Travessia Mista, Mar de Caratuvas x Tucum

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No Paraná temos escaladas e caminhadas de grande qualidade e não é por acaso o elevado desempenho de nossos montanhistas e escaladores, mas nos faltam vias longas de 500 metros ou mais. Uma das poucas exceções é a Mar de Caratuvas na face Oeste do Ibitirati com aproximadamente 640 metros de parede quase inteiramente povoada pelas caratuvas, que muito dificultam a navegação e inibem as repetições.

Cruel, Natan e Juliano no final da Travessia Mista, Mar de Caratuvas x Tucum.

A Mar de Caratuvas é uma via aberta nos anos 80 pelo Clube Paranaense de Montanhismo (CPM) que recentemente também a revitalizou com novas proteções fixas e conta com um excelente croqui pós restauração desenhado por Gustavo (Tavinho) Castanharo.

Esta via clássica do montanhismo paranaense sempre constou na minha lista de desejos, mas apesar da sua relativa proximidade inevitavelmente algum empecilho sempre se interpunha entre nós. Depois de escalar inúmeras vias longas e complexas longe de casa, a falta da Mar de Caratuvas já estava incomodando, mas depois de tanto tempo na espera queria uma experiência inusitada.

Analisei as cartas planialtimétricas juntamente com Juliano Pereira dos Santos e encontramos uma linha perfeita, lógica e muito bonita se iniciando em Bairro Alto (Antonina) para terminar no Sítio da Bolinha. Agregando com elegância as complexas esticadas de corda com longas e exaustivas caminhadas, muito exercício de orientação e logística, sempre terminando nos cumes. É tudo o que mais gostamos.

Desembarque da viatura em Bairro Alto

Recentemente havíamos feito uma prévia do percurso caminhando até a base do Itapiroca e subindo ao cume pela via 10 anos para depois atravessar o vale e encarar a via 10 Anos Depois no Tucum. Mas para incluir a Mar de Caratuvas o tempo teria que estar perfeito e foi o que aconteceu em 21 de agosto de 2021, sendo ainda agraciado por Lua cheia.

Os retardados, Natan, Juliano e Cruel

Iniciamos a caminhada as 16h00 em Bairro Alto agora acompanhados pelo Adriano (Cruel) José Safiano, parceiro de longa data com quem desenvolvemos grande afinidade na escalada. Lentamente fomos adentrando a mata pela Trilha/Estrada da Conceição até ultrapassar a ponte de troncos sobre o Rio Cotia para em seguida derivar a esquerda até o Disco Porto. Com o cair da noite também a temperatura despenca e prosseguimos por dentro do riacho até a base da via. Última chance para beber água fresca e cada um ficou mais pesado carregando 5 litros do precioso líquido que precisaria durar pelas próximas 24 horas.

A subida é forte e muito íngreme antes do primeiro trecho de corda fixa. O Cruel é o primeiro a encarar a canaleta vertical e suja, encontrando 2 chapas em dupla antes de continuar escalaminhando. Logo nos reunimos para o segundo lance de corda fixa num diedro barrento.

A noite estava fria e perfeita com a claridade da lua cheia iluminando de cima o compacto mar de nuvens e por um momento nos distraímos. Julgávamos ter alcançado a P2 e nos encordamos para chegar na P3. Comecei guiando em meio a uma floresta de caratuvas sem rastro algum. Subi muito a procura das proteções indicadas no croqui até me dar conta da roubada. Não havia mais retorno e a direita se desenhava um vazio, então gritei:

– Me fodi aqui piazada! Vou tocar a esquerda para ver se acho alguma coisa.

Segui tateando cuidadosamente, lutando contra o arrasto da corda, a procura de uma fenda para instalação de alguma peça móvel para acalmar a mente. Finalmente escapando das caratuvas, alcanço um platô na rocha e avisto uma fita reflexiva 10 metros acima. Ainda suando frio, monto a parada e libero a corda para os amigos experimentarem do veneno dentro do mato fechado e vertical. Tocava as badaladas das 23 horas e estávamos perdidos na via sem entender o croqui. O cansaço, a confusão e a fome não são boas conselheiras e resolvemos esticar o esqueleto bem onde estávamos. Mas no platô só cabiam 2 e sobrou apenas um pedaço de trilha quase plana para mim.

Durante o jantar queimamos os neurônios para nos localizar no croqui e eureca! Estávamos bivacando na P1. No escuro confundimos a P0 com a P2 e furamos o planejamento, mas agora podíamos dormir sossegados.

Primeiro bivaque

O sol ensaiava despontar e já estávamos encordados com o Cruel puxando a primeira enfiada sobre um diedro barrento e sujo que termina num lance de sexto grau. A pesada mochila ajudou na primeira vaca e o Cruel despencou, mas bom cabrito não berra, voltou a guiar sem o tampão de um dos dedos e mais algumas escoriações nas mãos, venceu o lance e seguimos nos revezando na ponta da corda até o platô Jean Claude onde havíamos planejado pernoitar. Este platô é apenas mais espaçoso e coberto de mato.

Cruel puxando a primeira enfiada do dia

Juliano seguindo para a P3

Cruel como sempre concentrado na seg.

Platô Jean Claude

As enfiadas se sucediam com o calor do Sol fritando os miolos e a água devidamente racionada. Um litro d’água por enfiada era nosso maior desejo e o arrasto da corda quintuplicava o esforço. A via realmente justifica o nome exigindo muita atenção na navegação em meio a um verdadeiro mar de caratuvas. Para alcançar a P7 passei veneno percorrendo 55 metros com apenas 2 proteções escondidas pelas caratuvas e quase no final suei sangue para chegar na parada.

O trecho em pedra razoavelmente limpa entre a P8 e a P9 se sagrou como a enfiada mais bonita da via com lances bem mais divertidos do que os anteriores, mas o Juliano já vinha racionando os últimos vestígios de água e a tempos nem bebia, somente molhava a boca. Toda a preocupação e o esforço agora eram direcionados para finalizar a via ainda com luz do dia. O visual na penúltima enfiada é fantástico e não encontrando os bicos de pedra para proteção estiquei demasiado a corda.

Saci.

Juliano na sua primeira guiada do dia

A orientação em meio a tanto mato não é fácil algumas vezes

Eu na ponta da corda

Depois de 11 horas de esforço contínuo finalizamos a via Mar de Caratuvas, as 17h30 sem mais uma gota d’água. Vagarosamente alcançamos o cume do Ibitirati, cruzamos pelo União e na escuridão da noite chegamos ao Pico Paraná.

Entrando na penúltima enfiada

Final da via Mar de Caratuvas

Findou a solidão e o distanciamento da parede vertical onde só se ouvia o barulho do vento e o cantar de algum pássaro distante. O cume estava superlotado de barracas e turistas apertados naquele pequeno espaço. Impossível cruzar sem tropeçar num cordolete ou pisar em alguém mais distraído. O Juliano estava seriamente desidratado e torcendo as pets conseguimos extrair algumas gotas d’água que dividimos com parcimônia antes do Cruel se adiantar na descida para tentar a sorte na bica atrás do Abrigo de Pedras. Era a cartada final para evitar uma caminhada desgastante até o Abrigo Um (A1).

O Abrigo Dois (A2) estava igualmente superlotado de barracas e deixando o Juliano como guarda volumes, cuidando das mochilas fui ao encontro do Cruel que extraia água da pedra. No retorno encontramos o Juliano segurando um pastel em cada mão, mas o altruísmo não era para nós.

– Não consegui engolir sem antes tomar um gole d’água. – Se justifica como pode.

Ganhou os pastéis de um turista piedoso pela sua aparência de acabado e não conseguiu devorar com a boca seca. Comemos e bebemos até nos fartar, mas arranjar um espaço para deitar o esqueleto foi outra odisseia. Onde não havia barraca estava minado com dejetos biodesagradáveis, mas depois de muito circular finalmente encontramos um pequeno espaço forrado de capim macio que nos proporcionou uma boa noite de sono apesar da gritaria geral e da Lua cheia iluminando diretamente nossos rostos.

Bivaque no Abrigo 2

Domingo de manhã, último dia de travessia

O dia amanhecia radiante e temperatura agradável quando iniciamos o desjejum as 5h30’ e uma hora depois já estávamos a caminho do Itapiroca antes que a zoeira no A2 recomeçasse. Pouco depois das nove horas um Juliano refeito já guiava na via 10 Anos que faz referência aos 10 anos de camaradagem dentro dos Nas Nuvens Montanhismo (NNM). Seria uma escalada curta e tranquila sem o cansaço acumulado e os pés quadrados. Depois de um pequeno vara mato chegamos ao cume onde nos comunicamos com o Rodrigo (Xandão) Barbosa que pernoitou no Camapuã e com a Luciana (Lu) Kielt que estava a postos para o resgate.

Na crista para o Abrigo 1

Juliano puxando a guiada da 10 Anos

Cume do Itapiroca

Neste final de semana a serra estava apinhada de gente e a todo instante cruzávamos com mochileiros antes de despencar morro abaixo pela trilha barrenta da Crista do Itapiroca, mas água há muito deixara de ser problema e as 14h00 encontramos com o Xandão no Tucum e seguimos juntos para a base da via 10 Anos Depois. Pelos 300 metros seguintes escalei em dupla com o Cruel enquanto o Juliano subia com o Xandão. A escalada de pura aderência foi tranquila e nem teríamos condições físicas para encarar algo mais complicado. Já no finalzinho paramos para as fotos da Lu que nos esperava entusiasmada.

As 16h30” finalizamos o último lance de escalada e restava ainda a longa pernada até o sítio da Bolinha onde o Leandro (Bolívia) Pereira da Silva nos esperava com cervejas estupidamente geladas. O Bolívia e a Luciana estavam ali para fazer nosso resgate e ainda tinha o carro do Juliano para recuperar em Bairro Alto além de deixar cada escalador em sua residência.

Piazada na via 10 Anos Depois.
Foto: Luciana Kielt

A Travessia Mista Mar de Caratuvas x Itapiroca x Tucum foi uma das coisas mais legais que fiz até hoje. Mesclar montanhismo tradicional com escalada era uma coisa que a tempos o Nas Nuvens vinha idealizando. A parceria e sincronia com o Juliano e o Cruel foi muito boa, escaladores fortes e experientes, conseguimos manter o bom humor e o clima descontraído e divertido durante o tempo todo, mesmo nas horas de aperto. Obrigado Piazada, realmente foi um tesão!

Obrigado também a Luciana e ao Bolívia pelo resgate de alto nível que nos proporcionaram. Também agradeço a todos os amigos do Nas Nuvens Montanhismo e do Clube União Marumbinismo e Escalada que acompanharam e torceram por nós nesta travessia mista.

 

Juliano, Luciana, Cruel, Xandão e Natan.
Cume do Tucum final da travessia.

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Sobre o autor

Natan Fabrício Loureiro Lima é montanhista e escalador de Curitiba PR. Ele foi por muitos anos presidente da Associação Nas Nuvens Montanhismo e da Federação Paranaense de Montanhismo, atuação que o levou a ser nomeado vice presidente da Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada. Se destacando na exploração de trilhas e montanhas afastadas na Serra do Mar, Natan passou a escalar em rocha, onde prefere vias tradicionais e também alta montanha.

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