Em nossa travessia Alpha Crucis de 2023, ainda nos planejamentos e preparativos, o Guilherme questionou se poderia convidar o Cláudio Macedo, amigo que ele afiançava que andava bem e era boa companhia. Sem nenhuma condição de dizer-lhe “não”, após a sofrida travessia da Serra da Farinha Seca, recebemos o novo integrante no quarteto Douglas, Rafael, Guilherme e Rogério, este que vos escreve.
Agora em cinco integrantes, três paulistas e dois paranaenses, fizemos alguns ajustes no planejamento, como a avaliação dos pontos de suprimentos quanto à necessidade de reforços e uma revisão substancial: a proposta de fazer uma AC “zerando as serras” subindo todas as montanhas possíveis, dentro do prazo limite de 10, talvez 11 dias. Típico dos insanos que se abrigam sob a égide do MDA: não basta tentar a travessia mais casca-grossa, ainda inventam de fazê-la com trechos inéditos, estendendo a corda ao limite do possível. Bem falo pra minha mãe: “ando bem tranquilo, o problema são meus amigos. Esses não têm juízo algum”. Tenho certeza de que, contam algo similar à quem os interpela do porquê dessas loucuras.

A proposta nos levaria a iniciar pela Fazenda Rio das Pedras e, galgando a montanha inicial da travessia clássica AC, o Guaricana, seguir pelo Ferreiro e Ferraria, ali, deixaríamos o traçado clássico para descer a Face Leste até a planície litorânea. Acamparíamos no cruzo da Estrada do Conceição com o rio Cotia. Dali, atacariam o Jacutinga, o Saci e o Sacizinho, antes de retomarmos a crista da Serra do Ibitiraquire, agora pelo vale do Rio Cotia.


Castigados pela caminhada da véspera, o pessoal tardou a levantar. O trio, composto pelo Douglas, Macedo e Guilherme chegara perto das 3h da madrugada, quando eu e o Rafael, após avaliarmos as condições e opções, preparávamos uma expedição de busca e resgate.
Motivos para preocupação não faltavam: a previsão que haviam passado era de retorno até as 23h da véspera. Havíamos começado a caminhada às 22h da antevéspera e, mesmo que tivessem dado conta do pretendido, seria uma pernada de 23 horas com um pequeno intervalo de 3h para preparar acampamento e almoçar. Após as 18 h, a chuva tinha se mantido intermitente e a temperatura caíra consideravelmente. Felizmente, a coisa resultara apenas de uma perdida mais prolongada em um lance mais aberto e do cansaço que somavam nas pernas.


Acordei o Douglas às 8h e umas 8h30 o Macedo e o Gui. Devido à forte precipitação prevista para o período da tarde, decidi não atacar o Saci e Sacizinho, primando pela segurança de passar pelos eventuais cruzamentos do rio e de seus tributários mais delicados antes que ocorresse aumento do nível d’água. Permanecermos mais um dia acampados ali foi descartado, por colocar em grande risco a conclusão da travessia AC.
Com o desgaste da véspera só começamos a nos mover muito tarde, 11h40. O caminho na parte baixa do Vale do Rio Cotia segue por trechos remanescentes da estrada de serviço que foi aberta para a escavação e concretagem do túnel adutor da usina Parigot de Souza. Para mim, que adoro a parte de arqueologia industrial, foi um verdadeiro parque de diversões: cortes nas encostas, trechos de estrada, concretagens e ferragens que a mata aos poucos acolhe estão espalhados por todo o trajeto.
Grandes massas de concreto ciclópico aparecem aqui e ali, assim como bases em concreto armado para equipamentos de processamento dos fragmentos de rocha do túnel. Em alguns trechos, palmilhamos solo de cascalhos e detritos removidos no processo de perfuração do túnel. Rapidamente, às 12h40, atingimos a Janela da Cotia. Optamos por sequer conhecer a entrada para ganharmos preciosos minutos. Seguindo o rastro batido, um descuido nos fez perder um desvio à direita, rio acima, e o Rafa cruzou o rio pela estrutura de uma antiga ponte de serviço, basicamente 4 perfis “I” de aço, apoiados sobre um substancial enrocamento no leito. Do outro lado, após avaliar cuidadosamente, informou que a trilha não seguia ali e me pediu que verificasse se não havíamos perdido uma bifurcação/desvio.
Voltei até a última fita observada e, agora mais atento à uma provável saída à direita não tardei a encontrá-la. Caminhei uma trintena de metros até nova fita, marca inconteste da passagem naquela direção. Voltei ao Rafa estava e o informei da boa nova: caminho encontrado! Que retornasse para o lado certo do rio, para podermos prosseguir. Se na ida, mal notara a instabilidade da estrutura, na volta foi diferente. Novamente no caminho adequado ao nosso intuito, continuamos a subir o vale ora pela margem ora por dentro do próprio rio até encontrarmos uma cachoeira (14h) que impedia o prosseguir por dentro do rio e que superamos pela esquerda por uma raiz e corda.



Às14h30, sob cinzentas nuvens ameaçadoras, com o ar parecendo “pesado” e com a fauna totalmente silente, na expectativa da tempestade prometida, alcançamos a base do grande deslizamento na margem esquerda do rio, aquele mesmo que havíamos observado durante a descida da face leste do Ferraria, na véspera. Depois de cruzar a área dos destroços, à semelhança de uma morena de glaciar, composta de troncos, rochas e lama, a trilha seguia pelo leito do rio por mais uns 200 metros antes de passar a subir pela encosta direita, quase que à prumo. Às 15h30, estávamos com a parte de maior exposição aos riscos de chuvas e eventuais cabeças d’agua superada. Na maior parte do tempo, o Rafael seguia à frente, pesquisando os rastros e interpretando qual o caminho que nos levaria montanha acima. Eu fazia a conferência dos rastros e o Douglas seguia de fecha, se recuperarando do desgaste na véspera, enquanto caminhava.


O ganho de altitude era lento, com a necessidade de eventuais descidas para alcançar algum ângulo melhor na encosta. Mudanças abruptas na direção e da trilha, cruzamentos com pequenos riachos pediam criteriosa conferência da direção correta, pois tanto a trilha podia prosseguir na margem oposta, por vezes em uma cota mais elevada, quanto poderia ser necessário percorrer uma vintena ou mais de metros por dentro da calha do curso d’agua. Muito importante a disciplina do grupo quanto ao eventual deslocamento de rochas, permanecendo sempre atentos. Em pelo menos três eventos rochas deslocadas diretamente (mais fácil de perceber) ou indiretamente, ao forçar uma raiz ou um galho (difícil de avaliar), passaram perto de acertar mais seriamente um de nós. Como lição, de forma geral, antes de “forçar a mão” numa escalada improvável e exposta, convém estressar soluções de menor exposição. Sempre que ignorei essa regra, me vi em situações inadequadas e de exposição desnecessária. Lembrete crucial: não é porque você consegue fazer algo que deva fazê-lo. Num desses lances, subi uns 10 m de uma cascata, agarrando em lírios e nas reentrâncias da rocha, antes de ter certeza de que a passagem correta não era por ali, para cima parecia impraticável e a descida parecia algo beirando o suicídio. Nessa hora, a ajuda do Douglas para desescalar com segurança foi primordial.

Mais à frente, já quase no final da subida, quando o Rafael alcançou uma parede vertical e informou que pelo trackloc a trilha parecia ser por ali, não tive pejo em refugar e buscar o ponto de sair da calha daquele riacho que havíamos perdido. Descemos pouco mais de 50 metros antes de encontrar, à direita, a arvore e a corda para superar aquele trecho.
Era o último lance de corda, bastante exposto, a partir dali seria uma escalaminhada pela ribanceira de 50º usando as raízes, pedras, solo, árvores, o que fosse possível como apoio. Estudamos um pouco como acessar a passagem vertical, escalei primeiro esse lance, de cargueira, mas concluí que seria por demais custoso e arriscado aos demais fazê-lo, então subi alguns metros até um pequeno patamar, deixei a minha cargueira e desci para içar as cargueiras do Douglas (pesada) e do Rafael (pesadona, pois carregava 3 litros d’água). Na hora eu desconhecia esse excesso de previdência do Rafael, o que contribuiu para que ele amargasse o transporte de um peso extra desnecessário. Mantive pouco menos de litro d’água, no bolso da alça peitoral da cargueira, de fácil acesso e com consumo frequente. O Douglas carregava algo próximo de 600 ml. Após içar as mochilas e travá-las para que não rolassem ribanceira abaixo, vesti novamente a minha e toquei em ritmo mais intenso até o colo (20h30). Nesse trecho, ultrapassarei a linha das nuvens e me vi livre da densa névoa que a tudo encharcava algumas de dezenas de metros abaixo. Despi a cargueira e voltei uma dezena de metros montanha abaixo para informar a boa nova.
Pouco depois, estávamos os três na trilha, subindo sem pressa em direção ao A1, para acamparmos. Apesar de perto, o cansaço do dia se refletia nas pernas de cada um e aquele resto de caminhada do dia parecia mais longo que o esperado. Peguei doces e castanhas e insisti para que o Rafael comesse, pois notara que tropeçava com mais frequência que o normal. O Douglas, parcialmente recuperado da longa caminhada da véspera, puxava o comboio do fatigado trio, comigo fazendo as vezes de fecha-trilha. Na subida, consegui contato com a Amanda e pude esclarecer que não houvera erro de navegação, a descida da face leste fora intencional, ainda que inédita numa AC. Não imaginamos que poderíamos causar preocupação nas pessoas que nos acompanhavam e que deveríamos ter informado melhor o planejado. Por ambas as falhas, peço desculpas em nome do grupo. Chegamos na área de acampamento, vazia, e escolhemos um bom local, plano e que coubesse as cinco barracas. Cada um definiu onde acreditava que teria mais conforto e após instalados, deixamos o Rafa finalizando o acampamento e seguimos para recuperar os potes de suprimentos. Dividimos as tarefas, comigo voltando com os potes e o Douglas indo coletar água para o jantar e os ataques do dia seguinte.
Quando o pessoal do ataque do Saci e Sacizinho chegou (23h), já estávamos com acampamento montado, com a cozinha instalada ao lado das barracas. Deixaram o Indiana Jones às 11h20, atacando o Sacizinho e Saci, cumeando esse último às 13h. Retornaram, desmontaram o acampamento, arranjaram as cargueiras e iniciaram a subida, às 15h defasados em 3h20. Enquanto eles tratavam se instalar, colocamos 3 fogareiros em paralelo. O primeiro jantar “normal” da travessia teve linguiça fatiada frita, tapiocas, macarrão com sardinha e molho de tomate. Nessa noite comandei os fogareiros, em parceria com o Rafael. Para adoçar, tivemos uma caixa de bis e outros doces. Pouco após a 1h da madrugada, todos já dormiam, embalados pelo leonino ronco do Gui. Esse piá anda muito, é gente boa, mas ronca que é um absurdo… não fosse o cansaço da pernada, acredito que ninguém dormiria.
A subida deles, saberíamos nos dias seguintes, fora em marcha apertada, pois começaram com uma grande defasagem e a previsão de chuvas também os pressionava. Mesmo apertando o passo, começaram a caminhada pela calha do rio Cotia com o plúmbeo das nuvens ameaçando uma tempestade terrível que, se houvesse se concretizado, lhes obrigaria a buscar um acampamento de emergência, tão fora da calha do rio e de seus tributários quanto possível.
Depois que deixaram a calha do rio e passaram a ganhar altitude pela encosta direita do vale, por vezes conseguiam nos ouvir à distância, quando o vento trazia nossas vozes. Por nossa vez, apenas escutamos seus gritos de arrebatamento e conquista quando já estávamos nos metros finais da subida até o colo entre o Caratuva e o conjunto do Ibiteruçu.
Assim, nos tornamos os 5 primeiros e, até onde sabemos, únicos sem juízo a subirem o Vale do Cotia ou “dos Grampos” de cargueira. Pernada que, marcou nossa travessia AC em 2023.
Deixo um abraço aos companheiros de todas as horas:, Cláudio Macedo, Douglas Reginaldo Torres Garcia, Guilherme Willian e Rafael Soares dos Santos.



















2 Comentários
Muito bom. Pra mim também foi a primeira vez que subi de cargueira.
um dia vc precisa contar como foi a abertura dessa trilha