Uma Temporada na Blanca – Parte II

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Ano de El Niño e portanto clima instável e muita precipitação impediram a grande maioria dos escaladores de tentar montanhas mais técnicas, e Maio foi um mês mais de aquecimento e aclimatação na Cordilheira Branca. Mesmo assim consegui subir algumas montanhas para me preparar para desafios maiores em junho.

O EXÓTICO E INEXPLORADO SHAQSHA

Também conhecido como Huantsán Chico, Shaqsha (5703 m) faz parte do maciço do Huantsán, na parte sul da Cordilheira Branca. A montanha é mais famosa por estar na capa do guia de escaladas de Brad Johnson, mas mesmo assim dificilmente ela vê mais que duas ou três cordadas tentando cume por temporada, o que é uma pena pois seus dois cumes tem paredes bastante interessantes: o cume norte tem uma de 400m e o cume sul tem uma ainda maior, que deve beirar os 700m e é bastante íngreme no final. O isolamento da montanha é citado como principal motivo para ela não ser muito escalada, e talvez tenha sido isso que tenha me atraído, além do fato em geral de que quase todas as montanhas do maciço do Huantsán me fascinam.

Obviamente que tive uma dificuldade enorme em encontrar parceiros pois a maioria dos escaladores que está aqui tem tempo limitado e portanto querem escalar as montanhas clássicas. Numa conversa por Facebook com um amigo local, finalmente arranjei parceiro. Victor tinha voltado do Dhaulagiri fazia duas semanas e não estava aclimatado, mas precisava começar a se aclimatar pois teria clientes nas semanas seguintes, portanto foi um bom negócio pros dois.

Normalmente a montanha pode ser escalada em 3 dias porém decidimos fazer em 4, com tranquilidade, já que a ideia era abrir uma via nova, e além disso ninguém tinha escalado a montanha ainda e precisaríamos de um tempo pra estudar um pouco a geleira e as paredes. Victor chegou de Lima na segunda feira cedo e depois de algumas horas saímos em direção à Olleros, e depois Huaripampa, onde encontramos com nosso arriero. Visto que quase ninguém escala a montanha, não existe trilha, e basicamente o que se faz é seguir o único arriero da região pelas colinas sempre em direção à montanha. A subida do primeiro dia é de mais ou menos 4 horas, por campos abertos e as tais colinas, sempre com o Shaqsha à frente, e às vezes com boas vistas dos Cashans, um conjunto de picos que fica diretamente ao norte do Shaqsha.

Como saímos tarde de Huaraz decidimos ficar no campo base, a mais ou menos 4300m. No dia seguintes seguimos para a moraina para tirar fotos e estudar a montanha. As condições de clima pareciam boas porém a geleira estava extremamente “quebrada” e qualquer rota para o cume norte necessariamente passaria por uma área grande de detritos de avalanche e muitos seracs enormes. Tiramos talvez uma centena de fotos de várias partes da geleira e do que parecia ser a única ponte que daria passagem para a parede, traçamos planos A, B e C e passamos um bom tempo dando zoom em nossas fotos. Decidimos também que não faríamos campo alto pois estavamos em boas condições físicas pra atacar desde o campo base.

Às 17h fomos dormir porém logo em seguida o tempo fechou e as nuvens tomaram conta de tudo: mal podíamos ver nosso equipamento que estava a 3 metros da barraca. Ainda esperançosos, seguimos com o plano de escalar no dia seguinte pois o tempo por aqui costuma limpar lá pela meia noite. Não dessa vez! Acordamos lá pelas 23h que seria o horário pra sair, e o tempo continuava horrível. Como tínhamos um dia extra, decidimos deixar a escalada pro dia seguinte.

A manhã amanheceu limpa e nos perguntamos se deveríamos ter sapido naquela noite mesmo, ou seja, bateu um arrependimento. Passamos o dia descansando de nada e falando besteira, mas conforme o dia ia passando e o clima melhorando íamos nos empolgando mais, o que atrapalhou o sono. Fomos novamente dormir bem cedo, ou tentar, pois nenhum dos dois conseguiu muito, principalmente porque o céu estava super limpo e estávamos a 2 dias de ter lua cheia. Consegui dormir talvez 2 horas, e de resto ficamos batendo papo até o alarme tocar.

Saímos em direção à montanha, e depois de 40 minutos de moraina finalmente chegamos na geleira, onde depois de uma subida longa porém suave, chegamos na parte interessante da montanha, onde realmente começou o desafio de achar uma rota pra subir até a parede.

A lua ajudou bastante a analizar os riscos de ir pra lá ou pra cá, além de iluminar tudo em volta. Foi minha primeira vez escalando com a lua assim e realmente é mágico, praticamente não é necessário usar headlamp. De qualquer maneira, após passar a área de avalanches é que nossos problemas começaram. Ver a montanha de longe de um ângulo é uma coisa, estar de frente pra geleira é outra bem diferente e em pouco tempo percebemos que nossos planos A, B e C não dariam certo pois os seracs e gretas eram gigantescos e intransponíveis. Bolamos outro planos e então iniciamos uma travessia sempre à esquerda para tentar contornar alguns blocos. Novamente nos deparamos com seracs bloqueando a passagem. Decidimos então desistir da parede e ir pela via normal do Brad Johnson, que segue toda pela aresta leste. Fomos então até o extremo leste da montanha, e contornamos um serac para dar de cara com o belíssimo Huantsán brilhando sob a luz da lua. Uma pena que não tenho câmera fotográfica boa pois foi uma visão encantadora.

A alegria não durou muito pois em menos de 15 segundos foi possível perceber que a via normal sequer existia esse ano: completamente quebrada e sem passagem também. Ok! Bolamos um novo plano para novamente chegar à parede pelo lado esquerdo. Nisso fizemos algumas enfiadas de 60 graus quando o dia já tinha amanhecido para novamente encontrarmos uma greta super funda com pelo menos 5 metros de largura, e sem ponte nenhuma.

Já eram mais de 7 da manhã – nosso horário estimado de cume – não encontrávamos passagem e ainda teríamos uma parede de 400 metros pra escalar. Depois de analizar mais os arredores de onde estávamos percebemos que por esse caminho ou tendo ido pelo lado direito da montanha, não encontraríamos passagem de nenhuma maneira. De certa maneira foi frustrante, mas por outro lado é o risco que se corre quando se vai escalar uma montanha onde quase ninguém vai: não existem pegadas, não é possível encontrar informações sobre as vias ou sobre condições da montanha. E para compensar, pelo menos eu estava com um amigasso, e mesmo quando tomamos a decisão de desistir do cume, fizemos de muito bom humor e na base da camaradagem, o que torna qualquer escalada, com ou sem cume, sempre muito mais prazerosa.

Descemos pro campo base onde nosse arriero já estava nos esperando, desmontamos acampamento rapidamente e voltamos pra Huaraz enquanto o Brasil jogava a primeira partida da Copa.

A NOVELA TOCLLARAJU

Existem muitos tipos de escaladores. Eu sou do tipo que gosta das montanhas isoladas, muitas vezes desconhecidas, e ainda sou um pouco avessa à montanhas muito cheias de gente ou que tenham “permissos” com preços abusivos. O Tocllaraju (6032 m) é uma montanha bastante popular e atualmente o 6000m mais acessível da Cordilheira Branca, com uma via pela aresta noroeste sem muitas complicações, e uma via direta por uma parede de 700m pela face oeste. A segunda sim me interessa, e apesar de já ter tentado a primeira via ano passado por falta de opção, este ano estava digamos assim, “testando” dois novos parceiros de escalada que ainda estavam aclimatando e queriam fazer a via da aresta. Lá fui eu de novo ao vale de Ishinca.

Craig e Peter já estavam no vale fazia 1 dia para escalar o Ishinca, então subi sozinha para encontrá-los pra escalarmos o Toclla. Logo de cara quando cheguei no acampamento base o Craig já veio me contar que o Peter teria se arrastado no Ishinca e estava aparentando problemas de aclimatação, o que atrapalharia nossa escalada ao Toclla e poderia ser bem arriscado para ele mesmo. Sugeri subirmos todos ao campo morena do Toclla, a 4900 m, e de lá observarmos o desenrolar da situação. Bem complicado isso, pois na semana anterior já tinha desistido de escalar a mesma via com um sul africano que queria me usar de guia – não ia levar nenhum equipamento, nem corda, nem barraca, nem comida, e ainda não queria dividir a guiada. Neste caso, tínhamos alguém com claros sintomas de mal de atitude mais sério (respiração muito forte, dor no peito, tosse, cansaço excessivo), que não queria maneirar na aclimatação e menos ainda escutar nossa opinião. Eu e Craig então decidimos que na saída pra escalada se ele continuasse com esses sinais, não escalaria com a gente.

Não deu outra, na subida pra moraina ele já estava sofrendo bastante e no acampamento quase desmaiou quando chegou: sequer ajudou a montar as barracas, derreter a neve ou planejar a estratégia do dia seguinte. Ainda por cima ficou surpreso quando informamos que iríamos sair à 1h30, o que nos deixou bastante confusos. Na saída pra escalada aconteceu o previsto, e nosso terceiro elemento mal conseguiu subir a rampa de acesso à geleira. Rapidamente conversamos de que seria imprudente escalar dessa maneira, e recomendamos que ele voltasse ao acampamento, descansasse e descesse à base pela manhã.

Craig e eu então tocamos a escalada. Fui liderando a cordada até o campo alto, seguindo as pegadas dos austríacos que estavam acampados no campo alto no dia anterior mas desceram por conta do vento. Paramos no campo alto a mais ou menos 5300m para comer e analizar a via, e eu na esperança de que os austríacos aparecessem com informações sobre o restante da via, pois desde aí não haviam mais pegadas. Bem, os austríacos saíram bem depois de nós e estavam muito devagar, então seguimos sozinhos tentando decifrar a via. A informação que tínhamos é que este ano tínhamos que ir até à extrema esquerda da montanha e depois escalar um passo íngreme com uma travessia, no começo da via. Porém já estávamos caminhando a quase 2 horas quando chegamos à tal extrema esquerda da montanha, de onde não havia mais pra onde ir, a não ser cruzar uma rimaia com uma parede de uns 15 metros de uns 80 graus. Já que eu tinha liderado toda a geleira, e a rimaia era alta demais pra mim, o Craig guiou essa paredinha e eu segui como segunda, porém quando chegamos em cima achamos tudo muito estranho e decidimos rapelar para tentar subir mais pra direita.

Descemos e ficamos bastante confusos, porém observei bem o local onde estávamos e cheguei à conclusão que algumas das marcas no topo dessa parede só podiam ser de gente que tinha passado por ali e que tínhamos que subir de novo pra ver o que tinha do outro lado. Subimos de novo, passamos pro outro lado na tal travessia bem exposta, e não deu outra, finalmente vimos pegadas na parte mais alta da montanha. Ufa! O dia não estava perdido! Mas nisso percebemos que além de uns 40 minutos perdido em escalar duas vezes essa paredinha, também tínhamos tomado o caminho mais longo para a base da mesma, o que também deve ter nos custado perto de 1h. De qualquer maneira estávamos num ritmo bom e apesar do vento quase forte, as condições de neve eram as melhores que eu tinha visto até agora.

Daí pra frente fomos revezando a guiada e a rota era de cada vez mais caminhada. Já mais de cima da montanha vimos a cordada de 3 austríacos próxima da travessia e uma outra cordada misteriosa de 3 que não sabemos de onde veio pois não estavam no acampamento moraina. Quando estávamos bem próximos da parede do cume, que pelas informações que teríamos seria de 2 cordadas e meia de 60 metros, paramos pra descansar. Foi aí que o Craig começou a fazer umas contas de quantos rapéis teríamos que fazer, e chegamos à conclusão de que não tínhamos estacas suficientes pra descer. Nessa hora me lembrei do Nacho dizendo que precisou de 6 ou 7, e nós só tínhamos 5. Pensei nos austríacos que ainda nem tinham chegado na travessia e que talvez teriam estacas pra compartilhar, na nevasca dos dias anteriores que escondeu todas as estacas que nós esperávamos encontrar no caminho (em teoria a via estava todas equipada mas só vimos as bandeiras na parte de cima), em todo o esforço que tínhamos feito até lá, e como estávamos cansados porém com energia pra chegar no cume, que estava tão próximo. Estávamos a 5817m e em menos de 2h certamente estaríamos lá. Pensei que só pode ser sina dessa montanha que não me quer por lá!

Sugeri escalarmos a parede e só parar se não encontrássemos mais estacas, mas se na parte baixa não encontramos, menos ainda encontraríamos na parte alta, onde certamente teria ainda mais neve acumulada. Não tínhamos outra opção senão descer, e foi isso que fizemos a contragosto. Desci me perguntando pra que ficar tentando tanto uma montanha que não me atrai: uma coisa seria tentar várias vezes o Arteson, pela qual sou apaixonada, mas o Toclla… jurei que só voltaria pra esse vale se fosse pelo Ranrapalca.

Depois de uma hora de descanso no campo morena, descemos à base, onde descobrimos que os austrícos sequer entraram na travessia, pois fizeram um caminho ainda mais longo que o nosso, e que a cordada misteriosa eram os esquiadores italianos que avançaram ainda menos. Incrível como são as coisas por aqui, faz 2 semanas vários grupos fizeram cume, e depois disso com as inúmeras tormentas a montanha fica quase como em começo de temporada, como se tivéssemos que abrir a via toda outra vez. Foi a mesma coisa no Chopi. Ou seja, mais uma lição aprendida: não ser a primeira cordada a escalar depois de clima ruim.

A TEMPORADA COMEÇA DE VERDADE: QUITARAJU

Julho é considerado o mês ideal para escalar as grandes paredes técnicas da Cordilheira Branca, o que significa que desde que eu saí daqui em Setembro de 2013, o que eu mais esperei foi a chegada de Julho de 2014. Parceiro testado e aprovado, decidimos começar com Alpamayo e Quitaraju, duas rotas de graduação D porém não tão difíceis já que ambas tem mais ou menos 400m de parede, o que pra “turistas” é grande e pra escaladores é mediano. O difícel seria a aproximação longa e cansativa.

A aproximação normalmente é feita em 4 dias, e decidimos não acelerar nada pois nem eu nem o Craig tínhamos data pra regressar, portanto não existia motivo pra fazermos a aproximação com pressa. De Huaraz até Cashapampa são 3 horas de ônibus e taxi colectivo, e de lá mais 3 horas de caminhada até Llamacorral, o primeiro acampamento, de onde podemos avistar o Taulliraju no fundo do vale. Já no segundo dia conseguimos ver a face sul do Santa Cruz Grande e a imensa face sul do Quitaraju, e nos tomou 4 horas pra chegar ao acampamento base do Alpamayo, a mais ou menos 4300m, e de onde se pode ver a face norte do Arteson do outro vale, e as faces sudeste do Alpamayo e sudoeste do Quitaraju, além do col que teríamos que atravessar no próximo dia.

Na chegada ao acampamento base encontrei com o Damian, um guia local que eu conheci ano passado, descendo da montanha com um grupo. De cara ele já me passou a informação de que às 3h da manhã anterior um grande pedaço de uma cornija caiu sobre a Direta Francesa no Alpamayo – a via que pretendíamos escalar – e que ainda havia um pedaço prestes a cair. Ainda nos aconselhou a escalar primeiro o Quitaraju, e disse que tinha deixado pegados até as rimaias de ambas montanhas.

Nosso plano era escalar uma montanha seguida da outra, e como sabíamos que o tempo estava virando, decidimos levar comida pra um dia extra lá em cima, fora a comida pro acampamento moraina. Com 28kg na lomba, subimos em 3h pro acampamento moraina no dia seguinte, e no outro foram mais 5h até o acampamento alto. O começo dessa subida na geleira é bem marcado e pouco íngreme, mas no final a coisa pega: escalamos em simultâneo e em neve bem bagunçada uns 30 metros a 50 graus com as mochilas pesadas, e depois fizemos 2 enfiadas curtas a 70 graus, até finalmente chegarmos no col, e depois descer uns 150 metros até a área onde se acampa. Pra nossa sorte, não havia nenhum grupo, apesar de que mais tarde chegaram 4 argentinos que eu já conhecia e sabia que eram bons escaladores, então não teríamos problemas com grupos guiados e suas cordas fixas.

A tarde estava um pouco nublada e estávamos bem cansados. Rapidamente encontramos o tal pedaço da cornija sobre a Direta Francesa e então decidimos escalar o Quita primeiro pra dar chance pro troço terminar de cair. Saí sozinha por pouco tempo pra dar uma olhada na via do Quita e encontrei as pegadas do Damian bem marcadas. A neve na geleira não estava excelente – um pouco “açúcar” por baixo de uma crosta de uns 8cm, mas decente.

Antes das 16h já estávamos “jantados e dormindo”, mas pra nossa surpresa tivemos uma pequena tempestade durante a noite e uns belos 15cm de granizo. Acordamos e decidimos arriscar a escalada. Uma das duplas de argentinos já tinha saído pro Alpamayo e a outra estava se aprontando. Saindo do acampamento tínhamos resquícios das pegadas e névoa, e em pouco tempo as pegadas desapareceram, mas tendo estudado bem a via no dia anterior, sabia que tínhamos que passar duas zonas de detritos de avalanche e depois subir em direção à rimaia. Nossa sorte é que conforme fomos subindo reencontramos as pegadas, atravessamos uma zona de avalanche relativamente extensa e finalmente chegamos à ponte que nos colocaria na parede.

O Craig estava com problemas estomacais e apesar de já ter tomado um remédio desde que tínhamos saído do acampamento, precisou fazer um pit stop emergencial na rimaia. Cruzei a ponte e escalei uns 20 metros pra cima onde montei uma parada e esperei que ele terminasse seus serviços pra trazê-lo pra cima. Daí em frente a escalada fluiu quase que perfeita: cada um guiou uma enfiada num ritmo bem bom, numa inclinação média de 50-55 graus, com a neve quase perfeita e as estacas entrando bem firmes.

Subimos uns 200m até uma área de rochas, e daí o dia começou a amanhecer. Escutamos uma avalanche no Alpamayo, esperando que fosse o pedaço da cornija. Não vimos as lanternas dos argentinos e ficamos um pouco preocupados, mas imaginei que tivessem regressado ao acampamento. Desse ponto iniciamos uma travessia pra direita, pra chegar na parte da parede que estava com o topo mais limpo. Foi a parte mais técnica da escalada: podíamos ir pra cima e passar pra face adjacente da parede à esquerda (que há muito tempo atrás era a via original, porém estava com muitas cornijas grandes que em geral são de neve açúcar e eu tinha certeza que não íamos conseguir passar), ou cruzar uma parte de “estrias”, que são partes proeminentes da parede, de neve bem podre e solta, péssimas pra proteger e com má fama de que quando quebram, quebram por inteiro. Como era minha vez de guiar, decidi seguir à direita pelas estrias e canaletas, no que foi a parte tensa e mais íngreme também, pois nas 2 enfiadas que guiei nessa travessia, foi bem difícil proteger com as estacas pois elas ficavam bem soltas, e em certo momento já com um esticão enorme tive sorte de achar gelo e conseguir fazer uma proteção mais firme com parafuso. Pelo menos daí em diante foi seguir em linha reta pra cima com inclinação  de 60 graus, pra depois de mais umas 5 enfiadas finalmente chegarmos na super exposta aresta do cume.

O sol já estava forte e o céu aberto no final, e estávamos bem desidratados, mas foi só tirar umas camadas e chegar no topo que o tempo fechou! Nem deu tempo de tirar fotos dos arredores! Uma pena, mas já estou acostumada a escalar com mal tempo. Daí pra baixo foram exatos 8 rapéis, sendo que o último deu corda suficiente apenas pra cruzar de volta a rimaia. No último rapel também veio de novo a chuva de granizo, e a neve na geleira estava um horror. Cheguei ao acampamento umas 15h, totalmente exausta mas super feliz de ter conquistado a minha primeira grande via técnica da temporada.

Os argentinos realmente tinham desistido da escalada naquele dia apesar de terem saído e chegado perto da rimaia, que estava com muita neve. Uma dupla de Checos também havia chegado – escaladores independentes de 8000m e um deles guia UIAGM, além de um grupo da Venezuela que estava acampado no col. Tínhamos a informação de que todos iam tentar a Direta Francesa no dia seguinte. Crowd! Mas o planos estavam de pé. Descansamos algumas horas, fizemos jantas e logo cedo já estámos descansando (o que é bem diferente de estar efetivamente dormindo, pois esses dias a insônia estava braba). Pra nossa tristeza, durante a noite tivemos outra tempestade de granizo, desta vez com 20cm de acumulação. Mesmo assim acordamos às 3h da manhã, saímos da barraca e rapidamente averiguamos a situação. Tudo que estava pra fora da barraca estava enterrado e a neve super solta. Discutimos com os outros grupos e acabou que todo mundo desistiu de escalar o Alpamayo naquele dia, pois se no dia anterior as condições estavam ruins, neste dia com ainda mais neve estariam pior.

O Alpamayo nunca esteve na minha lista de prioridades, mas eu estava super empolgada com a escalada do Quitaraju, e queria muito mais. Por outro lado estava satisfeita de depois de uma aproximação tão longa e cansativa, ter pelo menos escalado alguma coisa. De qualquer maneira, é frustrante estar de frente com uma montanha dessa e não poder subir. Tínhamos um resto de comida pra mais um dia mas não adiantaria tentar pois as condições estavam ruins.

Arrumamos tudo e começamos a descida perto das 9h da manhã, o que nos colocou na geleira com condições horríveis. Os Checos e Venezuelanos resolveram ficar mais um dia pra mais uma tentativa. Chegamos no acampamento base em poucas horas e começamos a comer tudo que estivesse ao alcance, inclusive nossa pipoca, esperando pela chegada de nosso arriero, o Achiles, que tinha prometido trazer truta pra cozinhar pra gente nesse mesmo dia. Enquanto esperávamos começou mais uma tempestade que durou umas belas 4 horas. Nesse tempo os Checos desceram e nos contaram que algumas horas antes tentaram chegar na parede do Alpamayo já durante o dia e que a subida pra rimaia estava com avalanches. Se esses dois com todo esse cacife disseram que não dava é porque realmente não dava.

Acordamos no dia seguinte pra ver o estrago da tempestade: havia neve até uns 4500m do outro lado do vale, sendo que a linha de neve aqui costuma ser 5000m. Carregamos os burros e em 5h estávamos de volta à Cashapampa pra iniciar o retorno à Huaraz. Desci bem satisfeita: além de termos sido apenas a segunda cordada a escalar o Quitaraju na temporada, nossa parceria estava praticamente perfeita, com ambos dividindo as responsabilidades e direitos da escalada, além de nos darmos super bem. Formamos um excelente time em total sintonia e isso era a única coisa que faltava para que eu finalmente chegar nas paredes de mais responsa nessa temporada. Com tanta sintonia, não era surpresa que ambos tínhamos a mesma ideia pro próximo objetivo.

Uma Temporada na Blanca – Parte I
 

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Sobre o autor

Nômade por acaso, Cissa Carvalho nasceu em São Paulo, já morou no Alabama e na Amazônia, e atualmente reside na capital Paulista até que os ventos novamente a levem pra algum destino inusitado do planeta. Trilha desde pequena e conheceu as montanhas com vinte e poucos anos, mochilou a América do Sul, andou pelas montanhas brasileiras e nos últimos anos tem se dedicado ao montanhismo de altitude, e mais recentemente à escalada em rocha. É bacharel em design gráfico e pós-graduada em design editorial.

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