O ônibus é velho, sem conforto e sem condições de segurança. Um circular (urbano) da década de 80. Viaja lotado de pessoas e de tudo que os bolivianos carregam – saco de pão, janela construção civil, utensílios domésticos e por ai vai.
A viatura para em todos os vilarejos e o entra e sai de gente é grande.
A nossa viagem demorou mais de 10 horas. Partimos de El Alto pouco mais de sete horas da manhã pela Ruta Nacional 1 até as proximidades do Lago Titikaka. Em seguida ficamos entre o lago e a cordilheira rumo ao norte. A paisagem é compensadora, do lado direito os nevados da cordilheira no esquerdo os cerros do Titikaka.
Paramos em Huarina para almoçar. Eram apenas 10 horas da manhã. É bom comprar algum suprimento para a viagem, para não passar sede ou fome.
Aos poucos a estrada vai ficando menos cuidada até virar uma pequena via de terra. Curvas e vales infinitos. O entra e sai de bolivianos no ônibus é constante. Gente muito humilde de uma região extremamente pobre do país menos favorecido das Américas.
O cheiro da ausência de banho e do curry exagerado na alimentação é muito forte. Música nativa correndo solta no auto-falante da viatura ao ponto de enjoar.
Conversei muito sobre a chegada da energia elétrica à região com algumas pessoas que sentaram ao meu lado. Todos de etnia Quechua. Um deles tentou me vender roupa de alpaca com um espanhol difícil de entender. Até pouco tempo nem mesmo conheciam a língua espanhola. Ainda hoje muitas pessoas e alguns povoados inteiros somente utilizam a língua nativa, o quechua, para se comunicar.
Em um momento ofereci o assento vazio ao meu lado a uma menina que acabara de subir no coletivo. Ela ficou extremamente assustada e curiosa. Seu pai sentou-se ao meu lado e durante todo o tempo que estiveram dentro do ônibus ela me fitava com um olhar de curiosidade.
Os quilômetros finais da viagem chegam a ser assustadores. A estrada é bem estreita e desce por desfiladeiros que não permitem erros nem falhas.
No final da tarde saltamos do ônibus na praça central de Pelechuco e nos abrigamos em um alojamento muito simples e bastante sujo.
Estávamos, eu o Celestino que é guia e um casal de franceses. Percebi no contato inicial que não agradou muito a eles a presença de um brasileiro no grupo.
Infelizmente a fama dos brasileiros por lá é péssima com relação a aclimatação e resistência ao frio.
Na manhã seguinte, para iniciar a travessia, tivemos problemas com as mulas, simplesmente não haviam mulas disponíveis, e o dia que iniciaríamos a caminhada ficou vazio. Chegamos a percorrer uma pequena parte do percurso e voltamos.
Partimos na outra manhã, naquele que seria “um dia longo”. Saímos de Pelechuco que está a 3.600m de altitude e sempre subindo, em pouco tempo rompemos os 4mil.
Um lindo vale cortado pelo rio Água Blanca dá uma dimensão do que teríamos pela frente nesse e nos próximos dias.
Durante a subida deixei o guia e o casal de franceses para trás e segui o muleiro, pois as passadas dos franceses me estressariam, eram muito lentas.
Subimos por uma morena muito alta com inclinação acentuada, o caminho é longo e tem apenas um pequenino corte na montanha onde mal cabe o pé.
Passamos pelo lago Kansani e em seguida uma subida um pouco chata, com pedras soltas, quase semelhante ao ataque final do pico da Bandeira, mas aqui estamos chegando a 4.700m de altitude.
Nesse ponto, cruzamos a cordilheira de Oeste a Leste. Dali para a frente, somente descida. Os primeiros 500m de cota com piso molhado e bastante escorregadio. Depois torna-se mais suave e algumas leves subidas. Assim foi até chegarmos próximo à Hilo Hilo onde acampamos.
Os moradores do vilarejo não autorizam montar acampamento muito próximo da vila. Nos instalamos há uns 10 minutos do povoado e mesmo assim, o muleiro “Alcides” de origem Quechua foi até lá pedir autorização para os nativos.
No final da tarde, levei um tombo ao pegar água numa bica na área do acampamento. Estava de chinelos, para descansar os pés, escorreguei e bati perna e braço esquerdo. Tive que trocar a roupa molhada e suja e o pior prejuízo foi uma noite sem dormir pois tive muita dor.
O acampamento está a 4 mil de altitude e a tarefa do dia seguinte é a mais pesada. Transpor o passo Sunchulli a 5.100 m.
Bem cedo passamos pela modesta Hilo Hilo. Poucas casinhas bastante simples, algumas crianças e mulheres pelas ruas. Os homens estão todos nas minas de ouro existentes na região.
Pegamos uma pequena estrada e em seguida a trilha. O inicio da trilha é uma subida infernal até chegar a um platô, onde almoçamos. Em seguida mais subida até uma pedreira muito grande e com inclinação pesada. Depois um piso relativamente liso e já podemos avistar o ponto da passagem, onde cruzamos a Cordilheira dos Andes, dessa vez de Leste a Oeste a 5.100m de altitude. Chegamos à base da montanha e olhar a subida é animador. Um zigue zague sem fim em uma morena com inclinação bastante pesada.
Quase no topo a “escalaminhada” termina em uma estrada que leva a uma mina de ouro e pouco acima estamos no ponto culminante da travessia, a 5.100m de altitude.
A visão é gratificante e a sensação de vitória, de ter superado limites que o homem cria para si mesmo.
A vitória não é contra a montanha. Ela está lá e sempre estará lá. Mas os limites que os homens se impõem podem e devem ser desafiados e superados.
Deixamos a face leste do Sunchulli com a visão de uma Lagoa com cor entre o azul e o verde e iniciamos a descida pelo lado Oeste. Este bem mais nevado, mais branco.
Descemos um pouco e montamos acampamento em uma área mais plana, com os cercados de pedra usada pelos nativos para alojar animais durante a noite.
Mal terminamos de montar acampamento e começou a nevar. Abriguei-me para esperar a nevasca passar e em seguida jantar. Como estava sem dormir na noite anterior, bateu um leve cansaço e saudade enorme de minhas filhas e pessoas mais próximas.
Durante a noite pude ouvir uma explosão muito forte em algum lugar distante de nós. Provavelmente a explosão de dinamite em mina de ouro. Por alguns segundos era possível ouvir os estalos de gelo rachando na parte alta do Sunchulli. No local onde estávamos não havia risco se houvesse algum desprendimento, pois entre nós e a parte alta havia um pequeno vale.
Nevou a madrugada toda. Pude dormir um pouco sob efeito de um anti-inflamátório que deu um alívio para as dores da batida.
Na manhã seguinte, demoramos mais para desmontar o acampamento. As barracas estavam cobertas por neve e congeladas.
Logo que iniciamos a caminhada senti o efeito do anti-inflamátório. Meu estomago não parava de arder. Tenho dificuldade com esse tipo de medicamento e na altitude, os efeitos colaterais ficam mais fortes.
Atingimos o Passo Norte-Sul a 4.700m de altitude de onde se dá uma visão maravilhosa do nevado Ilampu.
Descemos um pouco até atingir a estrutura de uma mina de ouro. Mal passamos essa mina e começou uma tempestade de neve. Percebi que do outro lado da montanha não estava nevando. Decidi não colocar impermeáveis e acelerar a subida. Assim que atingi o topo passando para o outro lado, livrei-me das pancadas que a neve dava no corpo.
Os franceses vinham sempre bem atrás e volta e meia era preciso parar para esperá-los.
Um pouco mais adiante começa o que é conhecido como “mil curvas”. Uma descida de um paredão de 500 metros de desnível. De 4.600m de altitude até 4.100m. Piso liso e escorregadio, trechos com pedras soltas, e a neve que caia ajudava a deixar mais liso.
Desci bem devagar cuidando dos joelhos e evitando um choque com o chão. Lá embaixo as pernas não respondiam mais como antes. O stress da descida havia cansado a musculatura. Foi mais difícil descer essa parede do que as subidas anteriores.
Chegamos em “Inca Concha”. Decidimos acampar mais a frente para ter mais tempo para o dia seguinte.
Montamos acampamento e desabou a chover. Parece que as nuvens estavam nos seguindo. Chuva em todos os dias e neve em quase todos.
Passei mais uma noite sem dormir. A barraca simplesmente encharcou e era impossível qualquer movimento sem receber um jato de água no rosto.
Na manhã seguinte, iniciamos a caminhada em subida, fomos até cerca de 4.700 de altitude e ultrapassamos o último passo. Depois por uma pedreira e foi assim até o fim de um vale que transformou-se em uma corredeira para em seguida formar um novo vale.
Em uma gangorra mais descendo do que subindo, chegamos a Jatun Pampa há pouco mais de 1600m de altitude. Paramos para tomar água, comer um chocolate e seguimos em frente.
Agora novamente subindo. Inicialmente uma subida pesada que depois aliviou, mas sempre subindo. Aos poucos a paisagem vai mudando, dando sinais da presença humana e eis que vejo Curva à minha frente. Diminui as passadas para esperar inicialmente Celestino e depois o casal francês.
Na praça central de Curva, descansamos, tomamos um refresco e após comprar passagem de ônibus para a volta para La Paz na manhã seguinte, seguimos para Lagunilla onde pernoitamos em um alojamento construído pelo Consulado espanhol para abrigar os aventureiros dessa jornada.
No abrigo, percorri o livro de assinatura e não encontrei nenhum registro de brasileiro que tenha feito essa travessia. Pesquisei sobre Apolobamba por quase dois anos e é muito escasso informações sobre essa parte dos Andes. E também até hoje não encontrei registros de algum outro brasileiro que a tenha cruzado.
Na manhã seguinte, nova aventura no ônibus para La Paz. Dessa vez com alguns imprevistos a mais. Em um momento um pneu furado e mais a frente problemas nos freios.
Chegamos em La Paz a noite. Cansados, mas realizados por realizar uma aventura até hoje encarada por poucos.
Apolobamba tem um mistério a mais. O lado místico da região onde habitam os “curandeiros” bolivianos. Mas esse mistério só estando lá para ver, sentir e conhecer.