Trekking ao acampamento base do K2 – Parte 8

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Ali me acorda às 5:30. Como é horário de verão, uma hora a menos, na real são 4:30.


Por Beatriz Azevedo

Veja a parte 7 do relato

Ainda está escuro. Devemos partir cedo porque, conquanto estejamos a 3.400 metros, o calor ficará infernal por volta do meio-dia. Quanto mais cedo chegarmos a Jhola, menos tempo caminharemos sob o sol inclemente do início da tarde.

O jornalista francês e o guia amigo de Ali vêm se despedir. Este guia ontem à noite me fez dar boas risadas. Muito engraçado o cara. Entrou na barraca e deitou-se à vontade sobre os tapetes e, com uma mão apoiando a cabeça, (lembrava a versão masculina de uma odalisca, o bem humorado gorducho), começou a conversar em urdu com os companheiros. Depois, em atenção a mim, passou a falar em inglês. O papo versava sobre a dificuldade de os porters fazerem suas orações diárias – cinco vezes ao dia – quando estão trabalhando nas expedições. Para que não se afligissem, receitou “When you come back to Skardu, you can pray six or seven times in a day!” finaliza ele com um sorriso maroto. É aquela risada! Piadinha de paquistaneses, hehehe. Explicou pra mim que não é só devido às fendas abertas no Gondoghoro La que a passagem está proibida, mas também porque os porters não têm roupas e calçados adequados. “Look at those shoes”, aponta ele “they are made of plastic, it’s very hard for them to walk over the ice with these kind of shoes”.

Saímos às 6:45 de Paiyu. Realmente, é um belo camping com sua generosa vegetação. As elevadas montanhas que se dispõem em ambas margens do rio Braldu, algumas com cumes nevados e fiapos de nuvens ao redor, projetam suas sombras no vale, protegendo-nos do efeito inclemente dos raios solares. Uma paz este lugar.

A caminhada dura mais de 7 horas e, durante o trajeto, encontro uma expedição indo pra Concórdia. O dia lindo, com nuvens esparsas, está de fritar miolos. O tráfego de mulas e porters é intenso nos dois sentidos do percurso. A temporada de turismo promete bastante trabalho neste verão pros paquistaneses. Muitos dos escaladores estão vindo do Nepal, devido ao início do período das monções naquele país. Com as chuvas, se torna impossível continuar a escalada nas montanhas nepalesas.

Chegamos a Jhola às 14:00. O local, ao contrário de quando aqui estivera, indo pra Concórdia, se encontra lotado de expedições. Identifico duas: uma espanhola e outra francesa. Seus membros são, pra variar, escaladores.

À tardinha, o céu deixa entrever seu azul, camuflado, aqui e acolá, por espaçosas nuvens brancas à semelhança de gigantescos flocos de algodão. O sol já se pôs detrás das montanhas e o vento sopra com certa intensidade. Há um rio, bem em frente a minha barraca, de margens próximas uma da outra, cujo leito, embora pedregoso, como os demais, apresenta um vau que facilita a travessia de animais e pessoas. Alguns porters lavam louça. Um paquistanês aproxima-se da margem, com uma galinha segura pelas asas, tira um facão do cós da calça e degola, com um golpe certeiro, o bicho que permanece se debatendo mesmo após morto. O sangue escorre por entre as pedras, ele lava a ave, descuidadamente, e dirige-se a uma construção de pedra onde (fico sabendo depois) moram o proprietário do camping e seus filhos, um dos quais é o tal matador da galinha.

Muhammad, Niaz e Mussa, sentados do outro lado do rio, refrescam os pés. Alegres, conversam, animados entre si. Quando percebem que estou com a máquina apontada pra eles, ajeitam-se para posar. Ali, já conhecedor de certos gostos meus, quando viu a porta da barraca voltada pra outra tenda, ordenou aos porters que a virassem, de modo a que eu pudesse contemplar dois impressionantes contrafortes de montanha que se unem, despontando entre eles, ao fundo, a ponta de um pico coberto de neve…não é um fofo esse guia? E um tremendo cara de pau também! Escutem essa: numa das muitas conversas entretidas com ele, comentou que as mulheres das aldeias são relaxadas porque pouco se lavam. Enfatiza, com gestos de mímica, o colarinho de sujeira ao redor de seus pescoços. “Have you already seen it, Biá?” pergunta ele enojado. Invoca tal desculpa – dá pra acreditar nessa?! – como justa causa da infidelidade. Mas, bah, valha-me deus, esses homens e suas justificativas esfarrapadas. O que não inventam pra dar seus pulinhos fora da cerca, hein?!

Que peninha: o trekking acabou!!

Nos toaletes, os vasos sanitários estão sujíssimos de cocô….um nojo……arrrghhh! Tão fedorentos esses acampamentos que prefiro descolar um recanto atrás de uma pedra. É mais limpo e sem moscas zumbindo ao redor da bunda.

O dia, belíssimo, céu praticamente sem nuvens, a não ser alguns fiapos esbranquiçados ao redor dos picos. Saímos de Jhola às 6:30. O trajeto é fácil, poucas subidas e descidas. Numa travessia de rio, Youssuf me livra dum tombo dentro d´água. Estou eu pulando as pedras para atingir a outra margem quando me descuido e me desequilibro. Ele, sempre, atento, rapidamente, me pega pela alça da mochila, impedindo que eu me estabaque de cara nas pedras. Estou bem cansada, dá pra sentir a ressaca da jornada. Também, pudera, estou caminhando há 12 dias, num total de 174 km!

Caminho sem pressa. Quero curtir, serenamente, meu último dia de trekking. Os demais passeios daqui pra frente serão todos de carro. Como havíamos combinado, não paramos pro almoço, de modo a chegar cedo em Askole, evitando, assim, a exposição demasiada à canícula do meio dia. Faço, entretanto, uma pausa e tiro da mochila meu lanchinho. Youssuf, meu fiel escudeiro, rente que nem um pão quente, descansa ao meu lado. Ali e Niaz seguiram à frente.

Terminada a refeição – barrinha de proteína e água – ponho a mochila nas costas, Youssuf pega a sua, e reiniciamos a caminhada. Cadê os dois…Ali e Niaz? Nem rastro deles. Um tanto de caminhada feita, eu, já intrigada, pergunto aos meus botões, onde se tinham socado eles. Eis que, escuto às minhas costas, uns relinchos de cavalo. Viro e não dá outra: é Ali, brincando comigo!

Lá pelas tantas, emparelha conosco um homem de porte empertigado, bigodinho fino, bem aparado, vestindo o shalwar qameez, com uma mochila nas costas. Ali e o homem se põem a conversar, caminhando um pouco à frente de mim e Youssuf. De vez em quando, o homem vira pra trás e lança um olhar carrancudo em minha direção. Pergunto pra Ali quem é. Fico sabendo que cria cavalos, já foi do exército e está indo visitar sua namorada numa vila perto de Askole, sente saudades da moça. Detalhe: é casado. No Paquistão os homens podem ter até quatro esposas desde que tenham condições de sustentá-las. Embora morem juntas, cada uma ocupa dentro da casa um espaço próprio. Provavelmente, por uma questão de privacidade na hora da transa.

Um pouco antes de Askole, avisto, na margem oposta do rio Braldu, duas vilas. Plantações de batata e feijão colorem de verde os terraços situados nos sopés das montanhas. Ali me mostra uma linda e imponente elevação com o cume coberto de neve: é Skoro Pass cuja travessia conduz a Shigar Bazaar, vila onde demos uma paradinha quando vimos pra cá. É possível fazer um trekking até lá, dura 3 dias. Imagino que deva ser muito lindo.

Todos os porters e guias usam echarpe. Esta peça do vestuário tem várias utilidades: serve de turbante para proteger do sol, cachecol e balaclava contra o frio e, mais, usam-na como lenço pra assoar o nariz. Mil e uma utilidade, hehehe.

Já perto de Askole, à esquerda, surgem fileiras de árvores sombreando o caminho e muros de pedra protegem as plantações, enquanto à direita sobressai o colorido levemente ferruginoso dos empinados paredões de rochas gnaiss. Vejo Ali pulando uma cerca e, curiosa, imito-o. Ele senta-se à sombra duma árvore e ficamos, escarrapachados, na boa, fumando um cigarrinho. Tão bom o “silêncio” do lugar: o rumorejar distante do rio, os fracos balidos de ovelhas e cabritos e o trinado dum belo pássaro preto e branco soam agradavelmente aos meus ouvidos.

Chegamos às 12:15 em Askole e nos instalamos no mesmo lugar onde acampáramos na vinda. Um bando de aldeães, curiosos, aproxima-se. É muito engraçado porque eu também nutro idêntica curiosidade por eles. Acocorados no chão, limitam-se apenas a observar a nossa movimentação. Pra eles, a chegada das excursões deve constituir uma das raras fontes de diversão a quebrar a existência monótona de suas rotinas diárias. Enquanto almoço no interior da barraca-refeitório, escuto o canto do moazin, ecoando pelos quatro cantos da vila. Chama os fiéis pra oração na mesquita. Porque hoje é sexta-feira!

O calor dentro da barraca está insuportável, saio e sento, encostada ao muro da construção inacabada. Chegou ainda há pouco o grupo dos tchecos que se encontrava em Paiyu, de modo que estamos todos à sombra, conversando. Dois deles já estiveram na América do Sul.

Mustafa, um jovem magrinho, assistente de Anwar, guia dos tchecos, exibe, faceiro, seus bíceps. Quer que eu os toque pra sentir como são duros. Não satisfeito, levanta-se e faz acrobacias numa evidente demonstração de exibicionismo infantil. Pois não é que o guri está arrastando asa pra mim….hahahaha! Muito gozado ele! No pórtico de entrada, noto quatro mulheres, paradas, olhando pra cá. Vou até elas. Fazem sinal pro meu relógio. Querem trocá-lo por seus brincos. Essa é boa!!

Escaldada que estou com a insistência dessa gente, me despeço delas e sigo até uma plantação onde me agacho pra urinar. Uma das mulheres, que lá estão colhendo ervas, a cada vez que solto exclamações e gemidos de satisfação por estar esvaziando a bexiga, me imita, dum jeito debochado. Hahahahaha!! Essa é boa! São deveras divertidos os baltis. Embora sejam 18:00 o calor, ainda forte, se faz sentir. Somente quando o sol baixar e desaparecer atrás das montanhas, irá refrescar. Por enquanto, visto apenas short e blusa de manga curta. Pombas e gralhas passam voando. Quando eu conto a Ali que algumas mulheres me pediram dinheiro, ele faz um muxoxo de desagrado. Coisas do Paquistão? Nãnãnãnã….de todos os países pobres, incluído, aí o meu querido Brasil.

Continua…

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