O Butão é um país pequeno, do tamanho da Suíça ou de Taiwan. Situado entre o Tibete ao norte e a Índia ao sul, tem uma geografia impossível, pois desaba vertiginosamente desde as paredes geladas do Himalaia até as férteis planícies do terai indiano.
A extensão entre os mais de 7 mil metros de altitude da cordilheira até os meros 150 metros da planície é de apenas 150 km. Isto significa um gradiente de 5%, que você encontra por exemplo numa trilha moderada. Imagine se aplicado como média a um país inteiro.
Devido à barreira dos Himalaias, as três dezenas de rios do Butão correm todos para o sul. Há duas bacias importantes, a leste e oeste das Montanhas Negras, que ocupam o centro do país. Todos os rios butaneses são tributários do Brahmaputra, que corre ao sul e fora do país. Veja que a peculiar geografia fez do Butão um dos países mais ricos em água doce do mundo. Por causa de tanta água, somos o Brasil da Ásia, me disseram com orgulho.
O Brahmaputra nasce no Tibete, junto ao Monte Kailash (6.640 m), uma das mais incríveis montanhas em todo o Himalaia. É um local sagrado, que homem algum jamais escalou. Cercado por dois lagos deslumbrantes, o Kailash contém também as nascentes do Ganges – seu afluente o encontra após quase 3 mil km de percurso, num delta monumental. O trecho da planície indiana e tropical do Brahmaputra compõe um dos ambientes de maior biodiversidade mundial.
Você verá que o Butão é um país mais comprido 2/3 no sentido E-W do que N-S. Então, as cidades estarão mais comumente distribuídas ao longo de uma linha quase horizontal. Ou seja, para acessá-las será necessário cruzar transversalmente os vales, cuja orientação é vagamente N-S.
Isto torna as estradas do país perigosas e emocionantes, ainda mais considerando a forma com que foram construídas, bordejando com audácia abismos horrorosos. Num dado momento, me deu vontade de abandonar as Montanhas Negras, quando enxerguei o penhasco que me esperava adiante.
Além de ter seu relevo fortemente inclinado no sentido N-S, o Butão é também penso no sentido E-W, agora do ponto de vista econômico e demográfico. É surpreendente constatar que as principais cidades, como Thimphu, Paro e Punakha, estão todas a oeste. São muito mais conhecidas e visitadas do que as distantes Trongsa e Bumthang, que sequer ficam no outro extremo, e sim no centro do país.
Penso que teria sido mais interessante situar em Bumthang o aeroporto de entrada do Butão, pela beleza do seu vale e por sua localização central. Entretanto, o clima traiçoeiro de Bumthang teria tornado isto difícil. O local de ingresso é Paro, no extremo oeste, onde fica o único aeroporto internacional. A pista de Paro é boa, mas prepare-se para um verdadeiro contorcionismo aéreo até alcançá-la, num dos voos mais perigosos do mundo.
Cerca de 4/5 das caminhadas pela natureza pertencem à metade ocidental do Butão. A mais temível dessas é chamada de Snowman Trek (ver a seguir). No seu trecho final, passa pelo distrito de Lunana, conhecido como o local mais remoto do país. Mas talvez este deva ser algum vilarejo esquecido de Trashigang ou de Yangtse, no longínquo oriente butanês – que até lembra a nossa Amazônia pelo vazio de gente.
A crista do Himalaia é cênica e imponente, você enxergará sua etérea linha branca a partir dos muitos passos altos do Butão. O ponto culminante é o Gankhar Puensum (7.570 m). Você pode vê-lo do Passo Dochula (3.100 m), onde a rainha mãe construiu 108 monumentos religiosos em homenagem a igual número de soldados mortos, quando o exército local desalojou invasores indianos no sul do país. É um panorama deslumbrante, um testemunho à fé de um povo e ao encanto de sua natureza.
Quando o país ainda acolhia o montanhismo, várias expedições tentaram inutilmente conquistar o Gankar Puensum. A exatidão dos mapas butaneses é tão pobre que os primeiros desses exploradores foram incapazes de sequer encontrar a montanha. Aliás, as medições recentes pelos Himalaias reduziram a área Butão em inacreditáveis 17% (se é que a China não contribuiu com algum embuste).
E, agora que o alpinismo foi proibido no começo do século XXI, o Gankhar Puensum permanecerá como a mais alta montanha virgem do mundo. Outras formações importantes são o Kula Kangri (7.540 m), que lhe é muito próximo e disputado pela China, e o distante Jomolhari (7.320 m), ao qual voltarei brevemente.
As florestas recobrem a maior parte do país e apresentam uma interessante gradação conforme a altitude, desde as densas matas subtropicais até os movimentados juníperos de altitude.
Entre estas formações, aparecem sucessivamente os carvalhos, pinheiros, bétulas e abetos (comuns no Nepal), desde talvez 1.500 até 3.500 m. Em geral, acima dos 4.000 m, você só encontrará gramíneas e tundras alpinas, em paisagens subitamente limpas e desoladas, pela ausência de árvores. A diversidade vegetal é alta, com várias espécies de orquídeas e rododendros.
A declividade do Butão gera zonas geográficas muito distintas, da planície subtropical indiana à cadeia montanhosa alpina. Não irá surpreendê-lo que o país conte com uma fauna bem interessante, adaptada a estes nichos naturais.
Nas regiões de altitude são encontrados o leopardo das neves, o carneiro azul e o lobo tibetano. Pandas, ursos, takins e macacos langur habitam as zonas temperadas. Os famosos grous, os faisões incrivelmente coloridos e os calaus de grandes bicos curvos podem também ser avistados.
As matas subtropicais abrigam búfalos, tigres, veados sambar, exóticos pangolins e inúmeros macacos. Confesso que, nas minhas andanças, não encontrei mais do que meia dúzia dessas espécies.
O Butão realizou no último meio século um enorme esforço para preservar sua natureza. Impressionantes 51% de sua superfície são hoje representados por áreas protegidas. Não existe nenhum país do mundo com uma situação tão vantajosa.
Muitos dos santuários de vida silvestre das décadas de 1960-70 foram transformados em parques nacionais nos anos de 1980. Estas áreas foram sendo revistas e ampliadas e, depois, conectadas por corredores ecológicos a partir da década de 1990, seriam o que chamamos no Brasil de reservas sustentáveis.
O sonho de qualquer ambientalista é conseguir interligar suas áreas protegidas. Pois o pobre e pequeno Butão fez isso: partindo de qualquer uma delas, você poderá alcançar todas as demais – embora não haja ainda uma conexão perfeitamente circular. Nosso Olmsted do capítulo anterior por certo ficaria maravilhado. Veja no mapa como isto acontece.
Caminhar pela natureza do Butão não é nada fácil – a meu ver, mais difícil do que no Nepal, pois o clima é muito instável, as trilhas são bem altas e acidentadas e faz um frio terrível. Vou começar falando sobre dois programas opostos: muito perto e muito longe.
O local mais impressionante do Butão talvez seja o Mosteiro de Taktsang, pendurado de maneira impossível num penhasco vertiginoso. Fica nas proximidades da bela cidade de Paro, porta de entrada do país. De início, você subirá uma colina florestada mas, a partir de um monumento com os tradicionais cilindros para mantras de orações, prosseguirá por degraus de pedra.
Taktsang foi construído num conjunto de cavernas calcárias e apresenta uma localização isolada e inacessível. Suas muitas varandas debruçam-se sobre os distantes vales de Paro. Não se apresse, serão quase 10 km ida e volta e não menos de 1 ½ horas para alcançá-lo. Por mais que você se impressione com o ambiente mágico, não se esqueça de que este é um local sagrado: os monges que lá vivem devem meditar humildemente por três anos seguidos dentro de suas cavernas.
Em oposição a esta curta rota, o Butão apresenta uma das mais longas e difíceis travessias do mundo, chamada de Snowman Trek. Incorpora no seu início duas caminhadas populares. A primeira delas é a do Jomolhari, com 135 km a serem feitos em 8 dias de esforços consideráveis. A segunda inclui sua extensão de Laya Gasa, num total de 190 km, em pelo menos 12 dias.
A primeira destas rotas é espetacular, atingindo o campo base do Jomolhari (7.320 m). Seu perfil nevado chega a ser inspirador, sendo visível desde longe. Morada da deusa Jomo, a montanha já foi escalada seis vezes. Durante a travessia, você passará das densas florestas de pinheiros às altas pastagens alpinas e ao mundo de rocha e gelo da altitude.
Junto ao Jomolhari está o estupendo Jichu Drake, com 6.790 a 6.990 m, ninguém sabe ao certo. Esta é outra divindade, protetora da cidade de Paro. No curto período em que os escaladores frequentaram o Butão, foi possível escalar seus dois cumes. O trek do Jomolhari não é trivial, exige uma ascensão de praticamente 2.500 m, muitas vezes com neblina e neve.
A extensão do Snowman Trek é gigantesca, nunca soube de nenhuma maior: mais de 360 km, a serem em geral percorridos em 25 dias, dos quais três para repouso. Isto representa uma média exigente de mais de 16 km/dia, que você só vencerá depois de sete horas de esforço. Não é um trajeto completamente fixo, havendo variações no começo e no fim.
Saindo de Paro, a travessia contorna toda a borda noroeste do país e metade de sua divisa norte, antes de seguir para o sul até Sephu. Atravessa as partes altas de dois dos principais parques nacionais do Butão, que você já encontrou no mapa anterior.
Ao longo do Snowman Trek, você passará por áreas florestadas e campos cultivados, por prados, fazendas e sobretudo por vales intermináveis, com pequenos assentamentos e mosteiros remotos. Avistará singelas casas de pastores e ruínas de fortes, atravessará rios de águas rápidas, contornará desfiladeiros e morainas, conhecerá vilas imemoriais.
Naturalmente, não será um percurso fácil, por sua extensão, duração e altitude, em especial no seu início e nos quatro dias perto do final. É logo após este trecho que você chegará ao lago onde tesouros religiosos foram achados por um dos mestres butaneses. Haverá mais de uma dúzia de acampamentos acima dos 4 mil metros, sempre horrivelmente gelados. E, se contei direito, doze exigentes desfiladeiros e passos, incluindo o Rinchen Zoe, a 5.330 m.
Mas você poderá também descansar na borda de rios e lagos, avistar manadas de cabritos, takins e yakis, banhar-se em fontes termais e visitar as aldeias de Laya e Thanza. Mas, sobretudo, admirar o perfil de gigantes nevados como o Gangchenta, o Gangla Karchung e o Jejekangphu Gang (7.300 m), destes todos o mais alto – e, dependendo da rota, a Table Mountain (7.200 m) e o Gankar Puensum (7.570 m).
No fim da travessia, chegará de carro à mais linda fortaleza deste país encantado: o Dzong de Punakha, placidamente situado no encontro de dois rios. Ou ao belo vale plano e longo de Bumthang, com seus templos, monastérios e fortalezas.
Queria comentar sobre um aspecto das travessias altas do Butão. Ao sul da crista principal do Himalaia, correm os chamados Himalaias Interiores, que têm uma orientação diagonal e convergente – a oeste alinham-se no sentido NE e a leste, no NW. Isto significa que o relevo não se acomoda com regularidade, é sempre confusamente distribuído – e muito escarpado, com cristas agudas, vales profundos e passagens por desfiladeiros, como mostrado na foto anexa.
O Butão tem naturalmente uma variedade de treks, desde um até seis dias – soube de quase vinte diferentes roteiros, fora os descritos acima. A melhor época parece ser de março – abril a setembro-outubro (a janela do Snowman Trek é mais curta: basicamente outubro). Ou seja, depois das frequentes chuvas trazidas pelas monções no meio do ano e antes das nevascas de fim de ano. Mas, nas três semanas que passei lá, notei que as altas cristas eram frequentemente sujeitas a muita nuvem e neve.
O turismo é caro, a não ser que você seja nativo das vizinhas Índia ou Bangladesh. São pacotes compulsórios, com a prévia inclusão de guia, acomodação e transporte. Infelizmente, não experimentei pessoalmente tudo o que relatei – mas, se o fizesse, acho que não teria dinheiro para voltar, e aí você só saberia desta história em dzongka, a língua local.