Travessia do Mont Blanc

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Enquanto se recupera da tragédia vivida e tenta retomar o ritmo normal de sua vida, Kilian Jornet, relata sua aventura do Mont Blanc e o acidente fatal de seu amigo Stephane Brosse. “Apenas um instante separa a felicidade da dor. Tudo se decide em poucos milímetros, em décimos de segundo

 

O despertador dispara a meia noite. Em silencio vestimos nossos macacões de esqui. Tomamos um chá quente com biscoitos e deixamos as mochilas preparadas. Um par de crampons, um piolet, gorro, um casaco de plumas, óculos, luvas quentes, um anorak de goretex, alguns géis e 20 metros de corda que seriam nossos companheiros nas próximas horas.

Caminhamos em silencio até as Contamines. Nenhuma nuvem no céu. A uma da manhã tomamos a direção de Tré la Tête. Nico Mermoud e Anna Frost vieram nos acompanhar nestes primeiros passos, até que uma hora mais tarde adentramos o glaciar com os esquis.

Continuamos subindo o imenso glaciar de Tré la Tête disfrutando do magnífico espetáculo das montanhas brancas nos envolvendo, iluminadas por um mar de estrelas que brilha sobre nossas cabeças. Vemos uma estrela cadente.

As quatro e meia da manhã chegamos em cima dos Dôme de Miage.

Começa a amanhecer. Vemos que a face norte está toda branca. Parece mais atraente deslizar com os esquis, flanqueando pela parede até Duri, do que percorrer a aresta caminhando.

Stephane começa a descer da aresta, a neve parece boa. Desce com cuidado, fixando o piolet para se assegurar a cada passo. Dez metros abaixo se detem:

            – “A neve está um pouco congelada, mas creio que podemos passar”.

Começo a descer com o piolet, pouco a pouco. Chego ao gelo e consigo frear com o piolet. Estamos suando. Uns mil metros de gelo desabam na escuridão bem abaixo de nossos pés. Ficamos em dúvida, a travessia com os esquis nos parece cada vez mais difícil. O que parecia uma macia capa de neve é na realidade uma rígida placa de gelo. Decidimos guardar os esquis e subir com os crampons e o piolet até a aresta. Uma hora de nervosismo e suor para voltar ao mesmo lugar!

Descemos pela aresta tentando recuperar o tempo perdido. Desejamos descer com segurança, com algumas desescaladas e um pequeno rapel de 10 metros, onde teremos que usar a corda.

Finalmente chegamos ao refúgio de Duri, onde começa a parte mais técnica da travessia. A primeira parte da aresta de Bionnassay é fácil, até chegarmos ao esporão de rocha. Não identificamos nenhum traçado. Havíamos estudado as descrições da via que sobe pela face norte. Iniciamos escalando pela rocha, seguindo alguns indícios e adentrando na face norte até um diedro coberto de neve. Uns 100 metros da estreita goulotte nos conduzem até uma aresta segura.

Chegamos a Bionnassay. Uma imagem magnífica com o sol se levantando por detrás do Mont Blanc. Caminhamos sobre a afiada aresta com o vale de Chamonix e Aosta debaixo de cada pé. Avançamos com muito esforço. A neve acumulada nos últimos dias afunda até as canelas. No meio da aresta decidimos calçar os esquis e descer até o selado de Bionnassay.

Durante a subida para o Dôme de Gouter começa a soprar da Itália um vento forte, que faz despencar a temperatura e o frio toma conta de nossos corpos. A altura se soma ao cansaço de oito horas de esforços contínuos, fazendo com que a subida pela aresta, desde Bosses até o Mont Blanc, pareça infindável.

Chegamos ao Mont Blanc sozinhos. O vento forte, com ragadas de 100Km/hora ou mais, faz com que não haja ninguém na parte alta da montanha. Um momento mágico, nós dois sozinhos sobre os Alpes, no meio de nossa aventura.

Sem demorar mais que alguns minutos começamos a descer para o Mont Maudit. A neve está dura, mas desejamos esquiar rápido. Depois de uma rápida olhada para a Maudit e nos surpreendemos ao ver a face norte por onde vamos descer. A parede é um muro azul. Não existe traçados, uma pequena língua de neve nos permite descer uns poucos metros com a técnica de piolet-esqui até chegar as cordas fixas que existem no verão e descer até o Coll de Tacul procurando o caminho entre os seracs.

A descida do Tacul é fácil com a neve cobrindo a rimaya. No Coll de Midi percebemos o calor excessivo. Seguimos deslizando a grande velocidade pelo Vallée Blanche para não perder o embalo, uma vez que a neve está cada vez mais pesada e os esquis afundam cada vez mais.

 

Vamos abrindo uma rota pela Mer de Glacê. Descemos e saltamos as grandes gretas at´pe chegar a Salle em Manger onde tiramos os esquis para cruzar a grande morena de pedras. O calor tornava-se insuportável, bebemos água do glaciar e iniciamos a subida pelas escadarias até o refúgio. Stephane está muito cansado depois de 14 horas de esforço e quase 6.000 metros de desnível.

Me adianto para examinar as condições nas Courtes, o forte calor nos faz temer grandes deslizamentos. No glaciar de Couvercles encontro com Viviam e Bastiem que descem do Coll dês Droites. Não poderiam continuar, como temíamos, o calor desta hora provocava grandes avalanches e a neve estava muito instável. Voltamos juntos ao refúgio onde Stephane esperava.

Não tivemos dúvidas nem por um momento. Não podíamos continuar, tínhamos de pensar na segurança. Nos resignamos a esperar o regelo, abrigados no refúgio, para continuar na manhã seguinte. Passamos a tarde recordando as sensações intensas vividas ao longo da manhã, contando piadas sobre estas montanhas, discutindo com guias e alpinistas os novos projetos para o futuro, até que o sol foi se apagando e caímos no sono.

17 de Junho de 2012

As cinco da manhã nos colocamos novamente em marcha. Stephane está totalmente recuperado e avançamos em grande velocidade sobre o glaciar e subimos até o Coll dês Droites onde alcançamos as cordadas (grupos de alpinistas) que haviam partido do refúgio a uma da madrugada.

Começamos a abrir caminho pela aresta desde Courtes, com alguns trechos congelados onde conseguimos passar tranqüilos com o piolet. A NNE dês Courtes se apresenta fantástica, com neve durante todo o trajeto. Stephane desce na frente, como sempre, faz um primeiro giro para testar a estabilidade da neve e depois se lança fazendo grandes giros pela impressionante rampa de 50º. Chegamos ao pé da canaleta com um enorme sorriso, nunca havíamos descido esquiando por esta rampa em tão boas condições. A rimaya já é outra história. Uma parede de uns quatro metros com uma grande greta aos pés que corta nosso caminho.

– “Precisaremos de um grande salto” – diz Stephane, mas eu estudo onde ancorar a corda para descer. Não há tempo para pensar. Ao meu lado, vejo Stephane tomando embalo.

– “Faça pick up truck e salte” – Salta com facilidade e consegue estabilizar uma dezena de metros mais abaixo.

– “Venha! Tome impulso e pule”.

Fico encorajado! Respiro fundo e salto, vejo como a greta cresce debaixo dos esquis. Bato na neve e tento me controlar. A neve profunda me lança a frente e começo a rodar para baixo. Consigo frear aos pés do Stephane e desandamos a rir.

Iniciamos a subida em “Y” das Aguille de Argentiere a grande velocidade, a neve está dura e permite uma rápida subida com os bastões e a ajuda dos piolets de vez em quando. A frente vemos Sebastien Montazer e Bastien Fleury. Vamos ganhando terreno e ao chegar na saída do Couloir nos encontramos os quatro com rostos muito alegres.

Comemos juntos e comentamos todas as peripécias das últimas horas e também conversamos sobre novos projetos. Desfrutamos o momento e só nos resta aproveitar uma imensa descida. Os pássaros planam ao nosso entorno, aproveitando as correntes de vento e os alimentamos com nossas sobras. É pura felicidade.

Começamos a caminhar novamente entre os cumes da Aguille de Argentière. Eu por dentro, pela face oeste. Stephane me segue por fora, a dois metros e meio da cornija. Seb e Bastien seguem o traçado de Stephane e se detem por um instante, quando me viro para ver o que está acontecendo e tomo consciência que por detrás disso existe uma grande cornija, levanto o bastão para alertar o Stephane.

Apenas um instante separa a felicidade da dor. Tudo se decide em poucos milímetros, em décimos de segundo. A cornija em que está Stephanes se rompe derrubando-o com uma grande quantidade de neve. Uma placa de uns três metros de largura por seis de comprimento.

Fica tudo escuro. Corremos olhar aonde caiu e decidimos chamar o P GHM (Socorro Alpino). Bastien desce a Argentière para dar o aviso enquanto fazíamos o contato. Esperamos pelo helicóptero. Os segundos se convertem em horas e o tempo parece parar.

O helicóptero se eleva com Stephane que não sobreviveu a uma queda de mais de 600 metros na face leste do Argentière.

Stephane morreu da mesma forma que viveu. Com alegria, em silêncio, sem gritar, sem fazer nenhum ruído. No seu auge, com a humildade e a elegância que caracterizou toda a sua vida. Caiu suavemente como cai uma árvore.

Agora restam dias difíceis, dias onde procuramos os porque, os “E se…”, dias em que os amigos e a família precisam de apoio mútuo. Deixou um vazio que não podemos preencher e permanecerá para sempre. A imagem nunca desaparecerá, porém seu legado, todos os momentos vividos, tudo que nos ensinou na montanha e fora dela também nunca desaparecerá. Sempre estará presente nos cumes que chegaremos a partir de agora.

Com Stephane tínhamos muitos projetos, primeiro como ídolo, depois mentor e finalmente, amigo. Havíamos muitas vezes falado das montanhas que queríamos escalar, dos sonhos que queríamos realizar. “Seguiremos em frente por você, Sep”.

Escolhemos um estilo de vida, um veículo, a montanha, e somos conscientes dos riscos. E sabemos que apesar de querer controlar todas as variáveis incontroláveis, existem riscos que não podemos antecipar, que não dependem de nós. Viver a vida com entusiasmo. A morte é o fator que iguala todos os homens; é a única certeza. A montanha nos proporciona muitas coisas, mas também pode nos tirar outras e nada se há de fazer porque é lá que está o ar que necessitamos para respirar.

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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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