Travessia Morro da Igreja – Canion Laranjeiras Pt I

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Passo a relatar a seguir uma travessia que mobilizou montanhistas dos três estados do Sul do Brasil em prol de um objetivo comum: a consolidação do Parque Nacional de São Joaquim e a consagração do direito de acesso às áreas de conservação federais sob gestão do ICMBio. O relato é extenso e as fotos não estão todas publicadas aqui. Veja ao final os links para o material complementar. Travessia realizada entre os dias 07 e 10 de junho de 2012 (feriado de Corpus Christi), entre o Morro da Igreja e dois pontos distintos de saída – Cânion Laranjeiras e Serra do Rio do Rastro – organizada pelo pessoal da AMC – Associação Montanhistas de Cristo (Paraná) e realizada em conjunto com montanhistas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

ANTECEDENTES E PLANEJAMENTO:

 
A idéia de fazer uma travessia pelos platôs da Serra Geral, seguindo as escarpas entre o Morro da Igreja e a Serra do Rio do Rastro, nos municípios catarinenses de Urubici e Bom Jardim da Serra, já povoava o meu imaginário há alguns anos, fruto do meu encantamento com as belezas daquela região, descortinadas em algumas viagens e incursões rápidas, seja rodando de jipe, caminhando ou cavalgando por aquelas bandas. 
 
Tal intento foi reavivado ao “viajar” algumas vezes pelo Google Earth na região, pois com o meu “retorno” ao montanhismo e ao trekking em 2010 comecei a estudar as possibilidades de pernadas mais sérias na área, estimulado ainda mais pelas fotos de alguns trekkings na região, postadas por usuários do Site Panorâmio, que fornece as imagens georreferenciadas visualizadas no Google Earth. 
 
Pouco tempo depois me deparei com uma discussão no site/fórum Mochileiros.com sobre o Parque Nacional de São Joaquim, onde se debatia justamente a existência “real” do Parque e a obrigatoriedade de contratar condutores credenciados para poder trilhar na sua área de abrangência. Ali a discussão ganhou corpo e me levou, junto com outros membros daquele fórum (em especial o companheiro Mioto), a travar contato com o Chefe daquela Unidade de Conservação administrada pelo ICMBio, o Sr. Michel Omena, com o qual estabelecemos um diálogo bastante profícuo no sentido de liberar o acesso de trekkers e montanhistas preparados na área sem a necessidade de contratar guias turísticos, mediante o preenchimento de alguns requisitos. Também passamos a conhecer melhor os esforços empreendidos para tirar o Parque “do papel” e conciliar os diversos interesses, muitas vezes conflitantes, sobre a área. Recebi dele por e-mail, em certa ocasião, farto material informativo sobre o histórico do Parque desde sua criação, desafios e problemas enfrentados em diversos momentos, bem como as iniciativas adotadas, dentro da estrutura e regras existentes, para viabilizar a consolidação do PARNA e a conservação da área.
 
No seio das discussões naquele tópico (que se estenderam por meses), em jan/2012, falando sobre a elaboração do Plano de Manejo do PARNA e a situação da regulamentação das visitas, obtivemos do Mioto (que pouco antes conversara pessoalmente com o Chefe do Parque, em Urubici) a notícia de que em breve estaria sendo regulamentada a visitação e permanência por meio de uma Portaria, permitindo o acesso livre da necessidade de condutores (mediante o preenchimento de alguns requisitos) mesmo antes da conclusão do Plano de Manejo do PARNA. A notícia logo fez disparar o coração dos mochileiros que acompanhavam o tópico: a possibilidade de uma travessia (livre e autorizada) dentro do PARNA São Joaquim, proscrita desde 2009, era agora algo tangível! Graças à proatividade do Chefe do Parque, Sr. Michel Omena, provavelmente, ao menos em parte, sensibilizado pela nossa participação e pressão saudável nas discussões.
 
Foi só o Mioto postar esta informação e logo as nossas cabeças irrequietas começaram a imaginar e traçar planos para “a travessia”, como datas possíveis, roteiros e logística. Desde o início o percurso-base estava definido na cabeça de todos = Morro da Igreja – Serra do Rio do Rastro, seguindo o máximo possível as bordas das escarpas da Serra Geral, uma das regiões mais belas de todo o Estado de Santa Catarina, seja pelos marcantes aspectos geográficos e geológicos envolvidos, seja pela rara beleza cênica presente. A data logo ficou definida para o feriado de Corpus Christi – entre os dias 07 e 10/06/2012, pelo entendimento de que seriam necessários 4 dias para cobrir a magnitude do projeto.
 
Desde a sinalização favorável até a data de realização da travessia transcorreram mais de 4 meses de conversas, estudo e planejamento para que tudo ocorresse de forma tranquila e segura. A região que seria atravessada em nosso trekking, apesar de não apresentar elevada variação altimétrica ou grandes dificuldades técnicas, trazia alguns percalços que não poderiam ser menosprezados, como grandes áreas de charcos, trechos de mata fechada, a constante possibilidade de nevoeiros densos capazes de impedir a navegação visual (a famosa “viração”) além do mais temido deles: o frio, constantemente abaixo de zero nos meses de outono/inverno, pois se trata da região mais fria de todo Brasil e onde quase todos os anos temos a presença de neve!
 
Definidos o trajeto-base e a data, passamos a nos debruçar sobre as cartas topográficas e as imagens de satélite da região estudando as peculiaridades do terreno para definir o traçado de uma rota viável diante da topografia dos morros, campos e platôs que povoavam nosso percurso. Foi um trabalho notável pela precisão (como se notará ao longo do relato), em grande parte realizado pelo amigo Otávio Luiz, que após alguns esboços iniciais meus e do Mioto desenhou a rota principal pelo Google Earth tendo em conta a topografia e vegetação, além de marcações importantes, como pontos de abastecimento de água. A mim couberam basicamente os primeiros esboços, a revisão e algum detalhamento sobre os traçados do Otávio, a marcação de pontos de referência no terreno, como cumes e fazendas bem como a criação de possíveis rotas de fuga por estradas da região. Tudo isso tinha um único objetivo: produzir material de navegação abrangente e completo. Primeiro, para conhecer previamente o terreno, da melhor forma possível e, em segundo, levar nos nossos aparelhos de GPS tudo gravado para o caso de ser necessário navegar sem visual – situação muito comum na região por conta da “viração”, fenômeno metereológico caracterizado basicamente por denso nevoeiro que se forma rapidamente, encobrindo vastas extensões de terreno e que limita sobremaneira o alcance visual. Não poderíamos nos dar ao “luxo” de sequer correr o risco de nos perder. Estaríamos fazendo uma “reinauguração” de travessia dentro de um Parque Nacional, uma espécie de “piloto” e não queríamos de forma alguma comprometer o trabalho de convencimento até aqui arduamente realizado junto à Administração do PARNA.
 
Como eu havia lido vários relatos sobre travessias anteriores na área que pretendíamos cruzar e em várias delas haviam referências a dificuldades (algumas inesperadas), além das cartas e imagens de satélite resolvi estudar com mais cuidado as imagens de outros trekkers que andaram anteriormente pela região. Neste processo me deparei várias vezes com imagens muito nítidas e esclarecedoras de aspectos importantes da vegetação e relevo local, que me chamaram a atenção e bastante nos ajudaram. Entre esses fotógrafos-caminhantes que trilharam antes pela região destacavam-se nomes como: Valdo Balbinot, Ênio Frassetto e Ademir Sgrott … Todos profundos conhecedores e admiradores da região.
 
Diante disso resolvi buscar deles alguma informação que considerassem importante, algum aspecto que poderia ter passado desapercebido e mesmo a solução de algumas dúvidas que nos acometiam nas diversas horas que passamos analisando as imagens de satélite e as cartas topográficas da região (como se sabe as IS nem sempre são de boa qualidade e via de regra as cartas estão desatualizadas). Como a internet aproxima as pessoas! Disparei alguns e-mails e, “voi-lá”!, logo tinha alguns “pareceres” sobre a região, desde a topografia, vegetação e condições do terreno até dicas sobre autorizações de passagem pelas fazendas na região do PARNA (nem todas desapropriadas como deveria ter ocorrido, pois o Parque ainda não está totalmente regular sob o aspecto fundiário). Destaco aqui a grande quantidade de fotos e informações repassadas pelo hoje amigo Valdo Balbinot, de Porto Alegre, que me enviou um verdadeiro dossiê sobre aquele trecho dos Aparados da Serra e nos forneceu dicas valiosas para o percurso. Ao amigo os nossos mais sinceros agradecimentos mais uma vez!
 
Com o roteiro pronto, munidos de mapas, nossas tracklogs e informações mais do que suficientes sobre todos os pormenores do nosso percurso a ansiedade aumentava à medida em que a data se aproximava. Havia sobretudo o fantasma das condições metereológicas – sempre determinantes neste tipo de atividade, e sobre o qual não podíamos intervir… Mas haviam ainda alguns pontos não definidos que precisávamos enfrentar. Um era a logística, do qual em parte dependia também a definição final do grupo. Outro era a própria autorização “oficial” do Parque Nacional, sobre a qual ainda pairavam algumas dúvidas. Cada qual a seu tempo…
 
Enfrentamos primeiro a questão logística. Em nossa opinião, a melhor solução desde o início passou pela locação de uma van dadas as dificuldades práticas de utilizar o transporte regular de ônibus (horários péssimos + necessidade de baldeações = perda excessiva de tempo). Descartamos também ir de carro, tanto pelo cansaço que causariam aos trekkers-motoristas (seriam afinal 480 Km de deslocamento para quem partia de Curitiba) quanto pela pequena capacidade de transporte e necessidade de posterior resgate dos mesmos. Com a escolha da van, vinha o segundo ponto, bem desgastante, que era a definição final do grupo que faria a travessia. Desgastante pois quando se fala em “Serra Geral” e fazer uma travessia pelo PARNA São Joaquim, quem é do Sul sabe que se trata de um momento raro, especial mesmo, pelas belezas daquelas paragens… E é aí que o “bicho pega”, pois o número de interessados cresce absurdamente! Facilmente lotaríamos uns 3 ônibus de pessoas dispostas a encarar o frio extremo da região para ter esta oportunidade, mas como isso não é possível, vamos administrando os pedidos de diversos amigos que nos procuram sabendo “por alguém” que projetávamos um trekking de tal magnitude para o feriadão. 
 
Com um limite de 15 pessoas estabelecido (lotação máxima da van) e alguns nomes “hors concours” em razão da sua participação, desde o início, na discussão sobre o PARNA São Joaquim, praticamente não 'sobravam' vagas. Foi nesta fase que dissemos muitos “não” e, nos perdoem os companheiros que ficaram de fora, não se tratou em momento algum de favorecer ou excluir ninguém, o critério foi bem objetivo – saibam disso. Desde o início este projeto nasceu para ser limitado em número de integrantes, especialmente em vista da necessidade de autorização do PARNA, das regras de mínimo impacto em ambientes naturais e da própria segurança do grupo, além das dificuldades logísticas inerentes.
 
Com um grupo “grande” e a logística definida faltava o último dos fatores importantes do projeto que de alguma forma dependiam de nossa atuação: a autorização formal da administração do Parque Nacional de São Joaquim. 
 
“Como assim?!” Podem perguntar alguns, por dois motivos/posições: 
 
1)- Já não estava concedida a autorização? Como vocês montam toda a estrutura para a travessia sem saber se terão a autorização? e 
 
2)- Para quê autorização? Façam na “raça”, “por baixo dos panos” ora!!!
 
Primeiramente, o caso é que já tínhamos fortes indicativos de que a autorização seria concedida. A nossa apreensão, no final, recaía sobre o tamanho do grupo, algo maior do que o usualmente recomendado para este tipo de atividade, especialmente em um Parque Nacional, o que acabou não sendo problema. Na semana anterior, com as previsões climáticas desenhando um cenário de frio extremo e até possibilidade de neve na região para o feriado, ficamos apreensivos sobre a possibilidade da administração do parque, justificadamente, desautorizar a travessia. Era um risco palpável, concreto, devido ao agravamento das condições metereológicas. Houve até notícia de graxaim encontrado congelado "em pé" na região… Imaginem! 
 
Em segundo lugar, fazíamos questão, desde o início, de solicitar e ver concedida a autorização formal do PARNA São Joaquim como forma de quebrar o paradigma e “pressionar” legitimamente a administração do parque sobre os interesses dos trekkers e montanhistas na área, assim como para valorizar a atuação dos profissionais que o administram, criando antecedentes para manter as “porteiras abertas”, como se diz na gíria aqui do Sul. Nosso interesse sempre foi e continua sendo pelo diálogo com as autoridades ambientais, ainda que discordemos de alguns pontos e soluções de gestão adotadas para as UC's. Respeitamos para sermos respeitados – essa é a nossa regra. Não é pela afronta ou desrespeito que conquistaremos algum direito, mas pela argumentação e participação efetiva nos fóruns institucionais adequados às discussões que originam os planos de manejo, que em regra tornam-se a “lei” de cada unidade de conservação. Inclusive fica a convocação para que as entidades ligadas ao montanhismo em Santa Catarina (alô FEMESC!) envolvam-se e participem dessa e de outras discussões em torno das UC's naquele estado.
E a autorização? Saiu, claro! Mas apenas poucos dias antes da data marcada para o início da expedição recebemos o e-mail do Sr. Michel Omena que chancelava a nossa autorização (ufa!). Tudo pronto enfim. 
 
PRIMEIRO DIA:
 
Em síntese, saímos de Curitiba 22:30h abaixo de chuva na quarta-feira, 06/06, véspera de feriado, com destino a São José e depois Santo Amaro da Imperatriz (SC), onde embarcariam nossos 2 colegas de Santa Catarina, Mioto e Fernando. Rodando durante a madrugada conseguimos dar umas cochiladas no caminho e chegamos cedo a Urubici, cerca de 5:30h. Reinava um frio “daqueles” de “renguear pingüim”. Como ainda era muito cedo e precisávamos aguardar para pegar nosso “salvo conduto” na sede do ICMBio e depois tomar nosso café da manhã, tiramos mais uma soneca na van estacionados em frente ao prédio do órgão ambiental, aguardando o tempo passar. Às 7h, já de posse da carta de autorização, encontramos os 2 companheiros gaúchos que gentilmente ficaram acampados no gramado da casa do Zé Marcos, guia turístico e dono da agência Serra Sul. Ao lado da agência tomamos um delicioso e reforçado café da manhã na padaria Beckhauser, agendado por telefone com a proprietária no dia anterior, que se dispôs a abrir seu estabelecimento mais cedo do que de costume para nos atender. Em seguida tocamos para o Morro da Igreja, cujo acesso agora é inteiramente asfaltado desde a cidade com a conclusão das obras na SC-439. Na estrada que sobe o Morro da Igreja um grande movimento de veículos, especialmente no trecho final, em frente à base militar. Muitos carros e desorganização dos motoristas congestionando a estradinha estreita, já que a manhã fria e sem uma única nuvem sequer no céu descortinava plenamente todas as paisagens que a vista alcança de lá, atraindo muuuiiita gente ao mirante em frente à base. Ainda assim conseguimos ver por segundos um graxaim correndo no campo ao lado do portão da base militar. 
 
A visão ali era um misto de beleza e terror, e já dava indícios do que encontraríamos pela frente nos próximos dias. Beleza em razão do maravilhoso cenário que já se vislumbra dali. O terror era por conta do caótico congestionamento de pessoas e veículos que se apinhavam em tão curto espaço físico. Este seria passageiro, enquanto aquela foi perene durante toda nossa jornada. Ali topamos também com os primeiros sinais de gelo, outra coisa que nos acompanharia praticamente todos os dias na travessia e era abundantemente visível no entorno do mirante, acumulando-se nas pequenas poças nas beiradas da pista e nas lajes de pedra próximas, gelo com cerca de 2 cm de espessura!!! Muito vento e um frio intenso também se faziam presentes e incomodavam um pouco. Já se passava de 8:30h quando chegamos no mirante. Tiramos algumas fotos e manobramos com alguma dificuldade a van (contamos com a ajuda dos militares da FAB, que gentilmente abriram para nós os portões da base permitindo-nos manobrar a van com a carreta de bagagem, pois a estradinha ali na frente estava impossível)… Um tenente da FAB com o qual conversei rapidamente, todo encapotado, ficou abismado quando soube que iríamos atravessar os campos do outro lado e dormir em barracas naquele frio, especialmente com as previsões aterradoras para o feriado… Rsrsrs.
 
Abandonamos a muvuca do mirante em frente à base e descemos a estradinha, retornando rumo a Urubici por uns 3 Km até o portão que dá acesso ao “morro da antena”, ponto inicial da nossa jornada. Enquanto descarregávamos nossas mochilas alguns carros com turistas pararam para nos perguntar o que iríamos fazer… Todos se assustavam quando contávamos! Rsrs. Descarregadas as mochilas, calçadas as botas e acertados os últimos detalhes com o motorista da van, jogamos as pesadas mochilas cargueiras nas costas e iniciamos a jornada propriamente dita. Um a um os companheiros atravessaram o portão metálico e seguiam morro acima pela precária estradinha de manutenção da instalação no topo, que aparenta ser uma repetidora de rádio. Já passava das 10h da manhã, sol alto no céu e, mesmo assim, onde havia alguma sombra nas beiradas da pequena estradinha, gelo aparecia em abundância, formando até estalactites de água congelada nos pequenos barrancos.
 
Rapidamente atingimos o topo do morro da antena e dali tiramos algumas fotos aproveitando o visual alucinante já no início da caminhada. Ali parte do grupo se adiantou e seguiu à frente sob o pretexto de adiantar a caminhada e deixar um termômetro de max/mín que seria deixado na antiga Fazenda Caiambora e resgatado no outro dia pelo por um companheiro, guia da região, o Sérgio “Graxaim” que passaria com outra expedição pela área. Logo descemos todos a crista, transpondo uma cerca de arame farpado, a primeira de muitas ao longo da travessia. Rapidamente cortamos o terreno em declive pelo campo seguindo uma trilha batida, entrando na mata, mais abaixo. Em pouco mais de 40min atingimos o fundo do vale, atravessando um pequeno charco, uma matinha nebular e logo depois o famoso Rio Pelotas, ainda pequeno próximo das suas nascentes. 
 
Nosso objetivo imediato a partir dali era um grande platô gramado, visível do mirante do Morro da Igreja e cuja vista privilegiada da Serra Furada queríamos usufruir. Para nosso azar, entretanto, logo que subíamos uma elevação que antecede esse platô a viração começa a cobrir toda a borda do platô e fecha todo o visual para o lado do MI e Pedra Furada. O grupo pára para descansar e lanchar. Um pequeno destacamento do grupo larga as cargueiras e sobe o morrote à frente confirmando a ausência completa de visual só na área do platô, especialmente na linha de borda, pois ao redor o céu encontra-se completamente límpo. Dali enxergamos mais abaixo o quarteto que se desgarrara hora antes voltando do platô a passos largos. Ficamos alguns minutos no topo do morrinho, lanchamos e respiramos para repor o fôlego gasto na subida… Arriscamos algumas investidas próximas, subindo uma elevação rochosa ao sul e depois a borda mais próxima do platô. A viração só aumentava e, estranhamente, se mantinha apenas sobre o platô e as elevações próximas da borda.
 
Retornamos para vale anterior, onde deixamos as cargueiras e o restante do grupo estacionara para descansar e almoçar. Dali o grupo de vanguarda, à exceção do Zeca, resolveu seguir por sua conta e se destacar do grande grupo. Em poucos minutos, sem que pudéssemos acertar qualquer detalhe, os três (Mioto, Fernando e Tiago) já haviam novamente se distanciado bastante, sem levar rádio para comunicação e sem maiores “combinações”. Como a viração aumentando e sem visual das bordas, decidimos seguir dali o rumo originalmente traçado, um pouco afastado das bordas das escarpas, acompanhando “por cima” o vale do Rio Pelotas, seguindo as curvas de nível das elevações que o limitam pelo leste.
 
Andamos por cerca de 2h quase ininterruptamente e, de uma elevação, avistamos ao longe, no fundo do vale, as ruínas da Fazenda Caiambora (abandonada), marcada por característicos muros de taipa (pedras), nas margens do Rio Pelotas. Nada do “trio ligeiro” como passaremos a nos referir aos 3 caminhantes “desgarrados”. Pensamos que eles iriam nos reencontrar naquelas imediações tendo em vista a instalação do tal termômetro na sede da antiga fazenda, mas não foi o que aconteceu pois nem sinal vimos dos três mesmo perscrutando o horizonte com o binóculo. Daquele ponto em diante ficamos cientes de que os três agiriam por conta própria e de forma independente, o que nos chateou um pouco. Fazer o quê?… Eram trekkers experientes e bem equipados, que seguissem seu caminho, pensamos. Perderiam a maravilhosa polenta da janta. Rsrs! Tocamos em frente. O frio da tarde já se fazia sentir, uma vez que o sol já baixava no horizonte e o vento em alguns pontos incomodava bastante, obrigando a sacar agasalhos das mochilas. 
 
A região deste início de curso do Pelotas, também conhecida como 'Campos de Santa Bárbara' é muito aprazível, com uma paisagem dominada por campos limpos e ondulados, entrecortados por variada sucessão de morros e vales, emoldurado por um maciço de elevações cobertas de mata que se erguem a oeste-noroeste. Elevando-se no horizonte atrás de nós vislumbrávamos o Morro da Igreja e seus indefectíveis domos de radar e antenas de comunicação. Nossa rota de caminhada evoluía invariavelmente contornando pequenas elevações e atravessando um ou outro pequeno vale que surgia transversalmente ao vale principal do Pelotas.
 
Com o sol descendo no horizonte, o pouco tempo de luz nos requeria buscar um local adequado para acamparmos. Nessa altura do dia nosso grupo se estendia por uns 500 metros, formado por vários pequenos destacamentos, cada um caminhando no seu ritmo mas sempre ligados uns aos aos outros, seja por contato visual seja por rádio (levamos 3 pares dos versáteis “Talk About” Motorola, de 1,5W, que deram conta do recado durante os 4 dias de travessia com apenas 2 jogos de baterias). Logo nossa vanguarda informava ter encontrado um local ideal: um pequeno platô limpo cercado por um muro de pedra e vegetação mais densa, que nos dava boa proteção contra o vento.
 
Ali, naquele resquício do que fora uma antiga mangueira da fazenda de gado, armamos nossas barracas. Logo que o sol se pôs, cerca de 17:30h, o frio já se tornara intenso e nos obrigava a andar totalmente encobertos pelas vestimentas de frio. Cristais de gelo começavam a se formar sobre as barracas e tudo o que estivesse exposto ao tempo. Apesar da ausência quase absoluta de vento o frio fora das barracas era tremendo. Cozinhamos a nossa janta comunitária sobre uma pequena laje de pedra onde montamos os fogareiros e preparamos alguns tira-gostos para amainar a fome enquanto tomávamos um mate e preparávamos o prato principal: uma deliciosa polenta campeira. Tudo regado com sucos e alguns goles de graspa e cachaça que levamos apenas para "esquentar". Mesmo com o frio que aumentava a cada minuto, jantamos e ainda ficamos "proseando" por mais de uma hora em volta dos fogareiros.
 
Nos encasulamos cedo em nossos sacos de dormir e, uma vez aquecidos, dormimos maravilhosamente. Praticamente não sentimos o frio de -11/-10°C que nossos dois termômetros “tabajaras” registraram fora das barracas quando delas saímos às 7:30h. As barracas e tudo em volta estava coberto pelo manto branco da forte geada que assolou a madrugada. De longe, em alguns lugares no campo mais baixo parecia até que havia nevado, de tão branco que estava. As garrafas de água deixadas fora das barracas amanheceram completamente congeladas. Botas e meias, úmidas de suor do dia anterior deixadas no avanço das barracas amanheceram endurecidas. Duas poças grandes de água próximas do acampamento pareciam feitas de vidro e congelaram completamente, a ponto de se ter dificuldade para quebrar o gelo, de tão espesso. O ar matinal, gélido, fazia doer até os ossos. O jeito era manter por baixo das roupas de caminhada as peças de segunda pele com as quais dormimos. Acima de nós um céu azul profundo, limpíssimo. Nem sequer sinal de nuvens ou viração até onde a vista alcançava. De um lado o sol, tímido, elevando-se lentamente sobre a encosta à nossa frente. De outro lado, acima do vale, um disco branco contrastava o azul dominante: a lua, ainda alta, dividia com o sol o espaço do firmamento.
 
Alguns voltaram para as barracas e esticaram um pouco o sono, outros tiravam fotos e procuravam se mexer para espantar o frio, agilizando um café quente nos fogareiros, nos quais crepitavam panelas cheias de água postas a ferver para o preparo da refeição matinal e lavagem das panelas usadas na noite anterior. Logo, com a algazarra, todos se reúnem em volta dos fogareiros onde se prepara um desjejum reforçado, como ovos mexidos, pão sírio com queijo provolone defumado e salame, entre outros. Terminada a refeição, passa a reinar a faina acelerada de ajeitar toda a tralha de acampamento e montar novamente as mochilas para o segundo dia de caminhada…
 
SEGUNDO DIA:
 
O sol já estava alto e todos apressados em finalizar as mochilas após a primeira noite acampados. O “tempo ruge” dizia o Otávio, e todos compenetrados em socar roupas e equipamentos nas pesadas cargueiras, que a despeito de toda a comilança da noite anterior pareciam ainda mais volumosas e pesadas que antes. Uma olhada rápida pela área de acampamento e facilmente o confundiríamos com uma área atingida por um tornado, tamanha era a bagunça. Todos haviam aproveitado os muros da mangueira de pedra e os galhos das árvores próximas para pendurar calçados e roupas úmidas ou enregeladas pela forte geada da madrugada, aguardando que os raios do sol matinal as descongelasse ou secasse. As botas, em especial, endurecidas e geladas, eram deixadas por último para serem calçadas, na vã esperança de que estivessem menos desconfortáveis após pouco mais de uma hora no sol, tempo insuficiente para a tarefa do degelo.
 
Logo, um a um, todos apresentam-se prontos para partir. Já eram 10h da manhã e estávamos bem atrasados em relação ao cronograma planejado inicialmente de começar a caminhar por volta das 9h. O plano era continuar subindo a lateral esquerda do vale à nossa frente, onde corria um afluente do Rio Pelotas, para em um ponto mais alto atravessá-lo em um ponto mais favorável. Vislumbrávamos bem no alto (a leste) uma passagem mais fácil e traçamos um rumo para atingi-la. Assim fomos. Passados alguns charcos e um riachinho menor, acompanhando as curvas de nível por pouco menos de 1 km do ponto de acampamento fizemos a transposição do rio no trecho previsto, atravessando a mata ciliar e o leito de pedras, onde o rio era mais estreito e o vale menos profundo. Novamente alguns se abasteceram de água e se refrescaram, já que o calor do sol somado ao esforço da caminhada com as cargueiras já começava a se fazer sentir. 
 
Galgávamos agora as encostas de um outro morro maior, acompanhando as curvas de nível em direção a uma nova linha de morrotes rumo sudeste. À nossa frente agora tínhamos uma longa linha reta de uma cerca de arame farpado que apontava para o céu e parecia não ter mais fim, numa enorme rampa. Vencemos a sucessão de elevações e rampas descampadas e, algumas centenas de metros acima atingimos uma dobra no terreno para, logo acima, divisar uma cachoeira no mesmo riacho que vínhamos seguindo e que delimitava a área de um imenso platô que se estendia a leste e a nordeste, atingindo novamente as bordas da serra. Logo depois de passar pela cachoeira o terreno à nossa virou um enorme brejo. Tentamos desviar alguns dos charcos mas caíamos em outros, tanto de um lado como de outro da cerca, cuja linha de palanques resolvemos acompanhar novamente por se assentar sobre terreno mais firme do que o restante à sua volta, dando certo sentido àquela famosa troça “firme que nem palanque em banhado”. Rsrs! Buscávamos agora a borda da serra, acompanhando a lateral de um morrote, rente à tal cerca infinita, que neste trecho se elevava acima do nível do campo, o que nos dava algum terreno firme para caminhar, além da visão mais privilegiada, do alto. Logo vão surgindo, deslumbrantes, novas visões da travessia: ao Norte as pontas da Serra Furada e, logo ali, a nossos pés, as escarpas da Serra Geral. Não há dúvida que largamos as cargueiras e fizemos uma parada para apreciar as vistas privilegiadas da borda, tanto dos campos ao norte quanto da serra abaixo, fotografando as belezas da área.
 
Passados os momentos de euforia e contemplação, 1h depois nos reagrupamos e voltamos à realidade da caminhada. Começamos a subir frontalmente a elevação que vínhamos contornando junto à cerca, agora com destino aos imponentes platôs mais acima, cercados por paredões de rocha, que nos anunciavam visões ainda mais majestosas do que as divisadas há pouco. Para isso, além do aclive, vencemos um trechinho curto de mata e uma cerca. No alto resolvemos almoçar (pretexto para uma outra pausa de contemplação e descanso). Dali a vista de 360º mostrava, além do Morro da Igreja e Serra Furada, os paredões imediatamente anteriores, a imensidão dos campos “interiores” e boa parte dos platôs e elevações que se sucediam em direção ao Sul, nosso caminho dali para frente, permitindo mesmo vislumbrar parte do Cânion Laranjeiras, mais ao longe. 
 
Daquele ponto confirmamos também visualmente a nossa rota para a tarde daquele dia, que seguindo nossa expectativa (traçada antes no GPS e cartas) deveria nos levar por uma longa descida, nos afastando um pouco da borda da serra para contornar alguns obstáculos como morros cobertos de mata e escarpas acidentadas. Devem-se destacar aqui também as belezas dos campos interiores: diversas áreas de mata nativa repletas de araucárias e muitos afloramentos rochosos. Alimentados e bem descansados, muitas fotos depois, ajeitam-se as mochilas novamente e “pernas-prá-que-te-quero”! Já são 14:15h e lá estamos novamente em movimento seguindo para o sul. Após quase 2 horas de pernada pelos campos, contornando algumas elevações e matas nos deparamos com o que visualmente seria um grande vara-mato. Após algumas explorações do nosso “batedor” oficial, o companheiro Zeca Reinert, que em vários momentos da travessia despontaria com o rádio para desbravar os trechos de mata à nossa frente, logo descobrimos que a transposição da mata era bem mais tranquila do que imaginávamos. Ao final dela saímos num enorme descampado plano com vários trechos de charco, o qual vencemos ilesos (pés secos) para sair em outra descida de vale e outro trecho aparentemente complicado de vara-mato. Breve parada para elocubrações e novamente nosso batedor oficial se embrenha na mata para verificar o caminho. O grupo aproveita a pausa para descanso e reidratação enquanto a equipe de navegação se debruça sobre a carta e o mapa no GPS para estudar as alternativas de caminho. Não tem jeito, é por aqui mesmo, concluímos… Logo isso se confirma pelo rádio. Zeca, o desbravador, informa que o mato pode ser contornado lá embaixo. Tocamos a descer a encosta. Chegando na borda da mata, damos de cara com uma área de erosão onde a água de chuvas torrenciais escavou o terreno em obediência à Lei da Gravidade, buscando o fundo do vale e seu riacho, depois da mata. Varamos por uma cerca de arame já meio caída e, seguindo a erosão, contornamos uma ponta de mata chegando a uma ampla área de banhado.
 
Continua na segunda e última parte…
Leia aqui:
 
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