Trekking ao acampamento base do K2 – Parte 10

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O dia amanhece bonito e quente como todos os de minha estadia em Skardu. Eu sinto-me triste porque o melhor da viagem terminou: o maravilhoso trekking e a convivência com os porters, admiráveis na árdua labuta de transportar, em suas costas, 25 kg de carga ao longo dos 12 dias de caminhada. Embora rudes e pobres, são gentis, alegres e respeitosos.


Por Beatriz Azevedo

Leia a parte 9 do relato

Lamento, ainda, abandonar a boa relação que se criou entre mim e meu guia. Uma pena Ali não poder ir pra Karimabad, infelizmente, ele terá de coordenar três expedições, duas a Concórdia e uma ao Biafo e Hispar Glaciares, motivo pelo qual deve permanecer em Skardu. Ali, um homem inteligente e sensível, super atento, procurou dar o melhor de si pra tornar minha viagem a mais agradável possível.

Ontem à noite ele deu-me uma linda echarpe de lã, bordada com pequenas aplicações de pedrinhas brilhantes. E convidou-me para jantar no melhor restaurante da cidade! Nós disfarçamos nosso desânimo diante da separação e tentamos criar um clima alegre, o que não colou: soou forçada a tentativa. Eu sentia algo mais que um sentimento de camaradagem entre nós mas não sabia precisar exatamente o quê. Então falamos banalidades aguardando que o outro tomasse a iniciativa de dizer……sei lá o quê!

Às 8:20, o ronronar do motor da van, no páteo do hotel, anuncia a iminente partida. Pespego um forte abraço em Ali e sopro-lhe um beijo de dentro do carro. Adeus….Ali.Tenho agora um novo guia, Siddique.

O motorista, Aqbar, é o mesmo que me trouxera a Skardu há 16 dias atrás. O trajeto, na mesma perigosa estrada Skardu-KKH, dá a impressão de ser pior do que na vinda. Talvez porque meu estado de espírito não seja tão alegre. O tempo também não colabora: nublado e chuvoso. Abricós secam em cima de largas pedras bem como nos telhados de barro das casas. Siddique é simpático e bem educado, seu inglês é mais inteligível do que o de Ali mas…não é Ali.

Umas duas horas antes de chegarmos a Karimabad, somos forçados a parar: um deslizamento de areia e pedras interrompe a estrada. Siddique informa que talvez demore cerca de uma hora. Tratores removem os entulhos, alguns engenheiros chineses, atarefados, passam pra lá e pra cá. Por falar em chineses, Siddique explica que a China é um grande parceiro do Paquistão. Segundo ele, o verdadeiro motivo de os Estados Unidos insistirem em procurar Osama no Paquistão, não passa de desculpa. Na real, os gringos querem mesmo é instalar uma base militar perto de Skardu a fim de monitorar aquele país. Em relação à Índia – comenta com um risinho -, o problema não são os indianos e sim seus governantes. Quanto ao Irã, acrescenta serem boas as relações entre as duas nações. Já com o Afeganistão, a dificuldade é administrar os milhões de refugiados que se instalaram junto à fronteira oeste de seu país. Nossa conversa ocorre, de pé, à beira da estrada, sob uma ligeira garoa, enquanto o trabalho de remoção dos detritos se processa mais adiante.

Enfim, somos liberados a prosseguir e a longa fila de veículos começa a se mover. Paramos pra almoçar num restaurante situado em frente à magnífica Rakaposhi, uma linda montanha de 7.700 metros de altura, toda nevada. São agora 17 horas e já estou em Karimabad, capital de Hunza Valley, região situada à margem esquerda do rio Hunza. Do outro lado do rio, em sua margem direita, o vale é chamado de Nagar.

Karimabad é uma encantadora vila verdejante abraçada por altíssimas montanhas cobertas de glaciares. Pertinho do hotel, descubro uma lan house a que se chega após subir uma inclinada ladeira. Estou eu lá batucando nas teclas do computador quando vejo adentrando a sala o grupo de tchecos conduzidos por Anwar e Mustafá. Dou beijocas em todos. Embora os europeus se mostrem divertidos com a recepção calorosa, retribuem, meio sem jeito, porém alegres, à minha efusiva saudação. Já os dois paquistaneses, encantados, demonstram toda sua satisfação e abraçam-me afetuosamente. Estão deveras felizes em me rever.

Ao retornar ao hotel, a chuva recente que caíra, avivando os odores das abundantes plantas e flores que crescem ao longo das ruas, deixa no ar um cheiro de mato molhado. Gostoso demais esse cheirinho. O hotel está construído sobre uma colina e o cenário que tenho da varanda, onde há mesas e cadeiras confortáveis, é espetacular: as montanhas Rakaposhi e Diran, dignas de cartão postal. Infelizmente, não é possível visualizá-las com nitidez: algumas nuvens encobrem-nas parcialmente. Oxalá consiga vê-las em seu esplendor nem que seja no último dia de minha estada nesta encantora vila.

Khunjerab National Park

Embora não chova, o dia amanhece, parcialmente, nublado. Vou conhecer o Passo Khunjerab e por isso saímos às 8:20 de Karimabad. A viagem segue pela onipresente KKH e durante um bom trecho do percurso colorem a paisagem os verdejantes terraços onde brotam plantações de cereais e verduras. À beira do rio Hunza, sucede-se um vilarejo após outro com suas rústicas casinhas de pedra ou adobe.

Após duas horas de viagem, do outro lado do rio, destaca-se um impressionante conjunto de montanhas, denominado Passu Cathedral, cuja forma assemelha-se à de uma gigantesca igreja em estilo gótico. Conforme avançamos rumo ao norte, este colossal maciço rochoso ora posiciona-se bem à nossa frente ora à direita. À esquerda, passamos pelo glaciar Batura que, qual uma gigantesca impressão digital, borra de branco o cinza do terreno pedregoso.

Entramos no Khunjerab National Park às 11 horas. Este parque, o terceiro maior do país, cujo trecho pertence à rota da seda, foi, no século XIII, percorrido pelo mercador veneziano Marco Polo em suas peripécias pelo continente asiático. Trata-se de um desfiladeiro de escarpadas montanhas acinzentadas por onde flui o estreito rio Khunjerab.

À medida que nos aproximamos da China, o relevo suaviza-se, e ainda que ganhemos altitude, as montanhas não são tão empinadas quanto as de Hunza Valley. Já não é mais aquela paisagem áspera quando se entra no parque. Seus topos e encostas, quando não encobertos de neve, apresentam-se atapetados por uma veludosa camada de grama. Lembram, por mais absurda que seja a comparação, as coxilhas gaúchas.

Agora, estou na fronteira com a China, numa altitude de 4.700m. Um marco escrito em caracteres chineses assinala o limite entre os dois países. Distante uns 400 metros, há um edifício de concreto (deve ser a aduana) onde no topo a bandeira vermelha, com suas cinco estrelas amarelas, tremula ao vento. O céu, cinzento de nuvens, não deixa entrever qualquer rasgo de azul. Um frio horroroso. Chove e neva. Meus dedos sem luvas ressentem-se doloridos. A coloração do rio Khunjerab de bege passou a verde clara.

Um grupo de jovens estudantes paquistaneses, também em visita ao lugar, pede pra tirar fotos comigo, um de cada vez: são três. Siddique, sorridente, nos clica pacientemente. Eles, não contentes, exigem nova foto, dessa feita, nós quatro juntos. Na volta, peço para pararmos (estou apertada pra fazer xixi) e descubro, observando Aqbar acocorado, um pouco mais além, que os homens, quando vestem as roupas típicas, fazem xixi igual às mulheres! Hahahahaha…..essa é boa!

Meio cochilando, me dou conta de que o carro abandonou a KKH e sobe por uma estradinha de terra. Siddique avisa que vamos conhecer o lago Borith onde há um restaurante às suas margens. Pedimos chá com leite e ficamos, por uns 45 minutos, curtindo a paisagem, já totalmente desanuviada, revelando um céu azul claro. Já na van, rumo a Karimabad, Siddique ordena a Aqbar que estacione junto à beira da estrada onde um homem vende damascos secos. O guia oferece-me e eu provo: são uma delícia.

Chegamos em Karimabad às 18 horas e minhas pernas doloridas – também pudera, um tempão paradas – exigem, urgentemente, exercício. Assim, me toco pra lan house. Nem dez minutos lá, checando meus emails, e, ploft, apagam-se os computadores. O atendente, um magrinho de fala melíflua, corre esbaforido de seca pra meca, tentando resolver a situação. Solícito, vem até minha mesa e avisa que em 5 minutos tudo se solucionará (dessa vez não foi corte de energia, garante, mas o gerador que pifou, acrescenta, fazendo um ar condoído). Após o retorno da luz, ele encosta-se à minha mesa e, juntando as mãozinhas em prece, suplica, revirando os olhinhos, que eu escreva, sei lá prá quem – às autoridades (?) (continuo não entendendo lá muito bem o inglês dos paquistaneses) – para que invistam mais no setor energético ao invés de nas bombas atômicas. Ontem, ele já protagonizara uma cena meio bufonesca (tive de me controlar pra não cair na risada) quando, pra reforçar que sesteara após o almoço, teatralizou a cena (!), juntando as palmas das mãos e colocando-as, ato contínuo, delicadamente, sob uma das orelhas. Uma figuraça ele!!

Desisti de continuar escrevendo meus emails porque novo corte se impôs 10 minutos após o primeiro. Como o atencioso homenzinho não tinha troco, avisou que eu poderia pagar amanhã quando retornasse à loja. O gentil homuncúlo é despreocupadamente confiante…que gracinha!

Continua…

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