Já havia lido a respeito do Tabuleiro anteriormente, então, pra não perder tempo arrumei rapidamente a mochila para três dias de caminhada, busquei os arquivos que tinha salvo no computador e imprimi, coloquei duas tracklogs no GPS e parti sozinho para Itapema, onde dormiria. No dia seguinte seguiria para a pacata São Bonifácio, onde começa efetivamente a caminhada.
Dia 01
Saí de Itapema com certo atraso as 07:45 da manhã, o que fez com que chegasse no início da trilha somente as 11 horas e, sem perder tempo, comecei a caminhar.
Durante os pouco mais que 3,5 km iniciais a trilha cruza por diversas vezes o Rio Moll, portanto, para poupar qualquer esforço desnecessário levei três garrafas de 500 mL vazias e fui tomando água direto do corpo hídrico sempre que necessário – era 1,5 kg a menos nas costas.
Com uma parada rápida para almoço, alcancei o pasto onde desemboca também a outra entrada da travessia as 13 horas. Sem cruzar o rio tomei o rumo leste, iniciando efetivamente a subida por um caminho de boi. Aliás, quase todo o traçado da travessia segue o rastro das vacas.
Logo após o pasto cruzei uma cerca e ali enchi as garrafas de água, pois o próximo ponto de captação seria já no alto da serra. Continuei e rapidamente atingi os campos de altitude, bastante umedecidos por conta de uma fraca chuva que havia caído na noite anterior. Nestes campos há um tipo de vegetação esponjosa que absorve água e confirmou uma triste suspeita que eu tinha desde a Alpha-Ômega: após três anos me acompanhando em trilhas por diferentes terrenos, em dezenas de montanhas e algumas viagens pela América do Sul, minha fiel bota Vento (antiga Nômade) Finisterre, havia dado seus últimos suspiros. Problemas no solado a fizeram perder a impermeabilidade e, ao pisar nas “esponjas”, meus pés ficaram encharcados… Sentirei saudades querida!
Com o sol forte e o céu azul consegui avistar ao longe as escarpas da Serra Geral. Que paisagem! As 15 horas passei pelo Morro das Pedras e 15 minutos depois cheguei ao ponto onde a tracklog bifurcava – eu poderia seguir reto no trajeto original da travessia, ou quebrar a direita em direção a um mirante para avistar Florianópolis, onde o Rafael Santiago (cujo relato eu carregava na mochila para usar de referência) havia acampado. Como ainda era cedo, meu ritmo estava bom e certamente haveria outros pontos para observar a ilha da magia nos próximos dias, optei por tocar em frente.
Cerca de 500 metros depois dali a água está disponível em abundância. Cruzei pequenos córregos mais sete vezes. No fim do dia, as 17:35 horas havia percorrido 12 km, alcançando um riacho onde a tracklog bifurcava novamente e eu já estava decidido a tomar o caminho à esquerda, mais longo e menos íngreme. Acampei e jantei.
Ainda era cedo para dormir e eu precisava estudar o trajeto do dia seguinte. Peguei os mapas, cartas topográficas e o relato que carregava e, tendo por base as descrições ali contidas, concluí que começando a caminhar às oito horas e mantendo exatamente o mesmo ritmo do autor do texto, eu alcançaria o cume do Pico do Tabuleiro, ponto culminante da caminhada, as 18:30. Assim, tracei por objetivo baixar esse tempo em meia hora para acampar com calma, deixando para o terceiro dia somente descer até o fim da trilha e, de lá, iniciar uma nova aventura para chegar até o carro, a 45 km de estrada dali.
Enquanto lia gotas esparsas de chuva martelavam a barraca. Era só o prenúncio do que estava por vir.
Dia 02
Acordei as 07:00 com vento e uma densa neblina cobrindo toda a paisagem. Não podia enxergar a mais de 30 metros de distância. Uma fina garoa caía e os campos estavam completamente molhados. Comi e rapidamente desfiz o acampamento. As 07:30 já estava caminhando, ou seja, eu havia ganho a meia hora que desejava.
À medida que avançava o clima não se alterou, com exceção da chuva que engrossava em certos momentos. Em trinta minutos atinjo o ponto de água que almejava alcançar somente às onze horas. Ali, seguindo as recomendações do relato, enchi todas as garrafas e segui adiante.
A chuva engrossou substancialmente por várias vezes. Cheguei em dois pontos onde eu deveria visualizar belas paisagens dos vales abaixo e do Pico do Tabuleiro, mas a neblina não havia se dissipado, ou seja, eu mal via para onde deveria seguir, que dirá sacar fotos. Segui navegando quase que exclusivamente pelo GPS e logo atingi os trechos de mata que antecedem o cocuruto ao lado do Tabuleiro.
Nas descrições do Rafael esses trechos de mata eram bem fechados. Hoje todos estão bem consolidados e, ainda que haja taquaras enroscando na mochila, é muito fácil identificar e seguir o caminho. Emergindo do primeiro trecho de mata nebular eu estava completamente encharcado, dos pés a cabeça.
Nem mesmo a camiseta escapou, embora utilizasse um ótimo anorak – as bordas que encostavam na calça absorviam a água o que, somado as gotas que corriam pela nuca, a deixou completamente molhada também. Naquele momento eu precisava mesmo é de uma roupa de neoprene para praticar montanhismo.
Quem lê meus relatos sabe que não sou de exagerar ou supervalorizar as dificuldades enfrentadas, mas dessa vez foi realmente osso! A temperatura ambiente deveria estar próxima dos 18º C, mas o vento frio e as roupas naquele estado aceleravam a perda de calor corporal, levando a um risco real de hipotermia subaguda.
Meus dedos das mãos estavam brancos e até um pouco sem sensibilidade por conta da má circulação. Para evitar piorar a situação praticamente não parei de caminhar dali em diante, mantendo o corpo em movimento e gerando calor, o que me fez avançar substancialmente.
As 11:00 atingi o cume do tabuleiro, sete horas do que havia programado conforme o relato. A garoa ainda caía e tudo ao redor continuava cortinado. Me desapontei profundamente quando vi uma grande torre de transmissão instalada ali no cume da montanha e, bem ao lado, os restos de uma outra aparentemente estragada, artefatos que em nada combinam com aquele lugar! Larguei a mochila ali para tomar uns goles de água e, surpreendentemente, avistei outras duas pessoas vindo em minha direção.
Assim conheci o Pedro e seu amigo (peço desculpas por não recordar de seu nome), que com dois minutos de conversa se mostraram profundos conhecedores das montanhas e serras catarinenses. Embora tenha criado uma grande afinidade com ambos não esperei por eles, pois o frio voltava a castigar. Tomei meu rumo para terminar a travessia ainda neste dia.
Antes de eu começar a descer o Pedro teve a bondade de me oferecer carona de volta para São Bonifácio, o que facilitaria demais a minha vida, mas, sinceramente, fiquei receoso em aceitar pois os faria desviar 90 km de seu destino (45 de ida + 45 de volta).
Conforme perdia altitude a massa de ar se dissipava e eu podia finalmente avistar os vales ao redor do Tabuleiro, mesmo assim não parei para fazer fotos. Sabia que na base da montanha há um local chamado Café do Tabuleiro e meu foco era chegar lá, trocar de roupa e tomar uma bebida quente. Fiz tudo isso perto das 14 horas, já com o corpo quente e com aquele sentimento inexplicável de concluir mais um desafio pulsando em minhas veias.
Conversando com o pessoal local descobri que a logística de ônibus para voltar até o início da trilha era um tanto complicada, por isso, aguardei até meus novos amigos de montanha chegarem ali e aceitei a carona que me ofereceram. Pedro, eu não teria outra forma de finalizar este relato senão tentando colocar em palavras a profunda gratidão pela ajuda que vocês me deram… Muito obrigado! Muito mais do que conhecer lugares incríveis e acumular cumes, são estes momentos que expressam a verdadeira essência do montanhismo, histórias singulares que levarei comigo para a vida…