da Fazenda Central, fonte de centenas, quiçá milhares de dormentes para a implantação da Estrada de Ferro Central do Brasil, extraídos de suas matas. Aqui e ali, como se lançadas ao acaso e afrontosas ao lento desfazer que a natureza impõe às obras humanas, vê-se pequenas habitações, quase sempre com telhados de duas águas e na clássica combinação de cores do branco (caiadas?) para as paredes e azul celeste para o madeiramento. Se havia moradores, os sinais eram bastante discretos.
A intensa descida nos levou primeiro à ponte do Camping Mambucaba (17h17) onde houve (pelo menos eu não vi) a famosa gaiola para transpassar o rio Mambucaba para a sua margem esquerda, atualmente anotado nos tracks como “Rancho do Zé do Zico. Seguimos em frente, buscando o camping na base da cachoeira do Veado, cuja distância informada pela alvissareira placa, 470 m, parecia não findar. Às 17h28, alcançamos o ponto de acampamento, com a grata surpresa (e certo alívio) de encontrar o trio que seguira à nossa frente, sem os ataques às cachoeiras e que não víamos desde a bifurcação para a Santo Isidro. Afinal, o ponto de acampamento e reunião do grupo, previsto para a cachoeira do Veado, era algo vago. Os espaços eram amplos, havia camping do outro lado do rio Mambucaba que também poderia ser objeto da escolha deles. Demos início a instalação dos nossos palácios para o pernoite. Escolhi um ponto plano, com vegetação de gramíneas e sem raízes que perturbassem o descanso. Notaria mais tarde, que havia escolhido uma posição exatamente embaixo de uma centenária araucária. Como a noite seria de tempo calmo, sem ventos, optei por não transferir meu palácio.
A Amanda foi tomar banho, enquanto eu arranjava a cozinha. Os equipamentos minimalistas não são pensados para divisão de tarefas e cozinhar para dois ou para um apenas, nada muda. A verdade é que não há muito (nem pouco) como ajudar nessa hora de arranjos e montagem da barraca e cozinha.
Preparei rapidamente um primeiro prato, polenta cremosa com molho de tomate e proteína de soja sabor bacon e queijos ralados. Para torná-la mais apetecível levei tomate desidratado em flocos e alho granulado para o molho. A polenta instantânea já contava com queijo parmesãp fresco acondicionado junto, de forma que ao aquecer a polenta o queijo já se derretesse. Eu gostei do arranjo de cores: o amarelo da polenta com o vermelho molho e por cima, novamente amarelo da farta porção de queijo ralado. Não faço ideia do valor nutricional, mas garanto que forra o estomago faminto com um sabor caseiro.
Havia coletado pinhões durante a caminhada e os deixei na chaleira para aproveitar cada grama de combustível para cozê-los. Na sequência preparei uma porção de cuscuz marroquino com melão desidratado e uvas passas, pretas e brancas, adoçado artificialmente. Acompanhado de tomates-cereja frescos. Lascas de parmesão e grana padano como petiscos. Para acompanhar, tivemos delicioso refresco de goiaba.
Os pinhões ficaram prontos em cerca de 20 minutos na agua quente, não sem certa surpresa, pois ouvira que demandariam muito tempo de cocção, até mesmo em panela de pressão. Foram, sem dúvidas, os pinhões mais frescos que eu já comi.
Enquanto a água para os preparos fervia, costurei a sola e o cabedal da bota da Fernanda com fitas Hellerman (genéricas, erro a não repetir) e a agulha do canivete. Ficou um serviço feio, que eu torcia que aquentasse, ainda que alguns quilômetros. Foi grata a constatação de que o remendo deu conta dos 16 quilômetros de trilha faltantes.
Após o jantar, limpei a louça, juntei as tralhas de trilha no saco plástico e coloquei sob o abrigo do avancê da barraca. Nesse meio tempo, a Perola chegara com o remanescente do grupo, de forma que sabendo estarmos todos juntos, não haveria necessidade de , e não havia Tomei um banho de gato no rio, me sequei e vesti as roupas de dormir. Cai pra dentro da barraca, onde a Amanda já ressoava suavemente. Consegui que descesse um pouco para afastar o rosto da lona da barraca e evitar que molhasse os cabelos com a condensação noturna. Acampados ao lado do rio, ela certamente seria intensa, de forma que fechei apenas parcialmente a porta da barraca e tratei de dormir enquanto a temperatura era amena. Assim, caso precisasse apelar para uma alvorada precoce, já teria descansado um bocado. Até a meia noite, aproximadamente, apenas a segunda pele bastou para o frescor noturno. Depois entrei no meu liner e, finalmente, perto das duas da madrugada optei por pegar o cobertor de emergência e me cobrir com ele. É notável a eficácia desse pequeno volume de plástico aluminizado. Dormi bem até o dia começar a clarear.
Dia 2
Ainda na véspera, a Amanda dera o comando para alvorada às 6h, para partida às 7h e com uma disciplina quase militar todos, estivessem mais ou menos cansados da caminhada, se renderam à prudência da recomendação. Preparei os dois mistos quentes do nosso café da manhã, com chá para ela e, chocolate quente para mim.
Café tomado, desmontamos acampamento, arranjamos as cargueiras e fomos apreciar a maior cachoeira do parque, a do Veado. É uma queda em três patamares com cerca de 200 metros de altura e o volume d’agua, mesmo sem chuva é algo que impressiona. Ficamos algum templo contemplando a beleza e avaliando quanto tempo tardaria para que os raios de sol começassem a incidir na parte alta, enquanto fazíamos alguns registros. Concluindo que não nos convinha esperar pela “foto perfeita”, voltamos sobre nossos passos e tratamos de nos encaminhar para o ponto de resgate, 16 quilômetros de trilha desconhecida adiante. Optamos por não fazer o ataque à cabeceira da Cachoeira do Veado, de cerca de 2 quilômetros entre ida e volta e 250 metros de altimetria.
Atravessamos a ponte, dobramos à direita, seguindo o curso das águas do Mambucaba e seguimos, cuidando de não escorregar, até alcançarmos a primeira cachoeira sinalizada, a da Memória, na divisa dos estados de SP e do RJ. Nesse trecho, a divisa entre os entes federativos é o próprio curso do rio da Memória cuja toponímia é emprestada à queda d’água. Do nosso acampamento até esse ponto, percorremos pouco menos de 4 quilômetros em uma hora de caminhada.
Fizemos uma parada para banho antes de retomarmos a caminhada, alternando trechos com calcamento visível, trechos cuja erosão do solo pelo correr das águas pluviais mal gerenciada solapou as pedras e as transportou encosta abaixo. Em outros pontos, o movimento de massa das encostas certamente cobriu o calçamento. Bueiros, pontes invertidas, aterros e muros de arrimo, em cantaria, degradam-se sob a ausência de qualquer manutenção. Obras de engenharia duram séculos, mas demandam um mínimo de cuidados. Na agressiva Serra do Mar Brasileira, essa é uma verdade incontornável.
Seguimos perdendo altitude a cada sobe e desce de fralda de morro até cruzarmos o Rio Santo Antônio na cota 107 metros às 11h30. A ponte, com madeiramento novo e em excelente estado de conservação inspira confiança e permite que se continue a seguir pela margem esquerda do Mambucaba.
Ao longo de vários quilômetros dessa descida há intensa presença de Brillantasia lamium, popular erva-do-bicho, uma planta invasora de origem africana e que tem se espalhado no solo saturado de matéria orgânica da orla da estrada, onde parece que o ecoar prejudicado das águas carreia restos de vegetação acima da capacidade de processamento do solo. À exemplo da salutar ação de manejo observada com o pinus na parte alta, a administração do parque precisa ter a coragem e ousadia de empregar defensivos agrícolas seletivos para erradicar essa espécie.
Além das usuais pixiricas, nessa travessia provei pinhão colhido no dia, laranja “selvagem” e figo, esse um achado que fazia tempos que eu buscava nas matas. Apesar de sabê-lo abundante ainda não havia tido a oportunidade de encontrar e provar no mato. Formam arvores frondosas e os frutos são bastante apreciados pela fauna, não sendo tão frequente observá-los no chão, acessíveis.
Às 12h07 alcançamos a estradinha vicinal, com a Ponte de Arame que permite o acesso a fazenda Santo Antônio à nossa direita. Cogitamos entrar no rio, mas a inconveniência de retornar com as roupas molhadas prevaleceu. Seguindo sem pressa, percorremos os últimos 1.400 m em 45 minutos. Às 12h52 nos sentamos nas banquetas do Sítio São João, onde nossos colegas já haviam conseguido, por gentileza, que fizessem um “catadão” com o que tinham na despensa para nos servir um almoço caseiro simples, mas espetacular no sabor e no acolhimento. Recomendo que façam reserva, assim o atendimento, tenho certeza será ainda melhor. Contato: Ana 024 99838 4955. Franquearam também os chuveiros da casa para nós e reconheço que foi bom poder limpar um pouco da lama e do suor do corpo. Fizemos contato com o nosso destemido motorista, o Sr. Messias que pouco depois nos recolheu e, diligentemente nos conduziu em segurança até SP. Deixei a Amanda na casa dela e desci pra Santos, findando a viagem às 0h12. Saberia depois que ela havia ido para o hospital receber nova bolsa de plaquetas.
Os muitos vestígios do impacto antrópico nessa serra, como ruinas de moradias, trechos de calçamento para o transporte, bueiros, contenções de encostas, aterros, pontes e pontes invertidas (à falta do termo correto, me ajudem aí, colegas da engenharia civil) são muitos. Os vestígios de obras de cantaria estão presentes em quase que todos os trechos da travessia e certamente, dezenas de outras obras em madeiramento se desfizeram com o passar dos muitos anos entre o auge da circulação de mercadorias (café para exportação e gêneros diversos para as fazendas de serra acima) e o nosso olhar presente. Pelo que li, o ápice do escoamento nessa rota foi no período 1840 a 1864.
Com a implantação da Estrada de Ferro Dom Pedro II e seus ramais de captação linha férrea, o café passa a ser transportado por via férrea, direto para o Rio de Janeiro. Com o final (mabembe) do ominoso regime escravocrata em 1.988, a produção de café no Vale do Paraíba decaiu drasticamente e, em decorrência do minguar de tráfego, as vendas e os ranchos de pouso para os tropeiros desapareceram no passar de poucos anos. Aos poucos, o parcial abandono se fez regra e a natureza, a cada temporada de chuvas, acelerou a retomada de suas incontestes posses. Somaram-se deslizamentos, erosões, o avançar das raízes desfazendo metro a metro, primeiro os pontos mais sensíveis da antiga estrada e depois avançando insidiosamente em direção aos trechos mais estáveis. Nem tudo se perdeu ainda, e nós somos agraciados com poder palmilha alguns metros dessa notável história.
A destemida súcia:
Alexandre Torres; Amanda Rossi Mascaro; Caleb Aguiar; Daniel Nogueira; Daniele Alves Souza; Eliane Pereira; Eliza Rudovas; Fernanda Oliviera; Gustavo Cordeiro; Marcelo Mesalira- HERBA; Rogério Alexandre Francisco da Silva; Sandra Da Silva Miranda; Thaís Pérola Cavicchioli – PÉROLA; Tatiany Souza de Queiroz; Vanderson Batista dos Santos – SAGAT
2 Comentários
Muito bacana esse relato, Rogério.
Quanto à ‘ponte invertida’ não sei bem se você está se referindo a um sifão invertido pois não vi nas imagens.
E com relação à segurança? Há pessoas suspeitas pelo caminho? Já escutei relatos de que muitos foragidos da justiça ficam por ali.
Acredito que na região que passamos seja pouco provável, apesar de possível. As pessoas que conversamos não fizeram nenhum comentário nesse sentido. Mesmo assim, é possível que homiziados façam moradia ali, mas como é bem complicado o acesso por veículos, creio que não seja atrativo.