Por Beatriz Azevedo – Cuca de Prata
O tráfego de caminhões é intenso e os pitorescos veículos, coloridíssimos, exibem uma profusão de desenhos: flores, olhos e outras figuras da cultura paquistanesa. Em alguns, as portas de metal foram substituídas por portas de madeiras, ricamente entalhadas em alto relevo, guizos de metal pendurados em suas laterais fazem tlintlim à medida que eles se deslocam. Minivans transbordam de gente. Ônibus, com assentos ao nível da janela, de modo que se vêem apenas as pernas dos passageiros, transportam também pessoas sentadas nos seus tejadilhos. Uma loucura pra nossos olhos ocidentais, porém os paquistaneses demonstram estar bem à vontade em tal posição!
Estou fascinada diante de tal ousadia. A KKH atravessa cidades, “towns” e “villages”, como Haripur, Abbotabad e Mansehra, feias e sujas, entretanto, começo a gostar dessa confusão, dessa vida borbulhante e aparentemente caótica. Chegamos em Chillas às 20:30. O hotel onde me hospedo, o Shangrila Midway House, é muito legal. Construído na frente do rio Indo tem um enorme jardim, com árvores e flores de variadas espécies. Lanternas e luzinhas coloridas dão um toque festivo à noite. O quarto, amplo, com chão acarpetado de palha trançada e teto revestido com tirinhas de bambu bem fininhas. Vasos e pratos, enfeitados com pequenos pedaços de espelhos e ladrilhos coloridos, adornam mesas e prateleiras. Abajures, com lâmpadas amareladas, dão um toque aconchegante ao recinto.
Durante a janta, um amigo de Ali, também , guia, vem cumprimentá-lo. Conta, sorridente, que alguns clientes alemães temem que Osama Bin Laden esteja escondido no topo do K2! Rio amarelo porque eu quase cancelara minha viagem em razão de matéria escrita por um jornalista do Terra Magazine, poucas semanas antes de minha partida, comentando exatamente tal notícia. Durante a viagem, outros paquistaneses que conheci continuaram nessa pegada, gozando, educadamente, é claro, do temor dos turistas de que possa Bin Laden estar escondido em algum rincão do país, pronto a dar o bote em nós. Finalizam o deboche, afirmando que o terrorista está escondido, isso sim, é nos Estados Unidos, pertinho da Casa Branca. Essa é boa!!
 ,Bueno, antes de ir pro quarto, eu e Ali vamos fumar um cigarrinho no jardim. A lua cheia, ainda amarelada por tardios reflexos de raios de sol, imprime um rastro prateado na superfície d´água. Mal posso acreditar. Não é que estou na banda oriental do planeta?! , Puxa vida!! Saímos de Chillas às 6:20 da matina, e após uns 50 km, um pouco antes de abandonarmos a KKH para entrarmos na rodovia que nos levará a Skardu, já é possível visualizar o encontro das três cordilheiras responsáveis pelo relevo acidentado do país: Indo Kush, à esquerda, Himalaia, à direita, e Karakorum, à frente. No mesmo local, percebe-se, ainda, a junção do rio Gilgit com o Indo cuja nascente localiza-se em Skardu. Viro-me para trás e vejo, embora já distante, o perfil imponente do Nanga Parbat. Embora a estrada até Skardu já não seja mais a KKH, o rio Indo continua a nos escoltar.
O motorista da van chama-se Aqbar. Ainda que não fale inglês, dirige com calma e destreza o veículo (como pude constatar, posteriormente, os motoristas com quem andei foram braço mesmo, todos excelentes). Junto, vai, também, Niaz, o cozinheiro, um jovem de 24 anos. Num inglês arrevezado, enumera, orgulhoso, suas habilidades na culinária mexicana, chinesa e italiana. Auto-intitula-se chefe de cozinha.
O rio Indo, comprimido entre dois cordões de montanhas, estas já pertencentes à cordilheira Karakorum, com suas margens bem próximas uma da outra, torna-se fera, altas corredeiras formam sorvedouros vorazes. O ruído estrondoso da correnteza turva abafa por vezes a música indiana vinda do toca-fitas. A estrada, bem mais estreita e sinuosa que a KKH, é mais perigosa, contudo mais bonita já que, entre as áridas montanhas, vêem-se terraços com plantações de trigo, sobressaindo em algumas maduras espigas douradas. Pomares com árvores frutíferas quebram a monocromática coloração marrom e bege da paisagem. Em certos trechos, túneis de árvores sombreiam ambos os lados da estrada. A quantidade de áreas verdes entre Chillas-Skardu – algo em torno de 300 km – viceja graças às águas de degelo que escorrem dos topos das montanhas.
Um céu de brigadeiro hoje, apenas algumas nuvens para o lado do Nanga Parbat. Escuto freqüentes deslizamentos de terra na outra margem do rio. Agora mesmo foram dois boings de arrepiar. À medida que subimos a cordilheira Karakorum, cujos paredões vão ganhando mais e mais altura, aumenta o desnível entre o leito do rio Indo e a estrada, possivelmente em torno de uns 400 metros de altura. Uma paradinha para estender as pernas numa “village” onde há alguns armazéns, um restaurante e um hotel. Fico admirando um dos inúmeros tributários do rio Indo que, impetuoso, espuma toneladas de líquido montanha abaixo. Seu barulho é tonitruante. Impossível se banhar nesses rios: além da temperatura geladíssima das águas, suas corredeiras endiabradas matariam o mais experiente dos nadadores. Uma pena porque o sol forte pra caramba convida a um belo mergulho refrescante.
Algumas crianças se aproximam encantadas e me espiam com curiosidade. Sorrio e algumas me devolvem o sorriso. Retomamos a viagem. Um pouco mais adiante, passamos por meninos que vendem cerejas, ameixas e abricós. Esta cena repete-se algumas vezes durante o percurso. Sinto vontade de pedir a Ali que pare o carro para eu comprar abricós, uma fruta que não houvera provado até então in natura, apenas seca, como passa de damasco. Verifico, infelizmente, que não tenho dinheiro trocado.
Interessante observar os diversos costumes de cada país: no Brasil, temos as redes, herança indígena, pra descansarmos ao ar livre, aqui são camas (estrados de metal ou madeira cobertos com tiras grossas de nylon entrecruzadas) postas em frente aos restaurantes onde os homens, indolentemente, se recostam em almofadas acilindradas. Alguns tiram uma boa soneca enquanto outros bebem chá e batem papo.
Chegamos em Skardu às 14 horas. A capital do Baltistão é uma cidade feia, suja e pobre. Pra variar, não há quase mulheres na rua. Homens, entretanto, há aos magotes, e todos me fitam com curiosidade, alguns flertam, lançando olhinhos sedutores. Algo meio ingênuo até. Umas graças. Sinto o ego, infladíssimo. Afinal, dos 3 ao 80 anos, não passo despercebida. O hotel embora confortável não tem os requintes do de Chillas.
Ladeiam a entrada do hotel duas palmeiras artificiais, iluminadas, à noite, por luzes vermelhas e verdes. Este país é duma breguice encantadora!! Num saguão do piso inferior, ouço uma cantoria feminina. Trata-se de um encontro religioso de muçulmanos, a religião predominante no país.
Situada a 2.100 m, a cidade é rodeada de altas colinas, algumas com neve nos topos, outras a têm nas encostas, semelhantes a estrias verticais, riscando de branco o cinza da rocha. Tudo muito árido até você perceber em algumas delas grama em seus cocurutos. Skardu é um importante centro comercial, portanto a quantidade de lojas vendendo de tudo um pouco é pra lá de variada. As confeitarias são um capítulo à parte. Sortimentos de doces, em formatos triangulares, quadrados e redondos, colorem de verde, amarelo, laranja e rosa as vitrines. No interior, mesas e bancos onde os clientes tomam chá e comem os petiscos. O ambiente é escuro e sujo pra não fugir à regra. E os homens, com suas roupas que lembram pijamas (shalwar e qameez), muitos deles de mãos dadas, passeiam à vontade nas ruas. A temperatura está beirando os 37º C. Mesmo assim, recuso-me a ficar no hotel e saio pra bandear pela cidade.
 ,Andando na rua principal, de chão batido, sou atraída pelo canto monocórdio de um velho cego sentado numa cadeira coberta com um tetinho de madeira. Recita poemas religiosos pra ganhar dinheiro. Cabras vagueiam, soltas nas calçadas. Coisas do Paquistão. Infelizmente, sou obrigada a interromper o passeio: descubro, enquanto tiro fotos, que todas as pilhas adquiridas em Dubai se encontram descarregadas. Puta merda….se não carregá-las até amanhã, ficarei sem bateria durante o trekking. Oxalá, deus me proteja dessa desdita!! E lá me vou, aflitíssima, voando as tranças pro Hotel Mashabrum.
continua…