TRAVESSIA NA SERRA DO CIPÓ – Parte 1

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Encravado no extremo sul da Serra do Espinhaço, o vilarejo da Lapinha é sempre lembrado por sua travessia + notória, rumo Tabuleiro. No entanto, perpendicularmente à este programa – saturado à exaustão pelo ecoturismo -farofa – há outra caminhada selvagem tão grandiosa q percorre rios e cachoeiras deslumbrantes, campos rupestres e matas de cerrado em direção ao pacato arraial de Fechados, 50km ao norte.
Texto: Jorge Soto
Fotos: Alessandro de Jesus/Luciana Barreiro

Margeando a borda oeste de vários espigões paralelos da Serra do Cipó, esta pernada de 4 dias se destaca tb por ter um charme especial: alem dos atrativos naturais, remonta parte do trajeto utilizado por bandeirantes no Séc. 17, o antigo Caminho Colonial de Sta Luzia-Tijuco, e nos brinda c/ a imponência do Poço Soberbo, antiga mineração de diamantes. Uma travessia q une historia e natureza. E, claro, a peculiaridade e charme de Fechados, um arraial parado no tempo.

DA LAPINHA AO ERMO DAS GERAIS
Após sair da acinzentada Sampa na madruga de quarta (feriado) e percorrer exaustivas 7hrs de asfalto, chegamos na capital mineira às 10:30. No volante tava o elétrico Zé Carlos, acompanhado pelo Alê (“Lion Man”, para os íntimos), no banco de trás, eu e a Lu tentávamos dormir nos momentos em q o falatório geral dava trégua. Num piscar de olhos, nos vemos serpenteando morrotes c/ vegetação arbustiva e ressequida, sinal q já estávamos, as 13hrs, em Santana do Riacho, vilarejo encravado aos pés da Serra do Cipó.
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Sem titubear, fomos p/ Pousada 3 Corações, local q tínhamos como referencia de nossa incursão anterior pela região, afim de deixar o veiculo e negociar transporte/resgate de nossa pernada. Recebidos pela simpática Dna Maria do Rosário, nos avisou q seu marido, Seu Valdir, tava fora e não poderia ver isso p/ gente. Entretanto, nos arrumou um taxista vizinho, Seu Alair, q se dispôs a quebrar nosso “galho” logístico, embora não mostrasse muita certeza de conhecer bem onde seria nosso resgate. De qq forma, confiamos em sua solícita boa vontade em nos ajudar e pegamos seu tel de contato, q por sinal era o mesmo da pousada da Dna Maria.

Dessa forma, nos esprememos no empoeirado Uno de Seu Alair e rumamos p/ Lapinha, distante 9km dali, acompanhando os paredões imponentes da Serra do Breu à nossa esquerda. Ignoramos a bifurcação direita p/ Lapinha (q em 2km nos levaria ao vilarejo homônimo) e seguimos em frente pela empoeirada estradinha por alguns kms. Finalmente nosso avanço é barrado por uma porteira c/ uma lacônica placa anunciando “Propriedade Particular – Proibido Acampar e Nadar”. Era hora de descer.
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Despedimos-nos de Seu Alair e após alguns ajustes finais nas pesadas cargueiras e comer alguma coisa, começamos, enfim, nossa travessia as 14:40hrs.
Após a porteira, foi só andar pela precária estradinha q acompanha, ao longe, o sopé da serra sentido noroeste, tal qual o córrego Lapinha. Esta estradinha (um carreiro largo) é o q sobrou do Caminho Colonial de Sta Luzia pro Tijuco, utilizado antigamente pelos bandeirantes no transporte de pedras preciosas e q hj ainda é usado pelos locais, de preferência de moto ou cavalo.
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Este início de caminhada é tranqüilo e s/ maiores desníveis, bordejando pequenos morrotes e passando por duas pequenas fazendinhas q parecem vazias. Aos poucos, o caminho sobe imperceptivelmente, indo de encontro aos paredões, cada vez + próximos tendendo a se afunilar num largo e grande cânion. Mas logo passamos outra cerca (Faz. Cachoeira), a trilha se estreita e os horizontes novamente se alargam, sempre ladeando paredões pela esquerda. Contudo, os campos q se abrem não são de capim e sim campos rupestres de perder a vista, dando a impressão q andamos em meio a ruínas de alguma civilização perdida salpicada de cactos.
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Os formatos curiosos q as rochas aqui apresentam são diversos, mas a gde maioria corresponde a afloramentos rochoso apontando numa só direção, tal qual mísseis! À oeste avistamos um vale paralelo bem fundo, por onde singra o Córrego Fundo.
Logo as pedras dão lugar ao 1º gde platô do percurso, salpicado de canelas-de-ema e sempre-vivas, q balançam na brisa suave do meio da tarde. O caminho agora deriva p/ norte/nordeste, qdo encontramos um tiozinho montado num velho cavalo vindo no sentido oposto, Seu Chico, q nos dá infos preciosas.
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Subindo ate um colo de serra, passamos 2 casinhas aparentemente abandonadas (uma delas do Seu Chico) e duas cercas, sempre em franca ascensão. Na 2ª porteira, contornando um morro, deixamos o caminho e tomamos uma picada à esquerda q nos leva ao leito de um rio (seco) q desce suavemente por um bom tempo ate outro platozão a oeste, q parece ser o amplo vale de um rio maior.

Acompanhando o leito deste rio seco, ora pelo capim ora saltando de lajota em lajota, alcançamos o vasto platozão onde damos numa gde área de acampamento (plano e forrado de areia clara e pasto ralo) às margens de um rio encachoeirado mto bonito, o Rio das Pedras. Embora houvesse uma placa detonada anunciando q era proibido acampar, foi aqui mesmo q jogamos as mochilas no chão, dado o horário avançado. Cansados do dia exaustivo (viagem + pernada), vestimos nossos agasalhos, pois esfriava rapidamente enqto o sol mergulhava na morraria à oeste. Assim, nossas barracas tomavam forma a exatos 1.212 m de altitude, as 18hrs, neste bucólico local q faz parte da Reserva Natural “Ermo das Gerais”.

Assim q escureceu, a temperatura caiu drasticamente, minando nossas intenções de banho no convidativo poço ao lado do acampamento. Paciência, assim nos esmeraríamos + no preparo da bem-vinda e suculenta janta, q veio acompanhada de um delicioso vinho francês providenciado pelo Zé! Não sobrou uma gota, claro! Na seqüência nos enfiamos a nossas respectivas tendas, no mesmo instante em q o tempo começou a fechar. Aquela noite foi bem fria, ventou muito e, contrariando a previsão meteorológica, teve totalmente c/ céu encoberto e até chuva! No entanto, a essa altura do campeonato já havíamos desfalecido nos braços de Morpheus, e prontos pro q der e viesse no dia sgte.
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DO RIO DAS PEDRAS AO POÇO SOBERBO
O dia amanhece nada promissor: encoberto, c/ vento frio e uma névoa q, alem de impedir visibilidade alem dos 500m, ocultava os picos de morros próximos. Ainda assim, as 6:30 obrigo td mundo a ir se arrumando, sob protestos da Lu, q queria permanecer no aconchego da barraca ate a névoa se dispersar. No way, tínhamos um cronograma q devia ser seguido à risca, independente das condições climáticas. Felizmente, o tempo logo ficou + ameno, permitindo q as atividades prescritas fossem efetuadas em seu ritmo normal.
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Na duvida entre subir ou descer o rio, após sondar terreno decidi “democraticamente” q o desceríamos. Assim, após breve café e devidas arrumações, jogamos a cargueira nas costas, partindo às 8:15. Saltando as pedras, atravessamos o rio seguindo pela sua margem direita num carreiro q ia na mesma direção, isto é, oeste. Adentramos, então, numa brecha da serra ate sermos recebidos, as 9:30, pela imponente Cachoeira Bicame, por onde o Rio das Pedras despencava verticalmente num par de quedas de + de 30m num enorme e fundo poço acobreado!
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Após muitos cliques da parte de cima, descemos ate a base da cachu, onde fizemos um pit-stop básico, já q o local merecia + tempo p/ contemplação: a Lu não se conteve e mergulhou no poção frio, p/ vergonha da trupe masculina q sequer ousou molhar o dedinho, o Lion delirava c/ as possibilidades dos “boulders” das pedras ao redor, o Zé Carlos brincava c/ sua parafernalha eletrônica marcando o lugar no gps, e eu apenas observava td aquilo, já estudando a continuidade da pernada analisando a carta e o terreno em volta.

A parada tava boa, mas tínhamos q prosseguir, agora p/ oeste. Assim, acompanhamos o rio descendo a serra (por trilha) através de um cânion q aos poucos se afunilou, onde acabamos dando noutra bela cachu agraciada de outro poção. Aqui o rio despenca verticalmente em meio a varias fendas descendo a serra, e a trilha se afasta p/ direita, primeiro num amplo platô repleto de capim ralo, p/ depois descer em 3 longos ziguezagues,&nbsp, reencontrando o rio no fundo vale abaixo, onde este parecia prosseguir sua jornada + calmamente.
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Na trilha de descida rumo ao Vale do Soberbo, cujos poções já eram visíveis de cima, a Lu teve o irresistível desejo de beijar ardentemente o chão, forrado de pedrinhas brancas e cristais escorregadios. Tal vontade resultou num rosto machucado, uma toalha ensangüentada, preocupação generalizada e dúvidas qto a conclusão da travessia. Mas nossa única representante do sexo frágil, guerreira do jeito q ela é, não titubeou em seguir em frente afirmando q “não era nada”!

Assim, após longo ziguezague, veio um trecho de “desescalaminhada” em meio a mato e pedras, ate cairmos no q pode ser chamado de “Poço Soberbo”, um bucólico vale encravado no meio da serra e repleto de áreas p/ acampamento, poços e cachus de tds os tamanhos, alem de restos de uma antiga mineração de diamantes datada dos anos 60, explorada por gringos. O rio culmina num gigantesco poção acobreado aos pés de outra cachu, desaguando, enfim, numa monumental fenda afunilada da serra.
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Ah, ali tem muito, mas muito carrapato tb! Neste local pitoresco e ate místico tivemos nossa parada p/ descanso e lanche, as 13:15hrs, sob a sombra fresca de escassas arvores, já q há muito a nebulosidade matinal tinha ido embora dando lugar a um sol de rachar coco!!! Após dar um rápido visu na área de mineração – cercada de vestígios de instalações dos antigos garimpeiros, caldeirões naturais cravados na rocha e algum material pesado corroído pelo tempo – retomamos nossa jornada.
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Pulando brejos, passando por vários cochos e saltando outro riacho, seguimos as picadas q desta vez nos levavam ao longo do Vale do Soberbo, agora sentido noroeste. Aqui há varias picadas paralelas, mas tds acabam convergindo numa só a medida q se avança, sempre em meio a vegetação arbustiva e algumas arvores. O Rio Soberbo se mantém sempre à nossa direita e – após descer encachoeirado por dobras na serra – segue paralelo à mesma, se junta c/ o Rio das Pedras p/ formar, por fim, o tal Poço Soberbo.

Enquanto o rio desce, nos subíamos s/ gde inclinação o vale ate dar outra vez no topo da serra, onde se descortinam os campos altos q se abrem por mais de 40km, as 15:30hrs. Agora basta seguir sem empecílios pelo pasto rumo noroeste, através da enorme “avenida” formada neste 1º degrau e vasto platô da Serra do Cipó, ladeado por um interminável paredão rochoso à nossa direita. Já havia estado aqui no Carnaval, portanto não demorou identificar qdo atravessamos o Córrego dos Quartéis, as 16hrs, onde abastecemos nossos cantis.

As 17hrs e relativamente cansados, decidimos estacionar em definitivo numa enorme (e oportuna) clareira no pasto, à margem da trilha. Acampamento montado a 1.062m de altitude, desabamos no interior de nossas barracas p/ logo em seguida preparar a janta (regada a vinho chileno!), assim q o sol caiu, siluetando os contornos da serra, à oeste, e trazendo consigo a escuridão, o frio e um vento considerável. Na seqüência nos entocamos no aconchego dos sacos-de-dormir, as 20hrs, p/ só sair deles na manha sgte. Durante a noite saí p/ “regar a moita” e fiquei apreciando, diferente da noite anterior, um céu coalhado de estrelas, rasgado esporadicamente por algumas estrelas cadentes. Coisas do interior mineiro.
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DO ALTO DA SERRA ATE O VALE DO BARBADO
Levantamos as 6hrs, refeitos da noite bem dormida, ou quase. A Lu cismou q ouvira alguma coisa andando próximo da barraca dela, o Lion cismou c/ a presença de pequenos escorpiõezinhos à noite, e eu cismara q havia uma “onça” dentro da barraca do Zé Carlos.. O dia, como sempre, amanhecia encoberto, mas logo o vento foi dispersando a nebulosidade p/ dar lugar a um céu azul límpido e um sol q + tarde fritaria miolos. Após nosso desjejum e as mochilas engolirem o equipamento, zarpamos dali as 8hrs c/ o devido cuidado de não carregar baratinhas selvagens ou aranhas na bagagem.

A pernada prossegue desimpedida pelo descampado, s/ variação alguma de desnível. Um sossego só, sempre acompanhando o paredão imponente da serra à nossa direita. No caminho, muitas flores despertam a atenção da Lu e a presença de uma seqüência de rochas planas fincadas perpendicularmente no solo + parecem lapides naturebas ou monólitos q registram silenciosamente nossa passagem naqueles campos ermos.
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Mas logo adiante temos o 1º sinal de vida do dia, na forma de uma rústica fazendinha, o Sitio do Dante. Lá, um rapaz (c/ piercing no olho) cortando cana nos dá algumas infos, alem de nos medir dos pés à cabeça c/ seu olhar, nossas mochilas despertam sua atenção, alem do enorme curativo em forma de “T” na rosto da Lu. Suas infos batem c/ nosso roteiro, mas suas otimistas previsões de tempo-espaço (“Vcs chegam em 3hrs em Fechados, a cavalo!”) nos deixam ressabiados, nos lembrando + uma vez q em terras mineiras as distancias tem outra referencia. Medidas no jeitinho “mineirês” do “é só um tirinho”, o q pode ser uma horinha pode ser traduzido por mais um dia.

Continua em Travessia na Serra do Cipó – Parte 2

Texto: Jorge Soto
Fotos: Alessandro de Jesus/Luciana Barreiro

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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