Trekking ao acampamento base do K2 – Final

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Acordo, não dá outra, cedíssimo, embora não vá fazer nenhum passeio longo. Hoje o dia está reservado pra conhecer Karimabad (abad significa população).


Por Beatriz Azevedo

Veja a parte 10 do relato

Enquanto espero Siddique no restaurante, saboreando um desjejum sem grandes atrativos gastronômicos, curto, através das amplas janelas, o cenário a minha volta. Rodeada de montanhas com mais de 7.000 metros Karimabad, conhecida também como Baltit, é a capital do Hunza Valley.

Domina a paisagem, bem à minha frente, dois destaques da região: Diran Peak e Rakaposhi Peak. Mas a coisa não pára nestas duas montanhas. À esquerda, quase todo encoberto, mal percebo o Golden Peak e, à direita, debruçando-se sobre o Baltit Fort, o Ultar Peak. Bem mais distante, aponta tal qual um estilete, o pontiagudo cume rochoso sem neve do Lady Finger Peak. Contemplando toda essa belezura, divago. Traço um paralelo entre as montanhas e a anatomia masculina e a feminina, comparando as áridas montanhas e suas abruptas arestas à primeira, enquanto as cobertas de vegetação à segunda, em que o verde da grama representa os trajes e adereços coloridos usados pelas mulheres (sei que é uma comparação babaca mas, enfim, foi a que me veio à cabeça no momento).

Conversando com Siddique, que se junta a mim no refeitório do hotel, mais informações sobre a travessia do Ghondogoro me são fornecidas. Eu poderia tê-lo cruzado embora esteja fechado. Para tanto teria de pagar mais e a operação far-se-ia da seguinte maneira: os porters retornariam de Concórdia e eu seguiria apenas com o guia e o cozinheiro. Da vila de Hushe, outros porters se deslocariam até Ali Camp, o primeiro acampamento após a travessia do Ghondoghoro La, com mantimentos e equipamentos necessários aos demais dias de trekking, que findariam justo em Hushe. Pena eu saber disso logo agora!

Enquanto subimos as ladeiras, Siddique comenta que o povo de Karimabad tem a cabeça mais aberta e as mulheres, ao contrário das de outras vilas, permitem, às vezes, as fotografias. Pergunto a ele se há divórcio e Siddique confirma tal possibilidade. Caso o marido recuse, o casal vai ao tribunal, decidindo por eles o juiz. Entretanto, a incidência de divórcio é baixa porque, segundo ele, os preceitos islâmicos ensinam que um homem e uma mulher não devem viver sós.

O lugar é encantador. Arcadas atravessam os passeios de um lado a outro, casas feitas de pedra, com balcões de madeira, debruçam-se sobre ruelas estreitas e sinuosas. Nossa caminhada termina no alto de uma empinada colina onde se ergue altaneiro o Baltit Fort. Agora transformado em museu, este edifício, de mais de 700 anos, foi, até 1945, moradia dos antigos reis do Hunza Valley. Em 1975, a região, até então um estado independente, governada pela dinastia real dos Khan, foi anexada ao Paquistão. Rebaixada, assim, à condição de distrito, compõe o que se conhece, atualmente, como área Nordeste do país. Entramos na vetusta moradia toda feita de grandes blocos de pedra, e a primeira peça visitada são os calobouços (será uma advertência?).

Subimos uma escadinha que conduz a uma peça de teto baixo com janelas pequenas, escura à beça. O guia do museu vai nos conduzindo de peça em peça até a única sala realmente clara de todo o prédio. Tem as paredes pintadas de branco e uma graciosa sacada de madeira, ricamente entalhada, de onde se descortinam as barrancas esbranquiçadas do rio Hunza. Da cozinha, próxima peça a ser visitada, o único vestígio de claridade advém de uma pequena clarabóia, e o teto, coberto de picumã, revela a falta de ventilação do ambiente. Tudo muito rústico. Embora fossem reis, não gozavam lá de muito conforto, não! No terraço, uma larga cadeira de madeira fazia de trono onde o monarca recebia seus súditos. À frente, um estradinho de madeira – o palco – para apresentações artísticas que serviam para entreter a corte. E pendurada em uma das paredes, uma cabeça de bode, considerada símbolo de boa sorte.

O panorama que se tem daqui de cima é formidável, compensando a modéstia do interior do palácio. A vista de 360º abrange não só todas as montanhas adjacentes quanto a vila, situada mais abaixo. Uma paz este lugar. Entro em lojinhas onde estão expostos tapetes feitos a mão, finamente, bordados, colares de rubi, turquesa e lápis lázuli de dar água na boca, mais uma sorte de produtos típicos, tudo muito, muito colorido. Por sorte, deixara a maior parte de meu dinheiro e o cartão de crédito em Islamabad. Senão teria me enchido de badulaques mis.

Abordada na rua por um homem, simpaticíssimo, que me convida pra visitar sua casa, lá vou eu conhecer sua humilde moradia. E tiro fotos com alguns de seus filhos, adoráveis e sujos! Ele faz isso esperando em troca um dinheirinho para aumentar a renda familiar…triste miséria que obriga as criaturas a revelarem sua intimidade.

Já de volta ao hotel, quem encontro? Anwar e Mustafá. Encantados com o encontro, convidam-me pra jantar com eles no hotel onde estão hospedados juntamente com o grupo de tchecos. Quando estou saindo da lan house, um pouco mais tarde, volto a encontrá-los e, pra minha surpresa, oferecem-me, de presente, uma camiseta com uma estampa do K2! Estou gamada por esse povo, mais bacana impossível! Já no hotel, escuto da varanda o rumorejar do rio Hunza competindo com os gritinhos de crianças que brincam nos pátios de suas casas e com o crou crou das gralhas pousadas nos galhos das árvores. Fantasio, nesta hora morta do entardecer (apesar dos meus 55 aninhos, sou, reconheço, convencionalmente romântica), quão bom seria se Ali, de repente, surgisse pra me levar pra Islamabad. Não num cavalo branco e sim numa van climatizada. Minha versão moderna do príncipe encantado…..huuummm.

Convivendo, enfim, com as paquistanesas!

Eu sabia, tinha certeza de que o tempo aqui em Karimabad se comportaria igual ao de certos veraneios azarados em que os dias se mostram casmurros, exceto o último quando pára de ventar, o sol se mostra em todo seu vigor e o mar vira um espelho de tão límpido e tranqüilo. De pé no terraço do hotel, enquanto espero seja minha bagagem levada até o carro, o dia, esplêndido, enfim me dá uma chance de ver a magnificência do Rakaposhi. Observo que em sua face leste há dois largos e extensos contrafortes: o da direita menos nevado, já o da esquerda apresenta-se coberto de neve por inteiro. Abaixo, no vale, as águas beges do Khunjerab e Nagar dissimulam mal e mal a junção destes dois afluentes do Hunza, principal rio da região, um dos tributários do Indo, o maior rio do país, cuja foz situa-se a mais de 1.700 km, no mar Arábico. Olho pro relógio colocado numa parede do restaurante onde estou comendo meu desjejum e constato, atônita, que são 6:30. Estranho porque acordei às 7:30! Meu espanto dura pouco, logo me dou conta de que os relógios, via de regra, não são acertados pro horário de verão, permanecendo no horário antigo. Coisas do Paquistão! Justo, hoje, fico sabendo que Karimabad é o único lugar do país onde é fabricado um certo tipo de vinho cujo teor alcoólico é bastante forte, segundo me conta Siddique. Peninha, gostaria de tê-lo provado.

Às 8:20, partimos de Karimabad e, durante o trajeto, a presença constante do Rakaposhi se faz presente sempre do lado esquerdo da KKH. Fazemos um stop no mesmo restaurante onde estivéramos na segunda-feira quando íamos rumo a Karimabad. Do estabelecimento, estrategicamente situado no sopé da montanha, tem-se uma vista muito atraente da montanha, de cujo glaciar desce um riozinho cascateante por entre as pedras de seu leito. A parada inclui, é claro, um chazinho. Peço verde sem leite.

Retomamos a viagem e Siddique pede a Aqbar que pare e pergunte a uns homens sentados à beira da rodovia se conhecem uma alternativa à KKH que conduza também a Gilgit. Eles indicam onde dobrar e lá vamos nós por uma via paralela à grande rodovia, que inicia antes de Islamabad e percorre o restante do país, adentrando o território chinês. Fico sabendo um pouco mais sobre o verdadeiro interesse do governos chinês em cooperar no alargamento da KKH. Se os chineses utilizassem seus portos pra escoar os produtos e matérias primas produzidos no sul de seus país, o transporte resultaria muito mais demorado. Assim, eles preferem despachá-los via Karachi. Dessa forma, as mercadorias são transportados em imensas carretas containers até o porto seco de Sost, não muito longe da fronteira chinesa, e lá distribuídas em caminhões menores que as conduzem até o porto da antiga capital paquistanesa.

Às 11:20, chegamos em Gilgit, a principal cidade da Northern Areas (esta região não é província e tampouco faz parte do Paquistão, tudo muito confuso, só eles pra entenderem tal divisão política). Sem grandes atrativos turísticos, é cortada pelo rio de mesmo nome. Seu centro comercial demonstra, de fato, a importância administrativa do lugar: no bazaar há talvez mais de uma centena de lojas ocupando diversos quarteirões. Mesmo assim, o despojamento que observara nos vilarejos, também, aqui predomina: ao lado de uma joalheria, um aviário, na frente de uma loja de finas roupas femininas, cabras e vacas pastam, sem ser incomodadas ou enxotadas. A tradição rural do país é mais forte do que qualquer verniz de sofisticação que as cidades reivindiquem.

Gilgit foi o único lugar onde um homem, fabricante de calçados, se recusou a ser fotografado, consentindo apenas que eu fotografasse os sapatos. Ficamos menos de uma hora (o calor, insuportável) e saímos às 12:10 para Chillas. Transcorrida uma hora de viagem, já é possível se avistar Ferumidu ou Rakhiot, a face norte do Nanga Parbat, a mais bela de todas devido à generosa vegetação e florações em seu entorno. Não à-toa, o lugar recebe o apelido de Fairy Meadows. Entretanto, é a mais perigosa pra escalar em razão dos constantes deslizamentos de neve e gelo que ocorrem em suas encostas. Das três faces, Diamir, situada a oeste, é a de paisagem mais árida porém a menos difícil de ascender. Já a cara oeste, Rupall, é pura rocha, uma autêntica big wall.

Chegamos em Chillas às 15:15. O calor está em torno de 40º C, e eu, agora, sentada nos jardins, tenho à minha frente as águas lamacentas do rio Indo. Passarinhos trinam sem parar e besouros tiram fininho de minha orelha. O farfalhar das árvores e o conversê em urdu dos empregados do hotel são minha trilha sonora, quebrada vez por outra pelos roncos e buzinas abafados dos veículos que trafegam na KKH, à beira de onde o hotel foi construído. Venho observando a diferença – sei lá por quê – no estilo de sedução entre chineses e paquistaneses: os primeiros dardejam olhares firmes, evidente a lascívia que deles brota. Já os paquistaneses lançam olhares langorosos, há um não sei que de démodé em tal manifestação. Talvez porque a religião muçulmana funcione como um freio à lubricidade dessa gente.

Fecho os olhos e vejo ainda a paisagem vista de dentro do carro se desenrolar a minha frente: um mar de areia e rochas cuja tonalidade varia apenas do cinza-escuro pro cinza-claro. País mágico e encantador este! Pretendo retornar tão logo possa e fazer o trekking no Biafo Glaciar cuja melhor época é julho quando, então, as fendas se abrem e são, facilmente, visíveis. Peço café. Trazem nescafé e água quente num bule…..pode? Coisas do Paquistão! Os garçons nem sempre entendem meu inglês mas são tão solícitos e gentis que dá vontade de beijá-los. Aliás, eu por mim beijava homens, mulheres, crianças, cabras e galinhas. Continuo sentada no jardim……tão bom aqui!

Uma leve brisa agita os ramos das árvores carregadinhas de flores. Olha que eu gosto de calor, porém o de hoje está demais. Noto uma mocinha muito bonita, de seus quinze anos, vestindo um elegante shalwar e qameez amarelo e preto, tagarelando ao celular. Lança-me um olhar meigo. Eu retribuo sem qualquer esperança que ela se aproxime, afinal, as mulheres são tão arredias! Pois não é que a guria se aproxima?

Estamos nós em animado bate papo quando surgem a mãe e a irmã caçula. Ficamos amicíssimas. Tiramos mis fotos (Mehr, não só pede pra eu fotografá-la como me fotografa também!). São de Rawalpindi (abreviam pra Pindi). A mãe, apesar de bem acima do peso, conserva, ainda, vestígios de beleza. Seus olhos embaçaram-se depois que perguntei se só tem as duas meninas (numa cultura tão machista quanto a paquistanesa, não gerar um macho deve lançar uma mácula sobre as mulheres, com certeza). Pinta vasos e borda. A mais moça, de uns 12 anos é espevitada, muito engraçadinha. Indagada sobre meu estado civil, exclamam ohs consternados quando respondo que sou divorciada, logo substituídos por ahs de alívio ao saber que não sou infeliz por estar sozinha. São as únicas mulheres, ao longo destes 28 dias de viagem, que não vejo cobrindo os cabelos com dupata, usam-no como echarpe ao redor do pescoço.

Estou eu me preparando pra dormir e ouço um toc toc à porta. Abro e me deparo com Mehr, parada na soleira. Vem se despedir. Não dá nem dois minutos, surge o pai. Sou então a ele apresentada. É arquiteto. Pergunta se a filha está incomodando. Eu respondo com o esperado não. Elogio-a, ele fica todo orgulhoso. Não se passam três minutos, e eis a mãe com a caçula pendurada em seu braço. Sem ser convidados, entram todos no quarto. Eu já estou sorrindo amarelo, na verdade, desejaria ser deixada em paz, solita, com meus pensamentos. Mehr deseja tirar mais fotos de mim, agora com o pai junto. Diz que é para eu não esquecer deles. E dá pra ficar aborrecida?

De volta a Islamabad

A noite foi insuportavelmente quente. Como tenho ojeriza a ar condicionado, desliguei o aparelho e, não contente, ainda, o ventilador de teto, porque muito barulhento.

Sexta-feira amanhece linda e o céu exibe uma uma tonalidade clara de azul. Estamos saindo de Chilas às 7:30. Uma longa viagem nos aguarda. Embora a distância entre Chillas e Islamabad seja de apenas 483 km, a viagem de carro dura 14 horas! Isso se não houver nenhum deslizamento de areia e pedras porque, conforme a quantidade de detritos caídos sobre a rodovia, a demora pode variar de 2 horas a dias! O grande perigo aqui no Paquistão são estes desmoronamentos. Enormes blocos de rochas, precariamente, equilibrados uns sobre os outros debruçam-se sobre a rodovia. A própria trepidação dos veículos ou um vento forte pode provocar, em fração de segundos, a queda desse material.

No nordeste do país, há dois aeroportos: o de Gilgit e o de Skardu, e a viagem entre eles e o da capital se faz em pouco mais de 1 hora. Contudo, voar de Islamabad até uma dessas duas cidades, ou delas pra capital, sujeita-se às imprevisíveis condições meteorológicas da região, devido às altas montanhas e a formação de espessas nuvens, o que dificulta em muito a visibilidade. Já saimos dos territórios do norte do país (Northern Áreas) e estamos, agora, percorrendo a NWFP (North-West Frontier Province).

A paisagem começa a se transformar: a aridez do terreno, despojado de qualquer vegetação, cede lugar, pouco a pouco, a uma luxuriante cobertura vegetal que colore de verde escuro as encostas das montanhas. Chegamos em Besham, às 13:15. Esta cidade é um importante centro comercial da NWFP onde o comércio funciona 24 horas por dia. Enquanto estou almoçando, sou objeto de curiosos olhinhos infantis que me espiam através da janela do restaurante. Lá pelas tantas, faço uma careta. É o que basta pro bandinho de crianças espalhar-se alvoroçado pelo jardim.

Vem me surpreendendo o tratamento paciente e carinhoso dispensado pelos homens aos seus filhos. Aos mais moços pegam no colo com frequência. Minha curiosidade sobre os nomes das vestimentas típicas é satisfeita por Siddique: as mulheres quando vestem shalwar e qameez (túnica e calça) cobrem a cabeça com uma echarpe, a dupata ou chadar. Às fiéis seguidoras dos rígidos preceitos islâmicos está reservado o uso do burqa, o amplo e disforme camisolão (vi apenas em duas cores: azul anilina e preto) que as cobre dos pés à cabeça, não deixando escapar nem os olhos.

Àquelas que não se resguardam tanto dos olhares masculinos, há uma variante um pouco “mais” light que deixa visíveis os olhos por entre a máscara de pano. Sou fascinada por essas roupas. Há um não sei quê de mistério em tudo isso. Longe de mim vesti-las, contudo, me atrai a sensação de “invisibilidade” que tais vestes proporcionam. Os chapéus masculinos são o topi (quepe) ou paghrhi (turbante).

Saída de Besham às 14:45. À medida que vamos nos aproximando de Islamabad, o verde das matas vira regra. Siddique, durante a nossa infindável viagem, conta que perto de Karachi há uma praia muito linda com mar azul e águas mornas, Gowadar. Muitos túmulos à beira da estrada onde mulheres, ajoelhadas, pranteiam seus mortos, ao passo que os homens, acocorados, conversam entre si.

Siddique já tem uma opinião diversa à de Ali no que se refere a relação afetuosa entre os homens, assegurando inexistir envolvimento sexual, apenas amizade. Humm….quem terá razão? Na minha peregrinação ao longo da KKH (e olha que eu andei, hein! fui de Islamabad até a fronteira com a China), apenas num pequeno trecho entre Abbotabad e a capital, foi construída pista dupla. Lá pelas 17 horas, cai uma chuva grossa. O movimento na rodovia é intenso em ambos os sentidos. Chegamos, finalmente, a Islamabad, por volta das 21 horas, já noite cerrada. Minha prima fez uma comida especial pra mim: bife à parmegiana, salada de alface e cenoura, arroz branco bem soltinho e macio.

Percebo com tristeza, ao acordar, que hoje, sábado, é meu último dia no Paqui….putzgrila, passou tudo tão rápido. Vou pela manhã fazer o debriefing no Alpine Club of Pakistan. As perguntas são as de praxe: o tratamento que me foi dispensado pela agência e pelos guias durante a viagem, e minha opinião sobre o trekking. Encerrados os trâmites burocráticos, vou a Panoramic Pakistan me despedir de Tahir e agradecer pelos seus bons préstimos no lamentável episódio do passaporte. Também tenho de acertar minhas contas já que eles pagaram despesas minhas de Skardu em diante porque “muito previdente” deixara a maioria de meu dinheiro e cartão de crédito aqui em Islamabad.

Reencontro Niaz que fica muito contente ao me rever. Despedidas feitas, me trazem pra casa onde eu e Renata comemos um bom almoço preparado por ela: salada de alface, cenoura ralada e pepino acompanhando uma torta de camarão. Vamos então às compras. Adquiro um monte de bugigangas pra presentear amigos e parentes. Exausta de tanto bater pé nas lojas – cansa mais que trekking….ufa! – e de gastar, retornamos pra casa conduzidas pelo simpático motorista, Mr. Beak. Aí a ingrata tarefa de arrumar malas, arrrghhh!! Às 20:30, chega um casal de cariocas, Jader e Teresinha, ele oficial da FAB, cedido como treinador à equipe de futebol das Forças Aéreas paquistanesas, ela, dona de casa. Vamos ao Hot Spot jantar. Muito agradável a companhia deles. Contam fatos interessantes presenciados durante o 1 ano e 7 meses de permanência no país. Como dois casamentos a que foram convidados. Duram as bodas 6 dias, pra cada dia há uma atividade diferente: num dia, comem, noutro, a noiva se pinta, no terceiro, os parentes dos noivos vendem doces para os convidados e no penúltimo dia, o noivo e a noiva transam, sendo que antes a sogra examina a moça para confirmar sua virgindade. Conta Teresinha que só neste dia é permitido ao noivo ver o corpo nu da moça. Depois, as relações sexuais acontecem com ambos vestidos. Eles ainda estão na Idade Média nesse aspecto, gente!

Somos deixadas em casa, e ficamos, eu e Renata batendo papo até 1 e 30 da madrugada, hora em que Mr. Beak me traz ao aeroporto. Como o Paquistão é rota de narcotráfico da heroína produzida no Afeganistão, a polícia antinarcóticos revista as malas dos passageiros na saída do país. Sem esquecer o cubículo onde uma guarda feminina procede a uma revista pessoal, manuseando as mãos de cima a baixo do meu corpo. Só após esses procedimentos, é permitido realizar o check in. Entro na ala internacional e o free shop revela-se duma pobreza franciscana, pouquíssimos os produtos importados: algumas marcas de perfumes, chocolates e só. Se não fossem as inevitáveis lojinhas vendendo souvenirs de produtos típicos do país, poucos seriam os atrativos pra se ocupar o tempo antes do vôo. Antes de entrar na sala de embarque nova revista pessoal (deve ser pra evitar que alguém, sei lá, um funcionário do aeroporto, possa passar alguma droga nesse meio tempo).

Já 3 da madruga -, ainda aguardando a hora de embarcar para Dubai, observo as sandálias dos fiéis alinhadas do lado de fora da sala de orações. Curiosíssimo país este. Sentada um pouco além de mim, uma jovem mulher segura um nenê que dorme em seu colo. Usa burqa preto, seu véu, contudo, deixa visíveis os olhos: entre eles há uma tira fina de pano que desce da testa até a ponta do nariz. A barra de sua túnica é bordada com linha dourada. Por baixo, uma pantalona rosa. Várias pulseiras douradas tilintam em ambos os pulsos. As pontas dos dedos, tanto dos pés quanto das mãos assim como os do bebê, estão pintados de laranja. Há que me distrair porque senão tenho um xilique: quatro horas de vôo até Dubai, mais quatro de espera naquele aeroporto, pra então embarcar rumo a Sampa, cuja distância de 12.669 km se faz em 14 horas. Meu coração já geme de saudades.

Shukurya Paquistão! Inshala possa eu retornar a este lindo e acolhedor país!

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