Trekking ao acampamento base do K2 – Parte 7

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Quando Mussa vem me trazer o chá, bem quentinho, constato mais uma vez que está nevando. São 6 horas. Tudo branco dos flocos que caem desde a madrugada.


Por Beatriz Azevedo

Veja a parte 6 do relato.

&nbsp,Já na barraca, comendo meu desjejum, sou informada de que há dois tipos de paratha: o frito e o cozido, ambos besuntados, depois de prontos, com um pouco de óleo. Já o nan é uma outra variante de pão feito com a mesma massa (farinha, água e uma pitada de sal), cozido na pedra. De manhã, eles tomam um chá, feito de ervas, cuja cor é rosa-telha misturado com leite e temperado com sal. Explicam que faz bem pra combater os efeitos da altitude.
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&nbsp,Deixamos Goro I às 8:15, e o tempo continua nublado, se bem que já não faz tanto frio. Também, pudera, estamos perdendo altura. Reencontro as famigeradas pequenas moscas e até mosquito dá pinta a 3.800 m!! Curto demais os porters vindo no sentido contrário com seus cavalos e burricos, alguns pastoreando cabras. Seus gritos de advertência ou incentivo à bicharada ecoam no ar.
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&nbsp,Curioso é o jeitão de os paquistaneses se cumprimentarem: afora, apertarem-se as mãos, encostam uns nos outros seus ombros direitos. O tal porter que se agregou ao nosso grupo vem, desde ontem, grudado em mim tal qual uma sombra. Ele me empurra nas subidas mais íngremes e me acode quando eu tropeço. Se eu largo meus bastões, os segura. Pára sempre que eu paro. Um encanto de criatura, embora me sinta constrangida com sua solícita presença porque, cheia de gases devido à alimentação e à altitude, sinto uma vontade infernal de peidar. Com ele nos meus calcanhares, fica difícil expectorar tanta flatulência barulhenta. A princípio, como não tenho outro jeito deixo escapar, vez por outra, um discreto pum. Depois dum certo tempo, nem me preocupo mais se ele escuta ou não. Urge aliviar a pressão insuportável, na minha barriga, daquela algazarra gasosa.
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&nbsp,Cada vez gosto mais dos porters: são muiiitooo legais. O mais velhos deles, o que me ofereceu sopa em Concórdia, sempre que paramos pra lanchar, trata de arranjar um cantinho maneiro pra eu descansar. Não tenho queixa de nada. Conquanto cansada – é um trekking pesado – estou trifeliz. Lastimo, é claro, não termos feito a travessia do Gondoghoro La (La significa passo). Há dois anos, encontra-se fechada ao trekking devido à abertura, no solo, de grandes fendas, motivo por que estou sendo forçada a refazer o mesmo caminho da ida.
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&nbsp,Estou curtindo tanto, não só a paisagem quanto as pessoas, que nem perco muito tempo lamentando tal imprevisto. Durante o trajeto Urdukas-Khaburse, fotografo e filmo várias das flores (há margaridas aqui!) que vicejam ao longo da trilha. Filosofo, enquanto caminho, a seguinte pérola: pois é Biazinha, sobe-se pra descer e desce-se pra subir…..hehehe. Quando chegamos em Khaburse, às 14:45, o tempo mantém-se, ainda, nublado. À tardinha, abre um sol legal tanto que eu, deitada no interior da barraca, retiro dois blusões e troco a calça de fleece por uma de algodão. Como meus joelhos estão a reclamar do esforço, resolvo, por bem, descansar mais um pouco. Assim, retorno à leitura do Pólo Sul. Muito agradável a narrativa do Capitão Amundsen. Extremamente minucioso, ele descreve com riqueza de detalhes a permanência durante os meses passados na Barreira (estou na metade do livro, ainda, na fase da preparação da expedição ao Pólo, cujo início será na primavera).
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&nbsp,Escuto intermitentes pingos de chuva no teto da barraca. Arre, que droga! Ao lado, o córrego escorre por uma laje formando uma minicascatinha. Agradável a beça o ruído. Venta, pois as paredes de nylon da barraca inflam a cada rajada de ar. Ponho o nariz pra fora e constato que a chuva se foi….aleluia!
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&nbsp,Vou até a barraca-refeitório, e Ali, sentado do lado de fora, puxa um banquinho pra mim. Acomodo-me ao seu lado e lá ficamos nós a prosear. Aproxima-se uma americana, jovem ainda, dona de lindo olhos azuis. Também está só. Convido-a para que se junte a nós. Conversamos um pouco, não muito, meu inglês não permite altos vôos, o suficiente, porém, pra saber que ela, de saco cheio de seu monótono emprego de bancária, decidiu dar uma banana à sua vidinha convencional e se aventurar mundão afora. Muito agradável a Anne.
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&nbsp,Temos agora uma rotina: jantamos, tomamos chá, fumamos e conversamos. Hoje consegui fazer com que Niaz, Muhammad e Mussa comessem juntos comigo. Tão desagradável vê-los à mercê do término de minha refeição pra poderem, então, se alimentar! Quando venho para minha barraca dormir, noto o céu, limpo, crivado de estrelas…..talvez a promessa de um belo dia?

Só as moscas me querem!

O dia apresenta-se esplêndido quando acordo às 6 horas. Tão-somente, algumas nuvens, aqui e acolá, dispersas no céu. Levantamos acampamento e, às 7:50, já estamos na trilha rumo a Paiyu. O porter, cujo nome é Youssuf, continua atrás de mim. Numa das paradas que faço pra fotografar e filmar, arruma a bainha de minha calça, pode?! Fico embaraçada com tanta dedicação. Nem sei o que dizer. Hoje de manhã, o coitado, quando nos preparávamos pra sair de Khaburse, me pediu novos bandeides. Como os meus já haviam acabado, nem hesitei, fui à barraca de Anne e expliquei a situação. Ela, gentilmente, cedeu-me quatro daqueles curativos.

Desde que deixamos Khaburse, sinto meu peito apertadinho, apertadinho. A beleza da paisagem e a bondade das pessoas vêm me tocando profundamente. Lá pelas tantas, não resisto mais, lágrimas incontroláveis afloram de meus olhos e, sem pejo algum, deixo o pranto rolar. Fico, assim, chorando, com a testa apoiada entre os joelhos até esgotar toda a minha emoção. Niaz, Ali e Youssuf quedam, atônitos, sem, contudo, se aproximar. Refeita, tranqüilizo-os: “I am crying because I am very happy”. Vejo alívio em seus rostos. No meio do caminho, uma agradável surpresa: encontro um casal de brasileiros!! Os primeiros e únicos durante o trekking. Pergunto seus nomes: Helena e Paulo Coelho. Estão indo pra Concórdia e, conforme informa Paulo, talvez tentem o Broad Peak. Acompanham-nos dois escaladores portugueses. Um deles, tem o nariz todo detonado, provavelmente, resultado de congelamento. Ao apertar sua mão, dou falta de um dedo, o mindinho (quando retorno ao Brasil, ao ler notícias sobre quem teve sucesso nesta temporada de escalada, no Paquistão, descubro que ele é nada mais nada menos que o famososo João Garcia, um dos raros escaladores a fazer o cume do Broad Peak em 2008).

Foi muito bom poder falar português. Uma lástima, o encontro ter sido tão breve. Enfim, cada um de nós seguia em sentidos opostos. Às 10 horas, paramos para almoçar. Constato que, agora, na finaleira do trekking, a ração servida já não é tão variada: claro, o básico é composto sempre de sopa (de pacotinho), paratha ou chapati. Hoje o complemento é atum, mais geléia. E chá, sempre muito chá. Esta bebida nunca escasseia, podem crer!

Estranho o intenso movimento de helicópteros. Primeira vez que vejo tal aeronave sobrevoando os céus. Ainda há pouco, dois voavam rumo a Concórdia. Será que aconteceu algo por lá? Nunca se sabe quando o esporte, em questão, é a escalada, ainda mais em montanhas com elevados índices de risco como GII, GI, Broad Peak e K2.

O trajeto Khaburse-Paiyu não é difícil porque praticamente é só descida. O mais difícil de todos foi justamente Paiyu-Khaburse, devido às constantes subidas. O calor é deveras bem-vindo depois de três dias de frio, neve e chuva.

Youssuf, não larga do meu pé. Continua colado em meus calcanhares. Lembra aquelas mães, diligentes, que amparam seus filhos, de modo a evitar que caiam, quando iniciam a dar os primeiros passos. Pois meu sombra porta-se assim comigo. De uma solicitude como nunca vira na vida, o cara é prestativo mesmo.

Chegamos em Paiyu às 13:50. Um romeno, bem interessante, aproxima-se pra conversar. Conta que pertence a uma expedição cujo objetivo é o GI. Além dessa, há outra expedição formada por três mulheres e dois homens. Uma delas, embora feia, atrai os olhares dos porters cada vez que passa pra lá e pra cá. Também pudera: veste short, revelando pernas fortes e depiladas. Não sei se são trekkers ou escaladores. Pretendo, assim que surgir uma oportunidade, questioná-los.

Na frente do camping, há uma base das forças armadas de onde decolam os helicópteros. Cumpre registrar que, ao longo do trajeto Askole-Concórdia, há mais quatro dessas guarnições militares: Concórdia, Goro I, Urdukas e Korophon. De fato, o país é deveras militarizado.

Não demora muito e minha curiosidade sobre o tal grupo é satisfeita quando desço à zona dos toaletes e encontro a tal feiosa que se lava, energicamente, na pia contígua à minha. Não deixo passar em branco tal oportunidade, é claro, e tasco a clássica pergunta “Where are you from:” São tchecos. Ela é professora e retornam, também, de Concórdia. Conta-me que escala paredes de rocha em seu país. Acrescenta que prefere ser a segunda na cordada porque não se sente segura o suficiente pra liderar a enfiada. Aqui no Paquistão, entretanto, veio só pra fazer trekking.

São 16:30, o acampamento encontra-se na santa paz. Um porter corta, com esmero, o cabelo de outro cujos ombros estão protegidos, caprichosamente, com uma toalha. Conversas em tom de voz baixo. Alguns jovens passam por mim e me encaram, curiosíssimos – mais ainda do que habitual – pois pendurada, num galho de árvore, está a secar uma calcinha. Primeiro, a tcheca, feia, de pernocas de fora, agora eu, de meia idade e sem sutiã, secando as calçoilas ao ar livre. Os baltis estão, se não intrigados, excitados….sei lá e nem quero saber. Prefiro contemplar as marcas prateadas deixadas pelas águas de degelo nas encostas das montanhas à minha frente.

Enquanto estou apreciando o vale lá embaixo, aproxima-se pra conversar um jornalista francês cuja especialidade é a cobertura de expedições. Está indo pro Broad Peak onde alguns escaladores, seus conterrâneos, já lá se encontram. Esteve nesta região há 15 anos e contabiliza cinco visitas ao país. Numa delas, cobriu um terrível terremoto ocorrido já há alguns anos. “It was awful”, comenta com ar triste. Despedimo-nos amigavelmente. Ali sugere que, em vez de descansarmos aqui mais um dia, retornemos a Skardu. Assim, posso conhecer, argumenta ele, dois belos lagos nos arredores daquela cidade. Considero uma boa idéia e dou sinal verde pra partirmos amanhã. Depois de 5 dias sem banho (sei lá, se não é por isso o assanhamento das moscas ao meu redor), chamo Mussa e lá vamos nós rumo aos toaletes. A água, muito fria, não me impede, entretanto, de lavar os cabelos. E o trekking quase terminando….merda!!

Continua…

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