Texto e fotos por
Marcelo L. Brotto
Os pioneiros foram os irmãos Osíres e Orisel Curial e o brasileiro-nissei Nobor Imaguire, que em 12 de julho de 1949 puseram os pés pela primeira vez no cume de ambas as montanhas, após empreenderem uma marcha contínua de seis dias pela selva virgem, como bem descreveu Schmidlim, o Vitamina, em sua coluna no jornal GAZETA DO POVO em 17 de setembro de 1986. Vitamina, com seu estilo rebuscado e vocabulário próprio, deu vida a saga do trio marumbinista ao enriquecer de detalhes a incrível jornada pelo território desconhecido.
A mesma trilha aberta pelos conquistadores ainda é usada hoje e por mais que o traçado seja conhecido alcançar o Ciririca com mochila cargueira exige um esforço de oito horas. Vitamina assim descreveu o percurso:
“Cinco quilômetros separava-os do objetivo, exibindo uma sucessão de despenhadeiros entre os sovacos, dédalos e gargantas tortuosas. Grotões escancelados que exigiam um continuado subir e descer, dentro de uma selva impressionante”.
Percorrer esse caminho é mais do que apenas subir uma montanha. Antes é necessário entregar-se de corpo e alma à floresta tropical, um manto de vida luxuriante, imerso em umidade que faz florescer e apodrecer, num ciclo interminável de vida e morte. Sentir-se parte dessa natureza é o primeiro passo de muitos. Retroceder é impossível. Uma vez tocado pela sombra do dossel o espírito se torna mais sensível à solidão da selva e a beleza das coisas.
“Foram quatro dias de luta tenaz e inflexível e a dureza dos elementos não impediu a marcha destemida dos três montanhistas, naquele ermo de um cenário delirante, virgem, de exuberante, flora tropical apoteótica. Nos vales, árvores de altura notável, assomando, não raro, acima da vegetação caótica. Avançavam resolutos, afogados naquela solidão estarrecedora de densa mata, maravilhosamente rica”.
O caminhante inicia sua marcha querendo não acreditar nas oito horas que estão pela frente, então a mente humana busca fracionar a tarefa, em vão, pois a trilha em partes mostra um continuado subir e descer, entre o murmurar constante da água que verte próxima ou distante da trilha, o gemer de galhos que se enroscam com o vento, o mosaico de sombras e raios de luz que atravessam as folhas a balançar com a brisa, folhas pelo chão, folhas a brotar, fungos a decompor, horizonte nenhum, então absorta em pensamentos vagos a mente esquece das horas e o corpo involuntariamente desvia os obstáculos, galhos, taquaras, bambus, troncos caídos, raízes, bromélias, espinhos nas samambaias, nas bromélias, nas taquaras, muitas são as que bloqueiam a passagem, passar por de baixo, por cima, desviar pelo lado, atravessar riachos, rios, córregos, pedras molhadas sempre com musgos que evoluíram para cedros, canelas, o araçá, o ceboleiro, a erva-mate, o convívio caótico da biodiversidade tropical sob uma geomorfologia lógica, senão, caótica, não sei, pergunto as águas que buscam a falha, se bem que a cachoeira não tem nada de falha, é acerto e dos grandes, o caminho que trouxe até aqui quer dizer apenas uma coisa, a subida vai começar!
“Alcançá-lo foi um revezar de contrastes belíssimos. A picada de penetração era constantemente acompanhada de pequenos riachos ou transpondo catadupas das maiores e cursos de água cristalina. Estranho território esquecido da civilização. Até então, uma barreira intransponível, ignota e inabordável. A cada elevação a repetência do cenário: nas partes altas, formadas de bromélias ensiformes espeniscentes, misturadas aos arbustos baixos e flexuosos. Já à meia encosta, a mesma flora acrescida dos taquaripocas tolhiços, com alto teor de sílica, inutilizando rapidamente o fio dos facões. Nos vales e canhadas a mata densa, lúgubre, com seus cipós elásticos e distensos, dificultando a marcha. Era uma abordagem sincera, sobre um desconhecido que ninguém se atrevia a enfrentar. Mesmo os escoteiros mais mateiros não lograram êxito”.
Além da cachoeira do professor não há mais o que descer, a subida constante de quatro horas elevará o espírito além do que ele já ousou experimentar. Ingressar nessa terra longínqua e esquecida acresce o sentimento de solidão, até mesmo ao deixar para trás o rio da última chance, de desistir? Não. É impossível desistir após tocar o campo de altitude, por mais que seja incrédulo que uma hora e meia ainda o separe do cume.
Inflectir sobre a crista do Ciririca carregando o cansaço montanha acima não é fácil, ainda mais quando o sol se apronta para mergulhar no horizonte, mas há algo mais nessa caminhada. A tentação pelo Ciririca talvez seja o resultado de um conjunto de condições que fazem parte dessa terra. A derradeira sem dúvida é a beleza da crista que conduz ao ponto mais alto. Uma vez no cume o espírito suspira e não duvida de que o esforço valeu à pena. Imaguire diria: “Não fôra uma vitória olímpica, mas uma vitória para nossa satisfação”.
O trecho final sintetiza o valor dessa caminhada, quando se emerge da floresta sombria para o campo banhado em luz, da cachoeira enclausurada entre a falha para o topo com horizonte infinito, a umidade que enriquece a flora agora sob nossos pés, escondendo os rios enfurecidos pela agressividade do relevo. Acima apenas as andorinhas e nada mais.
Se o Ciririca representou um desafio à altura, o que dizer do Agudo da Cutia, duas horas e meia a frente e abaixo. O que significa seguir adiante para uma montanha mais baixa do que a que foi alcançada? É difícil definir quando o ângulo de visão é superior, mas para os antoninenses a imagem do Agudo da Cutia representa um gigante que jaz além do mar o do mangue, reinando absoluto na paisagem litorânea. Independente de qual seja o ponto de vista, seguir adiante é adentrar ainda mais no sertão e aguçar mais os sentidos.
A trilha que parte do Ciririca pela face sul alterna trechos ruins com horrorosos, por assim dizer. Ela atravessa em alguns pontos o campo arbustivo e em outros a floresta altomontana, ambas carregadas de umidade, resultado da posição sul da vertente. Esse excesso de água aliado à forte inclinação favorecem os deslizamentos naturais. Descer por ela é experimentar fortes emoções, com alguma dose de masoquismo. O alívio só chega com o primeiro campo herbáceo. Caminhar em meio a esse mosaico de vegetação confunde o senso de direção e os rios nada ajudam na orientação. O local é um verdadeiro labirinto de falhas e reza a lenda que bússola não funciona ali.
Quanto mais próximo do Agudo da Cutia mais longe da civilização e de um conceito que possa definir essa empreitada. Dez horas e meia de caminhada são uma coisa, mas qualquer trilha nessa região transcende a lógica humana. Não por acaso, vez por outra o Agudo passa nove meses sem ser pisado por uma viva alma. Mas, afinal, pra quê conceito, definição ou lógica?! São palavras que não fizeram parte da história do trio marumbinista, nem do Vitamina, e certamente nunca explicarão o porquê do desejo por essas montanhas.