Um relato fiel dos acontecimentos na Travessia da Serra Fina realizada por mim e meus companheiros de Nas Nuvens Montanhismo entre os dias 06 e 08 de abril passado.
Posso dizer, sem exageros, que foi a Serra Fina que me levou ao montanhismo. Em meados do ano 2000 tive a oportunidade de ler uma matéria na extinta revista Nez Adventure que tratava da Travessia da Serra Fina bem como a redefinição dos valores de altitude da Pedra da Mina (2797 m), seu ponto culminante. O geógrafo Lorenzo Bagini coordenou o trabalho de medição chegando ao número aceito hoje em dia para sua altitude: 2.797 metros sobre o nível do mar, tornando-se assim a quarta montanha mais elevada do Brasil. Nesta matéria a travessia era tratada como uma grande aventura por algumas das mais altas montanhas do país. Minha paixão pelas montanhas ainda não havia despertado, e tudo se resumia a livros e sites na internet. Nada de vida ao ar livre, de verdade, nas montanhas. À partir deste relato senti os ânimos crescerem e decidi de vez partir para as montanhas, iniciando pelo Pico Paraná. Mas essa é uma outra história que ficará para uma outra oportunidade. Quero apenas citar que foi por causa da Serra Fina que iniciei nas montanhas um novo período de minha vida.
Finalmente eu tive uma oportunidade de retornar àquelas montanhas. No ano de 2004 eu por lá estive no intento de realizar a travessia em um único e longo estirão de um dia. Por alguns erros de planejamento e estratégia tal feito não foi possível.
Quase um ano e meio após o pessoal do Nas Nuvens Montanhismo resolveu retornar para a Mantiqueira, desta vez para fazer a travessia com calma, em três dias.
Os procedimentos foram os mesmos da tentativa anterior: Fechar um grupo, contratar um serviço de van e traçar estratégias. Concluídas essas fases, partimos da capital paranense da noite do dia 05 de abril, uma quinta-feira. Eis os integrantes: Natan, Michelle, Juliano “Pereira”, Leandro “Bolívia”, Ângela, Vinícius, William, Alisson e Rodrigo, este recrutado às pressas para a viagem.
Por volta das onze e meia da noite já avançávamos pela Régis Bittencourt, sentido São Paulo, onde chegamos por volta das cinco da manhã. Contornando a capital paulista pelo Rodoanel Mário Covas, caímos na Via Dutra e Mr. Paul, condutor da van, sentava a lenha no acelerador, dentro dos limites impostos pela legislação. Nossa última parada antes do desembarque no sopé da Serra Fina, foi em um posto de gasolina pouco antes da cidade de Cruzeiro, Vale do Paraíba. Neste momento, pouco antes do amanhecer o tempo se mostrava encoberto, com chuviscos em certos trechos.
Bastou cruzar a divisa de estados, entrando nas Minas Gerais através de um passo muito bonito, que o tempo começou a abrir e foi possível vislumbrar um belo céu azul. Mr. Paul conduziu então a Van pelos tortuosos caminhos que nos levariam à Sede da Fazenda Toca do Lobo, início da travessia.
Após uma noite mal dormida sacolejando na estrada, a ansiedade era grande para jogar a mochila às costas e partir. Após ruidosas despedidas e gritos de ânimo, Mr. Paul nos deixou na estrada e continuamos no restante do trecho a pé mesmo. Seria imprudente continuar com o veículo naquelas pirambeiras. O local, data e horário marcados para nosso resgate era domingo ao meio-dia no Sítio do Pierre, a longos quarenta e poucos quilômetros de caminhada pela Mantiqueira, do outro lado da serra.
Às oito e meia de um sábado, 06 de abril de 2007 pus o pé na trilha, à partir da Toca do Lobo, onde chega ao fim o trecho de estrada de chão e inicia-se a trilha de fato. Cruzando-se o riachinho a piramba logo de cara assusta. Uma florestinha chata e muito úmida da neblina que naquele momento começou a baixar na região. Realmente, aqueles poucos minutos de estrada em Minas foram os únicos em que tivemos o céu azul como companhia.
A subida em direção ao primeiro cume mostrou-se dura, nos custando em torno de 40 minutos para atingir o Cruzeiro (1783 m), primeiro dos cumes desta travessia. Em mais 45 minutos chegamos ao Quatzito (2020 m), onde pude fazer umas imagens iniciais para o vídeo que ilustra esse artigo. O desnível no primeiro dia mostrava-se como o principa desafio a ser enfentado, além da longa distância que nos separava ainda do local pretendido para o primeiro pernoite. Asa (2450 m) era o sugestivo nome da montanha que intentávamos alcançar. Seria um longo dia de caminhada, a despeito da má visibilidade que encontrávamos e dos obstáculos da trilha, principalmente densos bambuzais, crescidos pelo recente verão que havia pouco ficou para trás. O Alto do Capim Amarelo (2491 m), primeira das grandes montanhas da travessia, nos consumiu em torno de quatro horas de caminhada, pouco menos para uns, pouco mais para outros. Os primeiros aguardaram os desgarrados afim de nos reunir em marcha coesa, pois daqui para frente a dificuldade de orientação aumentaria, bem como o desgaste que se abateria sobre os integrantes da expedição.
No Alto do Capim Amarelo encontramos um grupo de Juiz de Fora, com quem trocamos algumas impressões sobre as condições atmosféricas e o desejo mútuo de que o tempo abrisse para que pudéssemos aproveitar os belíssmos cenários que a Serra Fina proporciona. Da aventura anterior eu guardava na memória belíssimas cenas de profundos vales e vastos rochedos nas altas montanhas. Agora era somente eu, o vento e a neblina… Até mesmo os companheiros se distanciaram um pouco na frente, podendo assim desfrutar de alguns momentos da mais bela solidão durante a caminhada. Porém, pouco adiante do Capim Amarelo a trilha começou a apresentar dificuldades inesperadas, novamente com bambuzais vitaminados. Encostei no grupo e fomos juntos tentando localizar o caminho correto. Este trabalho extra foi provocando um crescente atraso e uma fadiga não prevista, o que reduziu em muito nosso ritmo de avanço. Os planos tiveram que ser alterados, sendo decidido que acamparíamos logo após encontrarmos água, que acreditávamos dispor em algum lugar entre os acampamentos Maracanã e Dourados (2285 m). A navegação foi se tornando cada vez mais difícil e estava ficando complicado entender onde estávamos. Por volta de quatro e meia da tarde passamos por uma área de acampamento e logo após perdemos o rastro da trilha. O mato crescera muito durante o verão. Em um dos carreiros encontrados notamos indícios de água nas proximidades, já que a trilha parecia levar para um pequeno vale. Não acreditando que aquela fosse a continuação da trilha rumo ao Dourados e o Asa e sim aquela que nos levaria a uma fonte de água, alguns de nós largamos as pesadas mochilas cargueiras e palmilhamos cada metro adiante até ouvirmos o doce ruído de água corrente. Havíamos encontrado a bendita água, feito comemorado efusivamente em nossos rádio-comunicadorses com o restante da equipe. Outros integrantes de nosso grupo resolveu explorar a área de acampamento, encontrando com certa dificuldade a continuação da trilha que nos levaria novamente à afilada crista da serra. Por consenso geral resolvemos permanecer por ali para pernoitarmos. Passada a tensão geral que ameaçava instalar-se devido ao adiantado da hora analisamos com calma os mapas e descobrimos que estávamos na verdade no Acampamento Dourados. Assim que começamos a montar as barracas começou a chegar o pessoal de Juiz de Fora. Encantados com a notícia da água farta e fresca resolveram permanecer por lá mesmo também, já que havia lugar para todos. Em pouco tempo preparamos uma refeição quente, com cardápios dos mais variados, indo desde o tradicional miojo até a mais caseira polenta com carne de panela!!! Uma garrafa de vinho entrou na roda e sumiu tão rapidamente quanto apareceu. Estávamos todos muito cansados, acumulando esgotamentos causados pelo dia anterior de trabalho e pela noita mal dormida no lotação. Pela primeira vez em meus anos de montanhismo vi todos do grupo caírem no sono antes das sete da noite.
Aos primeiros clarões da manhã que se aproximava despertei. Havia uma certa agitação do lado de fora. Era o pessoal de Minas que se preparava para uma antecipada partida rumo à continuação da trilha. Antes das sete da manhã todos eles já haviam deixado o acampamento, feito este que só logramos êxito por volta das oito e meia da manhã. A intenção dos dois grupos era atingir o cume do Pico dos Três Estados (2656 m) neste dia, o sábado, segundo de caminhada. Os mineiros levaram mais a sério essa questão e saíram na frente. Assim que começamos a caminhar, novamente com tempo fechado os bambuzinhos começaram a nos tomar as forças e a paciência. No entanto após uns trinta minutos de caminhada despontamos finalmente no alto da crista e o terreno melhorou muito, conseqüentemente nosso rendimento. A caminhada voltou a ser feita por sobre as cristas e o tempo ameaçava dar uma melhorada, permitindo algumas belas imagens. Mantivemos o ritmo forte e o grupo coeso, numa balada constante. Após nos abastecermos de água no local conhecido como Cachoeira Vermelha, partimos a um dos mais aguardados desafios: a ascensão da Pedra da Mina, ponto culminante da travessia, de forte pendente e de ventos furiosos que passaram a nos acompanhar. Foram momentos de pura energia, sentindo a força do vento e o corpo a nos cobrar uma disposição que só pode vir de alguma manifestação divina. Sensação maravilhosa atingir o alto desta montanha, principalmente para mim, pela história toda envolvida.
Alguns minutos de celebração no cume foram suficientes para duas decisões: Bolívia e Ângela abortariam ali a travessia, preferindo descer pela Trilha do Paiolinho, visto que o desgaste para o casal já era intenso. A outra decisão era de que deveríamos partir logo se quiséssemos atingir o Três Estados no mesmo dia. Os mineiros já haviam deixado a Pedra da Mina e seguiam a todo vapor. Não que houvesse competição, pois na verdade admirávamos a dedicação deles para atingir o objetivo do dia. Tínhamos que fazer nossa parte também. E o Pico Três Estados ainda estava longe, muito longe… Nosso ritmo tornou-se um pouco mais acelerado e em poucos minutos atingimos o sublime local conhecido como Vale do Ruah. Impossível explicar com palavras a beleza do lugar. Em toda a minha vida nas montanhas conheci lugar tão belo, posso afirmar com toda certeza. Percorrer aquele vale foi uma das melhores coisas que fiz na vida. Eu adoraria que aquele momento se estendesse indefinidamente. No entanto fazia-se urgente caminhar e caminhar. Após uma certa dificuldade em encontrar o caminho correto na hora de deixar o vale e voltar às cristas, iniciamos a ascensão do Brecha (2568 m), onde tomamos a decisão de não prosseguir rumo ao Três Estados e sim apenas até o Cupim (2530 m). Já havíamos alcançado os mineiros e até mesmo os deixado para trás, já que alguns de seus integrantes demonstravam sentir a dureza do percurso. O tempo infelizmente continuou não colaborando com nossa excursão, mas mesmo assim foi possível valorizar cada pequeno instante de abertura de nuvens… E assim, passo a passo, atingimos o Cupim, por volta das cinco da tarde. Todos exaustos, com mochila carregada de água para passar a noite e ainda o dia seguinte de caminhada, já que nada haveria de fontes disponíveis até praticamente o final da travessia. E ainda guardávamos o desejo de alguma abertura nas nuvens e pudéssem os contemplar um pôr ou um nascer do sol. Vã esperança…
Após ocupar os poucos locais disponíveis para acampar e preparar o jantar dormimos uma vez mais em pouco tempo, já que seria necessário iniciar a caminhada ainda mais cedo que da vze anterior.
E assim foi: às sete e quinze da manhã iniciamos a jornada que entendíamos ser a mais tranqüila de todas, pois nos restavam apenas mais dois cumes antes de iniciar a descida ao Sítio do Pierre. Ledo engano. Não com relação ao número de cumes mas sim quanto à facilidade de ascendê-los. Tanto o Três Estados, como, principalmente, o Alto dos Ivos (2513 m) nos cobraram duplicados esforços, principalmente porque entre eles haviam os mais terríveis bambuzais que eu já havia percorrido em toda a minha vida. Além disso o vento aumentara de intensidade comparado com os dias anteriores e nos locais expostos percorridos nas cristas a situação tornava-se perigosa, pois uma rajada poderia facvilmente nos derrubar. Além disso a sensação de frio aumentava proporcionalmente.
Após as devidas comemorações nestes dois cumes grande foi a satisfação de iniciar a descida, descambando em uma floresta de altitude, não sem antes enfrentar alguns bambuzais… O mapa nos indicava uma longa distância ainda a ser percorrida, mas nada importava mais. A travessia estava perto de seu término, sendo realizada com absoluto sucesso, onde o companheirismo e a camaradagem entre seus membros foi mais importante que a velocidade da caminhada e as condições atmosféricas. Nunca valorizei tanto a companhia de meus irmãos de Nas Nuvens Montanhismo como nesta empreitada. Um ajudava o outro, os diferentes perfis de cada um dos integrantes da trip formavam uma simbiose muito difícil de encontrar em outros grupos. Um verdadeiro casamento de dez pessoas!!! Cada um com seu estilo impôs uma marca, um diferencial, que no final das contas fez com que essa expedição fosse um evento muitíssimo bem sucedido, tanto em resultados práticos (a conclusão da travessia) como em satisfação pessoal decorrente de fatores muitas vezes deixados de lado em atividades deste tipo (como o desprendimento, a ausência de egoísmo, a fraternidade, o bom humor).
Precisamente às duas e quinze da tarde avistamos Mr. Paul e o veículo guerreiro que enfrentou as pirambas das Minas Gerais com valentia.
Partimos desesperados rumo à uma pousada onde já estava previamente acertado um banho e uma cervejinha para cada um, recepção mais que merecida para estes aventureiros.
Obtivemos notícias do Bolívia e da Ângela, que nos aguardavam em Passa Quatro. Tudo havia corrido bem para eles também! Assim que os resgatamos partimos rumo à Via Dutra, com certeza muito pior de enfrentar que os bambuzais terríveis, pois congestionamentos jamais serão mais agradáveis que os mais duros perregues de trilhas…
Era alta madrugada quando fui abandonado aqui em minha casa, no conforto de minha cama, para um breve devaneio antes de cair em sono profundo, reflexo de toda energia aplicada em intensidade única em uma viagem que certamente marcará profundamente minha vida!
Serra Fina, eu voltarei!
Para evitar “pesar” muito este espaço não publiquei aqui as fotos da trip, preferindo deixar o link para um clipe que fiz e disponibilizei no you tube: http://www.youtube.com/watch?v=vXMn0F-sD2c
*Este texto foi escrito ao som de Oasis e Radiohead.